Bandeirite - Gutemberg Armando Diniz Guerra





 Bandeirite


Gutemberg Armando Diniz Guerra




A humanidade nem sempre teve seus territórios demarcados e controlados com a força das corporações e formato de nações como conhecemos hoje como Estado Moderno. A circulação de mercadorias já foi bem mais livre, migrando de um lugar para o outro, e os estrangeiros tratados com muito mais respeito do que se tem visto na atualidade. 

Não há nenhum problema em si mesmo em se identificar com um lugar, um povo, uma etnia, uma família, uma religião, um clube de futebol, uma gastronomia, uma cultura, uma concepção de mundo, um tempo, mas há muitos problemas quando se impede ao outro de circular, comercializar, trocar, professar sua crença, amar, ser amado por quem quer que seja. E aqui vale a reflexão sobre que consequências advém da demarcação dos territórios e do protecionismo das corporações aos seus interesses específicos, base de toda organização primária. 

Dizia o saudoso e muito querido amigo, engenheiro e líder sindical baiano, José Olívio Miranda de Oliveira: associações e sindicatos profissionais são organizações, mas são de caráter primário, defendem até as últimas consequências interesses de grupos restritos, limitados. 

Há outras formas bem mais evoluídas que defendem e praticam formas de organização da sociedade e de relação fraterna entre todos os seres humanos. Há quem veja em partidos a noção de vida compartilhada entre todos os humanos, entretanto o que se vê é cada agrupamento propondo a sua idealizada forma de organização da sociedade e daí as disputas viscerais que testemunhamos.

Ouvi muitas outras vezes a diferenciação de níveis entre organizações corporativas e organizações gerais como as centrais sindicais e os partidos políticos. Mais ainda, ouvi expressões que realçavam o valor dos que militam nesses níveis mais elevados e com engajamentos críticos e duradouros. Assistimos, desde a década de 1970, os sindicatos e associações corporativas evoluírem muito, incorporando reivindicações generalizadas e de interesse do conjunto da sociedade. Para além das palavras de ordem específicas, associações de moradores e de profissionais explicitavam em suas plataformas políticas o apoio à Reforma Agrária, à Anistia Ampla Geral e Irrestrita, a defesa da Amazônia, contra a carestia, a defesa dos direitos humanos... Sindicalistas criaram e filiaram-se a partidos políticos, elegeram-se vereadores, deputados, governadores, senadores, presidente dando um salto em suas perspectivas.

Buscando a origem das organizações, vamos encontrar delas em praticamente todas as partes do mundo. Uma das mais antigas é a dos construtores de grandes obras, identificados genericamente como maçons. Na França existem ainda outros tipos de corporações como a dos padeiros, tecelões, sapateiros, chapeleiros e de outras profissões que deram exemplos para o mundo, tratando-se entre si como companheiros. 

Marcantes foram os tempos em que se organizavam controles das profissões hierarquizadas como mestres e aprendizes. O controle, porém, ia além da profissão quando a concorrência ameaçava algum produto ou serviço local ou territorializado, estabelecendo-se mecanismos que iam do total bloqueio ao estabelecimento de taxas para produtos oriundos de área estranha à de controle identitário.

A configuração do estado moderno tomou formato baseado nas identidades e diferenças entre os povos, levando a guerras sangrentas, a domínios cada vez mais restritos e a uma escalada de violência inenarrável.

Ouvi, há muito tempo atrás, um colega estudante de Agronomia com leituras no domínio da ciência política, desenvolver uma argumentação de que o patriotismo estava na raiz do fascismo. Lembrei muito dele ao ver as manifestações domésticas americanas depois do 11 de setembro de 2001. Uma brasileira conhecida nossa, moradora de lá há muito tempo, chamou de bandeirite àquelas manifestações de exibição de flâmulas nas casas, nos carros, nas lojas, nas roupas, nos estabelecimentos de todas as naturezas e de maneira mórbida nos esquifes que chegavam a cada dia, vindos das frentes de combate que o país mantinha e mantém em muitos lugares do mundo em que se afirmam pelo poder militar.

Na campanha eleitoral brasileira de 2018 e nos anos que se seguiram, os partidários de um dos candidatos se projetou pelo apelo pretensamente mais patriota de que todos os outros, fazendo-se representar pelo gesto simbolizando uma arma, a bandeira nacional, a camisa da seleção de futebol e tudo quanto fosse possível de se pintar de verde e amarelo. A mensagem explícita era de contraposição ao candidato que se fez representar pela cor rubra, ostentada em indumentárias, bandeiras e outros adereços fortemente associados à esquerda e ao que seria uma proposta social democrata, mas lida por seus oponentes, genericamente, como comunista. Na prática, os candidatos formaram coligações configurando no final das eleições candidaturas de blocos genericamente ditos como de estremas direita e esquerda.

A ostentação da bandeira ou da camisa da seleção canarinho, mesmo depois das eleições, sugere uma filiação ideológica tanto quanto o vestir vermelho pode ir além da leitura de que se esteja diante de um torcedor da Seleção da China, Cuba ou União Soviética.

Nas mobilizações para a guerra contra o Paraguai, Inglês de Sousa tem um conto intitulado “O voluntário” em que um filho único de uma viúva camponesa amazônida é recrutado à força para o exército brasileiro. Um advogado entra em cena, mas não consegue livrar o rapaz do engajamento. A mãe enlouquece e os vizinhos inimigos se regozijam com a maldade de fazer um camponês ser imolado e sua mãe levada literalmente à loucura. 

Nas guerras jovens são recrutados para se matarem em nome de Deus e da Pátria. Os recrutados são pobres, negros, camponeses, favelados ou estrangeiros irregulares pretendendo uma nacionalidade. Na 2ª Grande Guerra Mundial, em que morreram 52 milhões de pessoas, metade das vítimas eram russos recrutados nos campos que o governo de Stalin queria coletivizar. 

Nas vésperas dos clássicos esportivos em que rivais históricos se enfrentam, milhares de uniformes e bandeiras são vendidos nas feiras, nos semáforos, em lojas e boutiques especializadas. Torcidas organizadas vão a campo vestindo e portando estandartes com as cores de seus times de predileção e com tanto ódio pelos adversários que o mais comum tem sido que se tenha estádios com torcidas únicas e, mesmo assim, há incidentes com enfrentamentos fatais...

O recente massacre dos palestinos pelo Estado de Israel chocou a humanidade, mas houve quem comprasse bandeiras com a estrela de Davi para exibir em suas portas e janelas total e incondicional apoio a Israel.

As contradições são flagrantes e sugerem atestados de insanidade por acometimento de uma enfermidade que poderia ser qualificada com a denominação feita por aquela senhora brasileira analista das manifestações estadunidenses depois da derrubada das torres gêmeas. Está no ar uma epidemia de bandeirite.




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