RESENHA: O réptil melancólico, HORÁCIO CASTRO, Fábio - Gutemberg Armando Diniz Guerra
HORÁCIO CASTRO, Fábio. O réptil melancólico. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2021.
O que é a leitura? Diante do que e de quem a leitura nos coloca? Para onde ela nos leva? Para mim, leitura é diálogo. Um diálogo que o escritor propõe, mas que não se encerra entre ele e o leitor. O diálogo se estabelece entre o leitor e um mundo descrito, proposto pelo escritor como ponto de referência, verossímil como todos os personagens que nele habitam e transitam, sim, mas que se abre em infinitas dobras pela imaginação do leitor inspirada no que ele tem diante de si e pelo que ele tem dentro de si. Da leitura desabrocham as experiências memoriais e afetivas do escritor e, igualmente e, por consequência, as do leitor, todas guardadas sabe-se lá como e protegidas por quantas chaves e enigmas que não se pode contar!
A leitura, a escrita, as letras, a literatura, enfim, é, por isso tudo e muito mais, uma atividade mágica, fantástica, fabulosa, fantasiosa e real, virtual e concreta, ficcional e realista. Ela transita entre os mundos externos, palpáveis, profundos e imaginários. Nele tudo é permitido, proibido, livre e contido, reprimido e liberto. Nelas se misturam sentimentos e racionalidades, lógicas e caos, percepções e insensibilidades.
Lendo "O réptil melancólico", principalmente quando evoca a vivência militante e os seus traumas existenciais, senti o quanto podem ter sofrido os que tentaram resistir contra os regimes autoritários e perderam suas identidades, seus territórios, suas nacionalidades, suas famílias, seus parentescos, suas cidadanias, suas memórias e a si mesmos como referência existencial.
Fábio Horácio Castro se revela como uma espécie de mago para dizer sobre os sentimentos de ser não sendo, viver como se não tivesse nascido, existir em um lugar que, embora tenha sido o de seu nascimento e suas primeiras memórias, não é o seu, ser tratado como alguém que não se reconhece no que o outro vê e identifica como sendo.
“O Réptil Melancólico” é um romance denso, dividido em cinco partes denominadas como livros. No primeiro livro, intitulado “A releitura” (pg. 13 a 117), em 104 páginas, ele trata do exílio para o qual seu personagem central teve que ir levado pela mãe que se sentiu na necessidade de buscar o desterro para sobreviver, ou para se manter viva e livre das ameaças que supunha permanecerem depois de um processo cruel de prisão e torturas em um país tomado pelo ódio humano de militares contra civis no mais profundo fel.
O autor, narrador, eu literário explora as categorias do ser desterrado, despatriado, desautorizado pela perda das coisas mais próximas, dos afetos mais profundos e de outros que poderiam ter evoluído, mas foram impedidos por segregações de classe e inclusão ou exclusão familiar. As tentativas de voltas, as releituras aos lugares e reencontro com pessoas conhecidas em um passado remoto, resultam em encontrar lugares e pessoas estranhas, embora lugares ancestrais e pessoas familiares próximas como avós, tios, primos carnais, porém distanciados pelas experiências e perspectivas ideológicas de cada um. Lugares como bairros, ruas, praças e casas por onde andou, pisou, circulou, já não são as mesmas por conta do tempo e das transformações físicas que ali se deram sem que eles vivessem essas mudanças. A profundidade com que ele trata dessas perdas ou mudanças de percepção e distanciamento é comovente, nos levando juntos para nos identificarmos com ele, acionando em nós uma empatia profunda porque cada um de nós teve e tem uma mobilidade muito mais ampla do que consideramos ter. Ele nos convence de que é possível ser exilado em seu próprio país, família, mundo. Mas é muito pior ser exilado fora do seu país, estado, cidade, rua, bairro, família, vizinhança.
Algo que me chama a atenção é que os dois elementos fundamentais que estruturam a percepção humana são trabalhados à exaustão nesse texto: os deslocamentos no tempo e no espaço. Ali se retrata o tempo dos enfrentamentos de militares e militantes, pela ação armada destes resistindo ou sendo reprimidos, presos, torturados e mortos, representando a geração dos seus pais brasileiros, e o tempo do exílio da criança que mal teve tempo de se identificar com o espaço de suas vivências da tenra infância e com elementos de sua ancestralidade, ancoradas principalmente na figura de um avô que incomoda por conta de ter ligações de sangue com ele, mas ao mesmo tempo demonstrar ausência de sentimentos e uma exacerbada postura ácida, crítica, distante, mas não fria e diametralmente oposta ao que ele teria como referência.
Há quem considere exílio apenas aqueles deslocamentos forçados por situações críticas como a guerra, a fome, a seca, as ditaduras. Essas são, sim, mais visíveis, duras, insuportáveis ao ponto de fazer o sujeito sair de si, de seu território, de seu espaço físico ancestral e vivido para ir para onde é impossível construir ou reconstruir todas essas referências. A noção de espaço se materializa por descrições de uma geografia principal detalhada, inicialmente de Belém e de Paris, depois de Lisboa, mas também com menções à floresta e rios onde se deu a guerrilha do Araguaia. Impressiona o domínio que o narrador demonstra da geografia das cidades com as quais se relaciona, demonstrando uma vivência e uma criatividade muito grande ao apropriar detalhes arquitetônicos e urbanísticos desses lugares.
