Resenha: Viola Davis desnuda - Gutemberg Armando Diniz Guerra
Resenha:
Viola Davis desnuda
Gutemberg Armando
Diniz Guerra
DAVIS, Viola. Em
busca de mim. 11ª ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2024.
Ganhei o livro como presente de Natal de
dois sobrinhos muito queridos, Paulo Costa e Noé, quando de minha passagem em
férias com meus filhos em Salvador neste final de 2024. Agradeço emocionado
desde a leitura da dedicatória e agora com a análise da obra. O conteúdo social
e político que nela vem posto é um banho de cultura, uma imersão na sociedade
americana com a revelação de muitas das suas históricas contradições.
A capa do livro lembra e muito, para não
dizer que é uma cópia do álbum de Milton Nascimento intitulado Minas, lançado
em 1975 pela gravadora EMI-Odeon. Faço esse comentário inicial porque o que se
ressalta tanto em uma como em outra imagem são os traços da cor negra, com
fortíssimas ligações com a africanidade sofrida mas disposta a, literalmente,
enfrentar o mundo e seus preconceitos.
É uma obra de natureza autobiográfica, com
17 capítulos em 265 páginas escritas com muita energia e densidade. Observando
ser essa a 11ª edição datada de 2024, dou-me conta de que o livro foi lançado
há pouco mais de dois anos e esse dado aparentemente simples muito me
impressiona. O que será que faz desse livro um dos mais lidos nos últimos
tempos?
Comecei a ler e fiquei logo impactado pela
presença de violência física e psicológica desde a infância da menina negra e
muito pobre, expressando-se nos mais diversos ambientes e por pessoas
diferentes, desde a casa até a escola. Racismo, etarismo, sexismo, machismo,
fome e muita pobreza são apenas algumas das manifestações declaradas como
identificadas pela atriz em sua trajetória em que se refletem a resistência e
sobretudo a luta por alcançar um objetivo de redenção social e econômica. Esse
caminho é descoberto por ela e suas irmãs como sendo a educação escolar e a arte
dramática mas, embora conquistando o sucesso profissional, os problemas
familiares persistem e se concentram nela, ou pelo menos exigem dela
posicionamentos de solidariedade para ajudar os pais na velhice e os irmãos e
sobrinhos nas dificuldades existenciais em que rolam as mazelas da pobreza, da
droga e da sociedade ambígua e perversa.
A descrição de como se dá a violência é
escancarada desde o palavreado direto e chulo até a violência física sangrenta
e, de certa forma, naturalizada nas relações sociais entre familiares,
vizinhos, colegas de escola e de bairro. Revela também, o quanto a cultura
americana é eivada de agressividade e desigualdades, apesar de intervenções do
estado na sociedade minorando as carências materiais, mas impotente para ir
além disso.
Um pai alcoólatra que agredia a mãe com
frequência quase diária, casas sem calefação e infestada de ratos, roupas e
camas sujas de urina de crianças que preferem mijar na cama do que enfrentar o
frio para ir ao sanitário, alimentação insuficiente para todos os membros da
família, vizinhos adultos, crianças perversas e personagens imprevisíveis
torturando e matando sadicamente animais de estimação fazem parte de um quadro
em que restava a escola como ambiente de convivência saudável e promissora na
qual as pequenas investem.
Mais do que atos de barbárie de um grupo
social isolado ou de uma família pobre, o que vem denunciada e claramente
revelada é a violência instalada na cultura de um dos países considerado o mais
desenvolvido do mundo. A narrativa sobre o conflito se resolve sempre pela
força, pela brutalidade, pelas ações e reações na mesma medida. Mas ela vai
muito além disso quando cita, na página 134, que uma brasileira que tinha sido
locadora de um apartamento em que ela vivera em Pawtucket, no Estado de Rhode
Island, teria sido uma racista raivosa, que a tratara muito mal achando que ela
era uma prostituta. Essa senhora tinha a pior ideia sobre os negros e não
escondia o seu preconceito.
A impressão que tive, desde o início até o
fim do livro é de que ela luta sobretudo pela própria sobrevivência, o que
inclui também a da sua família. É uma obra corajosa porque expõe não apenas os
sentimentos e situação dela, uma celebridade internacional, mas de todos os que
a cercam, principalmente os seus familiares que, por motivos que os defensores
do capitalismo nunca vão assumir, sofrem de fome, falta de educação, saúde,
oportunidades, alcoolismo e toda sorte de violência que uma sociedade desigual
favorece e maltrata os seus menos empoderados.
Outro sentimento que tenho em muitas das
passagens confessionais do livro é que ela está verdadeiramente em um divã,
tentando se descobrir, sarar suas dores, entender seus ferimentos e curar, na
medida do possível, cada uma de suas sequelas. É uma obra que desperta empatia
por não soar rancorosa, embora pudesse ter muito dessa marca por conta das
formas de violência que sofreu por racismo institucional, estrutural ou seja lá
que nome se lhe queira dar a essa mancha ética que atravessou por muitos
séculos as sociedades humanas.
Talvez a maior virtude dessa autobiografia
seja o caráter reflexivo em que ela se põe levando o leitor à mesma postura. Em
que pese toda a crueza com que descreve a figura paterna agressiva na maioria
dos fatos narrados, principalmente na relação com sua mãe, ela o redime pelo
afeto dedicado às filhas e aos netos antes de uma morte penosa, com um câncer
que o leva ao falecimento em uma cena muito comovente e ilustrativa de como
enfrentar esse momento doloroso da partida de um ente querido. É clara a
conciliação com o pai embrutecido quando na fase adulta, mas brando na velhice.
A nudez de Viola Davis como ser humano eviscerado em sua narrativa tem breves, mas radicais passagens pela denúncia de organizações supremacistas norte americanas como a Ku Klux Klan e White Citizen Council, o Conselho dos Cidadãos Brancos que se propagaram e se notabilizaram tristemente no Sul dos Estados Unidos por manifestações racistas explícitas e muito cruéis. O que mais chama atenção, porém, é como a discriminação dos negros no ambiente artístico é ao mesmo tempo sutil e, na esclarecedora narrativa de Viola Davis, muito sentida pelos atores que tem as suas características de negros retintos consideradas fora dos padrões de beleza estruturados e consolidados pela cultura europeia branca.
Considero esta obra necessária para os debates atuais sobre o respeito às diferenças e às buscas pela reconstrução dos valores humanos que restaurem e paguem por todos os prejuízos aos que sofreram historicamente pelas heranças da escravidão e do que dela decorreu em termos sociais, culturais, políticos e econômicos.
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