O fetiche das telas - Gutemberg Armando Diniz Guerra
O fetiche das telas
Gutemberg Armando Diniz Guerra
Quando falo em fetiche me vem logo duas referências associadas ao termo. O fetiche da mercadoria, subtítulo de capítulo de O Capital, memorável livro de Karl Marx, é a primeira delas. Nesse texto o advogado, filósofo e economista alemão constrói o conceito de mercadoria explicitando, de forma literária, como se o produto do trabalho humano tivesse vida própria, a partir de concluído o processo criativo. A outra é sobre os fetiches sexuais amplamente utilizados em textos eróticos e pornográficos. Projeções e representações de partes do corpo se fazem objetos de predileção dos amantes, estimulando toda a libido e levando o ser humano para muito além da conjunção carnal, a deleites e prazeres indescritíveis.
A intenção nesse texto é refletir sobre o uso de tecnologias eletrônicas encantadoras nas exposições acadêmicas e científicas sejam em aulas, seminários, palestras, congressos, simpósios e similares, justamente por ser algo que se tornou praticamente uma imposição. A partir de um certo tempo histórico é como se a fala pura e simples não fossem capazes de transmitir algum conteúdo.
O fetiche da tecnologia eletrônica, reduzida nessa breve reflexão às telas, está associado ao sentido da visão como mobilizador de todo o corpo físico do expositor e seus expectadores, unindo-os em uma aventura que mescla concreto e abstrato, tornando-os quase um.
Nas últimas cinco décadas acompanhei como aluno e professor o desenvolvimento e incorporação de técnicas de comunicação cada vez mais sofisticadas nas exposições acadêmicas, científicas e, também, em qualquer outra modalidade de exposição. Saímos da simples fala ou exposição amparadas em desenhos, gravuras e fotografias para recursos de projeções de lâminas transparentes (slides), técnicas de projeção de imagens de livros em aparelhos chamados de retroprojetores, filmes animados ou de imagens sequenciadas utilizando-se computadores e outros equipamentos complexos de transferências imagéticas. Projetam-se desde rabiscos a esquemas complexos para explicitação de conceitos, metodologias, justificativas, informações e dados, ou mesmo, em alguns casos, embora pouco recomendáveis, os expoentes projetem o que vão falar e declamem o que vai escrito em papel ou outro substrato, para o seu público atento ao que dele possa vir.
O que mais me incomoda no uso dessas e de quaisquer outras tecnologias é a dependência a que se submetem o autor e os expectadores. A disponibilização de equipamentos que viabilizem a exposição, seja ela de palestra, conferencia, discurso ou aula, tornou-se praticamente uma imposição aonde antes bastava a fala pura e simples do professor, mestre, pedagogo. O apoio que o equipamento eletrônico dá, guardadas as devidas proporções, é o mesmo que a escrita em folhas de papel, esquemática ou letra por letra como guia de leitura para que o orador não se perca pela emoção ou dificuldade em articular pensamento e locução de improviso. Aprendi a usar os dois modos, ou mais, para as exposições, me adaptando aos tempos e costumes, mas procuro não estar limitado a eles. No caso de ausência ou indisponibilidade de recursos tecnológicos sofisticados, uso, como se diz popularmente, a saliva e a expressão corporal, procurando dar conta do que me solicitam.
Admiro atores que sabem fazer cortes e adaptações nas suas apresentações, adequando seu conteúdo ao tempo que lhe é dado e respeitando ao público que lhe assiste. Temo aqueles que exigem tempo e recurso, comprometendo as agendas e programações dos eventos com sua prolixidade e rigidez para se fazer entender caso não lhe sejam dadas todas as condições que ele imponha para se fazer entender.
Incomoda-me muito mais, porém, oradores que são completamente dependentes de recursos agora ditos da inteligência artificial, como se aquela adquirida, armazenada e acumulada ao longo da vida escolar e profissional do sujeito não fossem capazes de lhe dar a capacidade de dar conta de tarefas de entretenimento pela palavra dita, exposta e dialogada aos tons e gestos herdados dos velhos e bons mestres e artífices da voz e interpretação.
Fico me perguntando quanto terão sido agradáveis ou custosas as aulas peripatéticas dos filósofos gregos com os seus alunos a lhes escutar as perguntas e respostas, teses, antíteses e sínteses, hipóteses e considerações sobre suas dúvidas e certezas, verdades e contradições, tudo visto, medido, calculado e exposto com os recursos do raciocínio e da percepção direta, ainda que com todos os limites para que os esclarecimentos fossem eficazes.
O maior temor que me angustia é o poder que exercem as telas sobre nossos contemporâneos, sejam eles jovens, adultos ou idosos, todos cada vez mais encantados pelo brilho e animação dos pixels que lhes tolhem o campo de percepção e sentidos acomodados em quadrados cada vez menores, mas cada vez mais poderosos, porque cabem, literalmente, na palma de uma mão. A sensação, o fetiche, pode ser muito bem resumido e sintetizado nessa expressão e impressão de domínio e poder que a tecnologia oferece. O ser humano não se satisfaria mais em estar representado e nem se encantaria se apresentado como um Atlas a carregar os céus nos ombros. Ele agora ri daquele brutamontes musculoso porque pode fazer o mesmo, ou mais, sem nenhum esforço, como uma criança e, melhor ainda, carregando todo o universo na palma de uma de suas mãos.
Comentários
Postar um comentário