História de um anjo - conto de João Gabriel Brito

(Chagal)


História de um anjo




As palavras saíam-lhe em cores da boca.
Rosa, azul, amarelo, tons diversos que se distinguiam em meio a confluência desordenada daquela pintura que eram as suas conversas.
Nenhum som, nenhum ruído que fosse era capaz de emitir.
A princípio, como tende a ser em qualquer caso de especificidade, ninguém a compreendia.
No começo, quando era ainda uma criança de colo, a tomaram por muda, e na sua suposta mudez, notaram os mais observadores, nenhum balbucio lhe era possível. Era ela todo um silêncio perpétuo, desses que acompanham as grandes tragédias, ou as grandes felicidades – não se podia ainda saber quem, de fato, as urzes ou as usuras do silêncio a fariam ser.
Calada ficava no canto, a mãe, o pai, os irmãos lhe mexiam, mas, calada, nada emitia, reagia do seu modo aos estímulos e toques externos, se lhe contrariavam ou se algo faltava chorava compungida, avermelhando-se de tanto esforço e silêncios; se achava graça sozinha ou por afeto alheio ria tão linda e tão silenciosa; se batia palmas, se esbarrava, ou se chutava, as coisas ou pessoas, que eventualmente a entrecortavam o caminho, recebiam sua força com certa e mágica delicadeza e restavam densas, incapazes de devolver qualquer estrépito ou ruído ao mundo. Ninguém a compreendia e havia mesmo aqueles que, sem nenhum pudor ou respeito, se espantavam maravilhados ou estarrecidos.
– Vai ser bruxa.... Vai ser anjo... – diziam intrigados com o desconhecido. Foi assim crescendo, criança de olhar sereno de silêncios, e nada lhe faltou, porque ela mesma ia, dentre a aspereza cotidiana, aprendendo a conviver com sua condição etérea. O que lhe faltava em palavras, com o tempo, sobrou-lhe em ouvidos. Sua audição desenvolveu profundo e intenso apreço pelo mundo e pelos seres. Ninguém escutava tanto ou mais atenta que ela, em casa, na igreja, na escola, podia distinguir com perícia um som, por mais insonoro que fosse, do outro. Convivia com o silêncio desde sempre e com ele aprendia sobre um mundo que mais ninguém ousava buscar. Pelos olhos do silêncio, este a estranha força que lhe domava ao mesmo tempo em que lhe dava azas e pernas ligeiras, conheceu visões que ninguém mais viu. Sabia das voltas que o parafuso dava no interior do retrato angelical da igreja, sabia a exata distância entre o pé da galinha e a ponta do capim, podia ouvir quando um coração acelerava de amor e pela translucidez de qualquer lágrima escutava as dores inteiras de uma vida até então desconhecida a ela. Perdia-se valsando entre o mistério comum às coisas mais simples e às mais grandiosas do existir. Seus olhos então enchiam-se em si e maresias de sonhos se formavam entre um olhar e outro. O viver preenchia-se de pequenos milagres que floresciam entre as buscar do escutar.
Foi quando alguém teve a ideia de lhe confessar diretamente as dores que calava em si. Contava ela, do vigor de seus cabelos escuros e enrolados, quinze anos, quando a primeira alma cansada encontrou-lhe. Sua razão de mistério e de vida, então, aconteceu. Começou primeiro com o primo viajante que chegouem sua casa trazendo-lhe, na cesta do coração, mal de amores.
Nesse remoto dia, ele, curioso com a condição tão já falada e questionada da incompreendida prima, a viu sentada na mesa da cozinha enquanto ela, com a ajuda do silêncio, reparava carinhosamente nos trançados que um pássaro tão longe dali empregava na engenhosidade de seu ninho. Ficou pasmo, como se o silêncio dela, que nãolhe era de modo algum familiar, lhe empunhasse uma espada de vidro. Precisou agarrar-se em toda a sua racionalidade para convence-se de que ela, sua prima bruxa ou anjo, não era, em verdade, um espectro alvo. Todavia, bastou ela sorriu-lhe cândida e bonita para ele entender aquilo que foi o primeiro a entender: ela era anjo e não bruxa. O silêncio entranhado, característico, humano e Deus, fazia dela bondade própria, impavidez que estranhava. Aquela sua prima trazia em si as verdades de um anjo. Seu medo súbito e primeiro passou, e uma grande vontade dele se apoderou: aproximou-se dela e, como faria o pior dos pecadores diante do maior dos santos, como fez o bandido crucificado ao lado de Cristo, falou-lhe em confissão e, desalmado de sua vergonha humana, sua vida, seus amores tão doídos, verteram em lágrimas e palavras que se entendiam quanto imprensadas nas intransigências daquele ser que agora se entregava. Ela o ouviu com santas expressões e da alma dele cuidou. Sua hora ali chegava e ela entendeu de certo que a vida toda se preparava para isso, que o seu nascimento e o seu mistério agora se achavam próximos a um destino, ao destino dela. O silêncio fez-lhe anjo e ela isso compreendeu ao que todos lhe compreenderam.
O primo, por sua vez, como um anjo o tocou, curou-se de si e dali saiu para testemunhar seu medo, sua feição e sua graça. As maresias de sonhos o aguavam, transbordavam-no.
