A fada banguela - Gutemberg Armando Diniz Guerra
A fada banguela
Gutemberg Armando Diniz Guerra
Na minha infância, no bucólico bairro em que morei na Bahia, os dentes de leite com prazos de validade vencidos, arrancados por obra e arte de nossos pais, irmãos mais velhos ou sacados por conta de nossas estripulias da juventude, eram jogados nos telhados de cerâmicas feitas de barro cozido e argila. Dizia-se, então, que o desejo que se fizesse ao arremesso do dente para a cobertura da casa, seria em algum momento realizado não se sabia por virtude de qual divindade. Nunca soube nem me lembrava de nada de maravilhoso que tivesse acontecido depois de todas as presas que para lá destinei junto com meus desejos. Sei que telhado é algo simbolicamente muito forte, representando abrigo, proteção e uma perspectiva diferenciada. Nesse caso, talvez fosse algo além do céu da boca, uma espécie de outro céu onde seres metafísicos pudessem se abrigar e ouvir nossos esbranquiçados e caros anseios.
Encafifado com essas lembranças de dentes e casa da Ribeira, a memória reincide sobre um velocípede de ferro fundido que ganhei de Natal ainda criança e que só na maturidade vim a saber ter sido ele fruto de um esforço financeiro de meu pai, preterindo os presentes para meus outros irmãos e irmãs, uma vez que nem tudo cabia nas meias e sapatinhos colocados nas janelas mas principalmente no parco salário de meu velho. Pelos idos daquele fato, deve ter sido produto de um desses poderosos desejos arremessados junto com algum dente extraído naquelas operações que envolviam a tecnologia das linhas de costura para concretizar a dolorida ação, muito mais do que pelo sapatinho na janela do quintal.
Certamente tive outras compensações que não necessariamente vieram como os meus pedidos expressos aos telhados, mas que me fizeram feliz. Um deles foi o aprendizado e gosto tomado pela pintura, leitura e estímulo para registrar ocorrências e sentimentos em diários e poesias que guardei ao longo do tempo de vida. Cheguei a ter acesso a uma coleção de gênios da pintura que minha irmã Ester colecionava e que eu tinha como minha, por tanto amar ler sobre a vida daquelas personalidades excepcionais. A obra infanto juvenil de Monteiro Lobato em 17 volumes ganhos durante uma das nossas férias também entrou no rol das prendas inesquecíveis que acumulei na cachola cerebral. Machado de Assis também fazia parte de nossa estante e Jorge Amado, em uma coleção de capa dura vermelha, doada por uma vizinha, entrou cerimoniosamente no acervo de nossa casa dando-nos a oportunidade de conhecer mais daquele autor muito questionado pelos conservadores da moral e ditos bons costumes.
No Pará, logo quando cheguei há quase quatro décadas completadas, aprendi que os dentes de leite deveriam ser colocados embaixo do travesseiro porque uma fada viria pegá-los e deixar um agrado para o banguela.
Nas interpretações que eu li em sites de busca não encontrei nenhuma justificativa para o que a fada faria com o dente, nem vi nenhuma das minhas crianças se preocupar com isso. Em uma interpretação jocosa, eu dizia aos meus imberbes filhos que a minha impressão é que esta fada não tinha dentes naturais e, por isso, trocava e juntava os dos nossos meninos para fazer uma dentadura para ela. É claro que eles não gostavam dessa justificativa desnecessária e, embora hilário, sem nenhuma dose de glamour fantástico. Estavam interessados apenas em que ela trouxesse algum mimo para compensar as suas bravuras de se deixar extrair um dente. Penso até que, no fundo de seus pensamentos, temiam pensar em um defeito que enfeasse a fada e que, aceitando tal versão, pudessem desagradá-la e perderem os seus mimos. Desconfio que eles já soubessem, há algum tempo, que a fada que lhes deixava os tais presentes depois de fazer sumir os dentes colocados debaixo do seu travesseiro, era a mãezinha que, sorrateira e celeremente, sempre lhes cumulavam a cada extração. Após a operação de troca que a mãe fazia, secretamente, eu pedia e guardava o dente em um vidro para uma outra etapa que não sei se virá.
Os últimos dentes de leite do filho mais novo estão caindo e, dessa vez e penúltima, creio, foi um molar bem desenvolvido. Ele já não vibrou tanto e disse a sua mãe que já sabia quem era a fada, quebrando todo o encanto e dispensando o presente. Tive que recuperar o molar no saco de lixo para onde tinha sido, apressadamente, destinado dessa vez. Juntei aos outros para de alguma forma, em algum momento específico, curtir com ele aquela fantasia que alimentou durante anos a sua imaginação que agora se constrói com outros símbolos e significados menos encantadores e não tanto doloridos.
Há muitas outras formas de cultivar e correr atrás da realização dos desejos, sem que se precise trocar peças tão valorizadas, como verdadeiras moedas de nosso corpo humano tão mutante e tão passageiro, com seres mercenários de um mundo inexistente.
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