antes do céu e outros poemas de Leonardo Bachiega

 

Robbrez

Outra canção

 

o peso do mundo
é o amor*
               que humano ser
mais do que o que imaginamos
fazer o que carregamos
o cotidiano
sob o fardo
da insatisfação*
 
                 o amor
soletra a procura
o bicho cansado
das metrópoles
ao passar os anos
            e
                          um corpo
fuligem de outro corpo
se encostam
 
assim mostrando
                       o tanto...
 
a não sumirem
                          deste lugar
contemplando
fantásticas fábricas
 
 
o último desejo
é o amor*
 
recolhe-se
a medida
certa para cada qual
                o seu
a sintaxe sincera
essa frase que
corre dentro dos nossos
                             lumes
              quando
estamos às
cidades airosas
 
deve dar-se
sem nada de volta*
 
o bom presente inesperado
                             a receber
aquele sinal sagrado
da lembrança
 
a não mencionada lida
que tanto se aprecia
escrever palavras
                     em
papeis mascados
 
                           o amor
 hóspede que não nos
 tranca às latarias
e
o mesmo não reluta
      a realidade
a mudança da sala antiga
                        a sensação
de estar a salvo
 
mergulhado a um
manto animal
que
 
e querer
desejar
              buscar
          estar
 
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci*
 
e
voltar à apaixonada
ficção

 

*em itálico, sampler do poema “Canção” de Allen Ginsberg, tradução de Cláudio Willer.



eu e manoel de barros rabiscando caramujos


 
1.
 
a mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
falava que os vazios são maiores e até infinitos*
e por isso ele aprendeu... a sua lâmpada
a só luzir depois do espaço do seu oco

*sampler do poema “O menino que carregava água da peneira”, de Manoel de Barros


2.
 
no mundo real
é assim que foram feitas (todas as coisas) –
sem nome*
quando quiser sugerir algo aponte a sua impressão
não deixe a imagem morrer ocre sobre a cidade


*sampler do poema “Prefácio”, de Manoel de Barros


3.
 
eu ando sozinho tateando com a mente a alegria
não é fácil saltar de uma sobre outra estrela
mas é sobre esses caminhos de pedras humildes
que às vezes  me deito
eu não saio de dentro de mim nem para pescar*
por isso minha noite flui como lonjuras viventes 

*sampler do poema “O livro sobre o nada”, de Manoel de Barros

 

antes do céu


1.
 
queria ser o texto
que se apaga
ninguém poderia traduzir-me
seria a moça
a dobar pássaros
 
2.
 
a moça
queria acompanhar-me
por onde fosse
como um rouxinol no coração do ar
como se enxugar o tempo
fosse adivinhar a saudade
 
3.
 
estamos eu e ela
resolvendo a paisagem
até libertarmos os olhos da solidão
e ao desenhar solidão líquida no espelho
esperar o breu
 
 
 
4.
 
o sentido da palavra amor
eu sorver-te a lágrima enquanto choras
perco-te quando está triste
se anda com dificuldade
até onde descem os ossos
eu demoraria o seu peso
 
5.
 
a moça envolta a entulhos
vedou os olhos com estuque para escapar do mundo
eu inteiro num molde disse
quando o teu anjo chegar... eu estarei bem
com a boca cheia de campainhas
procurando por todo o lugar uma alma
se eu disser fico...
o frio será o meu mate
 
6.
 
eu não consegui parar a árvore      
e ela seguiu andando para o meio do mato
descobri depois
tatear teu rosto
é como uma árvore centenária
na mata
 
 
7.
 
eu replico ilhas inalcançáveis
procuro o segredo do amor
e da verdadeira vida
a moça com um fino tear
tece fios de aves na palavra
homem
 
8.
 
eu não habito a terra
habito uma janela demorada
 
ela estava na janela
ouvindo pensamentos
 
9.
 
você com as tuas raízes limpa o mar
você com a tua dentição de lua
soletra o céu
como eu poderia respirar amor contido
debaixo de um mármore
 
a moça guardando uma fiada de afogados
fez-me a chuva esquecer a remota morte
 
 
 
10.
 
a moça ainda separando um amor do outro
disse
o coração rosna a mais pequena ameaça
o que não fica pede-se
beber ao poço um sentimento alheio
a costurar cinzas e sombra
 
 
11.
 
eu ao colocar a mão sobre a dela
cuidadosamente como se em carne viva
olhei para a página
para que o poema não a perseguisse
ela simples como faz
desapareceu para sempre
eu... cumpri parado o olhar
como um lagarto que adorna o sol
esperando um sopro de luz me fechar

 

caia cada qual desfeita 


naquela época não tinha deus para nos fazer estampar a demasiada custa dos nossos momentos... falávamos no ouvido palavras obscenas. caminhar não era uma premissa a noite estava por descobrir um vulcão extinto um sopro. Iludíamo-nos para que não nos sobrasse mais nada era difícil para nós decidirmos por nossos ídolos talvez o luar nu a brevíssima graça a sensível miragem.
a nudez turvava-nos de um linho negro nos olhos tínhamos a madrugada para descobrir o que era olhar com as mãos sempre em palavras umedecidas. não era mais possível recusar as tuas luas o mundo para nós despertou-se com seus diversos venenos
 
uma a uma
 
dedilhávamo-nos a beber e descrevíamo-nos como se nossos olhos fossem duas jarras de cristais. escrevo apenas um pedaço de ti a parte que a chuva ainda não tomou para si.
 
éramos uma só cidade repleta de vida de noturnos corpos de alguma etiópia esculpida. deitávamos em inteiras tribos. éramos a insuportável essência de um único lugar.
 
era simples desejar ficar com as cartas da noite
 
depois o prazer da companhia é tão fácil como se tomássemos café com amigos próximos.
isto porque não nos restava mais nada.

 

adonis cristalizando seres

 

 

palavra é a cama de voz
 
voz é o filme que mistura o rosto do óxido e do deserto
 
deserto é tristeza feliz
 
feliz é a lida cansada da ave
 
ave é transcrição múltipla da chuva
 
chuva é a serenidade de uma vida
 
vida é o cesto ecrã com uma mancha cuja essa mancha celebra busca




sobre o autor: 

Leonardo Bachiega, é arquiteto, urbanista e escritor, nascido em São Paulo, hoje reside na cidade de Carapicuíba. É autor de alguns livros de poesia e um de dramaturgia e possui poemas publicados em diversas revistas literárias do Brasil e Portugal e também possui poemas em diversas antologias, entre elas a antologia da off flip. Fernando Pessoa é o seu poeta da vida.
Instagram: @lbachiega


Variações: revista de literatura contemporânea 

VIII Edição - Vozes que não
 param de gritar  
Edição de Marcos Samuel Costa

2022

 

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