A notícia sobre ela cresceu, correu por mares e casas e desejos e uma fila de sofridos formou-se, aguardavam-na, e ela, que já sabia de seu destino, deu-se a eles, deles tratou com ânsia e torpor.
Conforme as curas se sucediam, o mistério do anjo feito de silêncio vicejava no imaginário do povo. Almas eram amadas em cada confissão que se fazia, ela tudo escutavae suas expressões diziam o exato e a justiça que cada um que a procurava precisava escutar. Quiseram lhe retribuir, mas ela fazia entender que não precisava, que não se cobra pelo viver. Renegou ainda a fama de santa, fora anjo e apenas. Assimera que o povo indicava o caminho de sua casa:
– Por ali mora um anjo de silêncios que escuta corações. Escutou, carne, sonho, alma, busca, perda, ausência, um coração em seguida do outro, trafegava entre as vidas, os corações os mapas. Diariamente tratava de uma multidão de humanos desvalidos.
Foi entre um coração e outro que as cores aconteceram.
De sua boca sempre em silêncio, saltou primeiro o azul; saiu em um esfumaçado fio que, aos olhos de todos os presentes, apoiando-se no lábio inferior, encontrou o queixo e do queixo libertou-se no ar, dissipando-se entre as telhas escurecidas de tempo.
Nunca mais as cores pararam, seguindo o azul vieram todas as outras e logo estas estavam unidas formando misturas e arco-íris que a boca do anjo cantava feliz ao mundo. Seu silêncio virava aquarelado sentir. Tudo isto, como era de se esperar, causou grande espanto na multidão e o milagre das cores, como ficou conhecido o fato no imaginário popular, passou a ser diariamente alvo dos maiores descréditos e atenções e toda a gente se apinhava para ver não só as curas miraculosas, mas também as cores que eram ditas pelo anjo. Muitos doutores em suas ciências, ou céticos em suas mágoas, chegavam, após vencer a longa fila de moribundos, para tentar desmascarar os milagres. Todos saíam crentes no impossível. Também os curiosos entravam para ver de perto o fato memorável e tão comentado. Ninguém entendia nada, tanto era o silêncio dos milagres e das cores, todos se maravilhavam ao seu modo e, no geral, esse modo era crer, aceitar sem nenhum pudor ou dúvida que o anjo existia e que sua vida era como um diálogo entre Deus e os homens.
Foi justamente um curioso quem decidiu, pela primeira vez, levar uma tela em branco ao recinto do anjo. Entrou, rapaz obstinado e macilento, seguro à tela de pintura, ninguém lhe tirava da cabeça a súbita ideia de catar na seda da tela, os movimentos lépidos e certos no ar, as cores do anjo. Em vão tentaram lhe dissuadir, impedir que entrasse com o objeto – o retângulo de vinte por trinta –, algo nele, força repentina de certezas, lhe arvorava obstinado desejo por realizar a específica empreita. Brigou, esperneou, esperou, contestou, deu-se o jeito até que se viu com o anjo e a tela. E ela, que a tudo sabia por seu silêncio, já o esperava e lhe disse cores que foram, uma a uma, apanhadas na superfície da tela. O rapaz, como fosse feito de borboletas, enquanto eternizava as cores do anjo, parecia flutuar no ar sempre que apanhava uma das cores, ia encostando suavemente a tela nos feixes multicoloridos que saiam da boca do anjo. Então, fosse por seu cuidado ou fosse pelo mistério do anjo, outro milagre aconteceu e uma pintura, sombreada, detalhada, belíssima, apoderou-se da alvez da tela. Era um desenho do céu, com nuvens e anjos se encontrando, ao fundo a luz do ser que parecia ser Deus em pessoa. Descobriram, então, que o anjo podia se comunicar por imagens, que as cores de sua muda falam, eram, na verdade, mensagens que nasciam de milagres impossíveis. A multidão passou a carregar telas, madeiras, azulejos, qualquer objeto onde as cores pudessem se imprensar. Muitos apanhavam-nas com o próprio corpo, sentindo na própria carne o impossível que ali se avizinhava. O povo agora, indicando o caminho para os milagres, dizia:
– Por ali mora um anjo de silêncios que escuta corações e pinta milagres com o seu silêncio.
Pintava sempre imagens do céu, sempre promessas que o silêncio soprava ao mundo. Os homens muito pouco entendiam, mas amavam ao anjo e o anjo, em sua sabedoria simples, sabia que apenas isso bastava. Entre eles, Deus, que é silêncio inteiro, jamais se preocupava em calar, ia e vinha a sonhar seus sonhos incompreensíveis. O anjo, com dezesseis anos, mostrou aos homens Deus; e Deus, como seu tempo e idade, conheceu os homens. Na cela do anjo, todo o silêncio bastava.
– Por ali mora um anjo de silêncios que escuta corações e pinta milagres com o seu silêncio. Deus, que também é um dos nossos, toca nas azas dele todos os dias... – diziam uns aos outros os pobres.






João Gabriel Brito nasceu em Cametá-PA, às margens do Rio Tocantins. Faz faculdade de Direito na UFPA. Escreve prosa e poesia. É autor de "pelo caminho do rio envelhecido", obra vencedora do prêmio Dalcídio Jurandir em 2020.



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