A imagem do réptil melancólico é profundamente enigmática porque permite uma interpretação camaleônica, despida de uma linguagem humana e convencional. Ele, Fábio Horácio Castro, nos mostra como o silêncio, ou o não uso de uma língua e sua infinidade de sinais pode não ter sentido quando se é o que não se é. Ao mesmo tempo demonstra como o silêncio pode ter significados densos, carregados de expressividade. O réptil melancólico é um instigante personagem e narrador que se desdobra em toda a narrativa, indagando, se posicionando, refletindo e espelhando sentimentos humanos.
O livro II, em 96 páginas, se intitula o “cão do meio dia” (pg. 121 a 217) e reflete diálogos em um cenário familiar, doméstico. A impressão é de um foco mais intimista e relacional entre pessoas em uma casa referência. O calor do meio dia me pareceu ser o da proximidade familiar e de um aquecimento pelo contato direto.
No livro III, em 51 páginas, intitulado “a confissão” (pg. 201 a 252), o que vem à baila são narrativas de sofrimentos físicos e psicológicos provocados por torturadores a militantes políticos e seus familiares durante o período da ditadura brasileira instalada entre 1964 e 1985. Para quem conhece depoimentos dessa natureza pode ver semelhanças com as narrativas divulgadas em depoimentos de presos e torturados à Comissão da Verdade, mas as que vem nesse romance vão além das sequelas físicas que os algozes deixam em suas vítimas. Não há como ficar isento de um sentimento de horror e desumanidade impostos a crianças, jovens, adultos e idosos, homens e mulheres naquele período.
O livro IV, em 85 páginas, intitulado “Eskhatheia” (pg. 255 a 340) coloca em pauta a discussão sobre os processos colonizadores ocorridos no Brasil e na África, ora fazendo paralelos, ora tratando das especificidades, em um instigante debate sobre as tentativas de romper com passados coloniais e como eles permanecem fortalecidos, apesar do embate dos militantes políticos com seus oponentes. O nome que dá título a esse livro é explicado de forma curiosa, intrigante, trazido do grego com o significado de “fim do mundo”, para falar de lugares que eram iguais aos outros, mas que assumem uma espécie de complexo de inferioridade.
O desfecho, em apenas 40 páginas, vem no livro V (pg. 343 a 383) intitulado “O Cristo bicéfalo” em que se revela a dualidade redutora da capacidade de análise do ser humano em interpretar movimentos mais complexos, seja da própria alma, seja do que ocorre no ambiente social, cultural e político. Durante todo o livro a dinâmica dialética predomina seja na narrativa, seja nos debates, o que torna a leitura um verdadeiro exercício de filosofia e imaginação.
Parábolas, estórias e histórias se misturam, utilizando o autor um vasto cabedal de recursos linguísticos e literários na construção de seu texto. Mesmo tendo ruminado as passagens simbólicas fiquei me perguntando sobre o uso de algumas figuras, obrigando-me a buscar apoio em livros que me permitissem uma melhor compreensão ou um diálogo mais profundo com o texto. No livro ilustrado dos símbolos de Miranda Bruce Mitford (2001) encontro no capítulo sobre Répteis e anfíbios que: “o costume do lagarto de ficar ao sol simboliza a busca do conhecimento. Os romanos acreditavam que ele hibernava, por isso representava morte e ressurreição. Para alguns índios o lagarto tinha magia” (Mitford, 2001: p. 58). Com esse aporte, muito se pode compreender do uso recorrente do réptil ao longo de todo o romance.
Fiquei aguardando uma explicação sobre o guarda-chuva no caixão como exigência de Maurício, pai de Felipe. Nada encontrei no livro de símbolos de Mitford (2001) nem em “O grande Dicionário de Sonhos” de ZOLAR (2011). Nos sites de busca guarda-chuvas, dizem, tem significados ligados à proteção e poder, mas não sei se era isso o que Fábio Castro quis sinalizar em sua obra com um personagem que leva um equipamento desse para o túmulo. Há outros elementos simbólicos ali descritos como cães, poços, casas, ruas e edifícios que trazem cargas de profunda reflexão e que certamente evocarão sentimentos e interpretações as mais diversas.
O livro tem uma carga ideológica, como toda obra literária seja, ela ficcional ou científica, porque esse é o papel da literatura tanto quanto da ciência: o de provocar a reflexão e o reposicionamento do ser humano diante da realidade ou do que ele crê ser concreto e produtor de ideia.
Li com dificuldades, confesso, brigando com formas e proposições heterodoxas da ortografia, mas sobretudo com o jogo de interpretações dialéticas que se espraiam por toda a obra. Terminei com uma impressão de que preciso voltar mais vezes à leitura e quem sabe, a uma conversa demorada com o autor, se a oportunidade me for oferecida.
Sabendo que “O Réptil Melancólico” ganhou o Prêmio SESC de Literatura em 2021 e que o autor andou Brasil a dentro se dispondo ao debate e diálogo sobre a obra, fico imaginando a sorte dos leitores que puderam desfrutar desses momentos preciosos de poder confrontar criador e criatura e poder expor suas impressões e ouvir outras que a presença suscita e permite. Recomendo, sim, a leitura imediata d “O réptil melancólico” a todos os que não tenham medo de afrontar dogmas e dúvidas, fé e ciência, filosofia e humanidades, concreto e abstrato, ficção e realidade.
Obrigado pelo texto!
ResponderExcluirObrigado pelo lindo texto sobre o Réptil.
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