Resenha: Viagem na história do transporte aéreo na Amazônia

 




Viagem na história do transporte aéreo na Amazônia

Resenha: PESSOA, Octávio. Asas de um rio. A saga dos Catalinas na Amazônia. Belém: Editora Paka Tatu, 2020


Por Gutemberg Armando Diniz Guerra


       Têm livros que merecem muito mais do que ser recomendados. Devem ser adotados pelas escolas e serem utilizados como material de aprendizado dos assuntos de que costuma tratar. É o caso de Asas de um rio, escrito por Octávio Pessoa, sobre os hidroaviões Catalina e, muito mais do que isso, sobre o contexto das primeira e segunda guerras mundiais, da política e história do Brasil, com detalhes e um didatismo que encanta o leitor, instruindo quem dele esteja se apropriando na leitura atenta da escrita feita com riqueza de detalhes. 

O livro é muito denso de informações e demonstrativo do que pode produzir um trabalho de pesquisa de muitos anos de investimento. Ao disponibilizar o que sabe sobre os hidroaviões e anfíbios, a elaboração do personagem e o enredo que segue revelam a vida de um jovem com origem no interior do estado, com passagem na capital paraense, em outros estados do país, em particular os do Sudeste, findando em uma imersão nos Estados Unidos, quando se encerra o inspirador romance ficcional que se desenvolve na narrativa.  

O esmero na edição é uma característica que se pode notar desde a capa, concorrente na Bienal de São Paulo ao prêmio de melhor ilustração. O texto tem muita precisão na revisão, ainda que se possam encontrar alguns raros deslizes em uma narrativa descritiva longa, o que é outro sinal de cuidados aparentes nessa publicação.

O advogado e jornalista Octávio Pessoa demonstra intimidade com os métodos de pesquisa e a paciência de quem constrói conhecimentos sólidos sobre um determinado assunto, com demonstrações de uma vigilância epistemológica descritas com muita competência na construção que faz do personagem central, um jovem de origem ribeirinha da cidade de Parintins, no estado do Amazonas, com passagens no Pará, em Santarém e em Belém. Encantado pela tecnologia dos objetos voadores que amerrissavam e decolavam diante de seus olhos, ele não perdia nenhuma nuance de todo o ritual que implicava no embarque e desembarque dos passageiros. 

Chama a atenção as descrições detalhadas que o narrador faz, permitindo ao leitor uma volta no tempo para a compreensão de categorias profissionais que não mais existem, como a do catraieiro que operava o embarque dos tripulantes e passageiros entre o cais ou rampa e os hidroaviões. 

Ele acompanhava o movimento dos passageiros desde a extremidade da rampa em que se concentravam para embarcarem numa catraia, grande canoa a remo movida por um homem, o catraieiro, que os levava até o avião que ficava atracado a uma boia localizada em frente ao Mercado Municipal da cidade. (P. 16).

Victor, o protagonista, cresce e se desloca no tempo e espaço em uma narrativa sóbria, culta e muito comportada, obedecendo aos rigores de uma educação esmerada nas escolas que frequentou e nos contatos que teve lhe permitindo maior compreensão sobre a história dos catalinas. Esse aspecto ganha corpo principalmente no encontro com Kevin Scott, um americano formado em História na Universidade de São Paulo e que, com a morte do pai e herança das terras que ali adquiriu no período inicial do século XX, vem morar em uma fazenda em Santarém. Engenheiro empregado na empresa que fabricava os catalina, o velho Scott deixara com o filho Kevin todo o arsenal de informações que seria repassado a Victor em um encontro muito bem descrito entre os dois. Mas os informantes do jovem apaixonado pelas máquinas voadoras não se restringem a esse americano internalizado na Amazônia. Passa por trabalhadores da aeronáutica e marinha, tanto quanto por encontros anedóticos, isolados, aproveitados pelo atento Victor para explorar e aprofundar seus conhecimentos. Para se ter ideia dessa perspicácia, uma importante pista é dada a ele em uma noitada no Palácio dos Bares, quando em uma frase solta por um boêmio, Victor vai descobrir e revelar a importância histórica do Bairro da Condor nos transportes aéreos da região.

Nas descrições detalhadas, desfilam personalidades políticas e da elite paraense, o que faz o leitor ser informado sobre muitos aspectos dos costumes, geografia e muitos outros aspectos da capital paraense. O mais comovente, porém, são os contatos com as fontes e documentos que Victor vai juntando para dar densidade à obra, como o encontro com um ex-catraieiro do tempo dos catalinas. Este informante morava em um dos cantos retirados da região de Santarém, na povoação de Vista Alegre. Em uma visita a Santarém, informado pela então viúva de Kevin Taylor sobre a existência de Mundinho, ele recebe graciosamente duas fotografias que teriam sido feitas, uma do próprio Mundinho, por Mário de Andrade em sua passagem pela região e outra por uma terceira pessoa, retratando os dois nesse mesmo encontro (p. 118-120). Essa foto vem anexa na página 220 da Seção fotográfica que compõe a obra resenhada.  

Impressiona a narrativa fluindo como partilha de muitas informações como o deslizar das caudalosas águas dos rios e igarapés amazônicos. As pessoas com quem Victor se encontra e Octávio Pessoa descreve são pessoas desprendidas, puras, talvez excessivamente idealizadas, mas com a exata noção da temporalidade e do compromisso com suas histórias e identidades. 

Detalhes da sociabilidade provinciana é descrita com um grau de fidelidade que pode ser utilizada pelos antropólogos nos estudos das históricas sociedades ribeirinhas amazônicas e, em particular das classes sociais ali expostas. Comensalidade, religiosidade, relações afetivas e de dominação vêm com muita clareza expressas no cristalino texto do romancista. 

Pode servir para os mais jovens e que não viveram as turbulências históricas do país, a descrição das manobras políticas durante e na transição da ditadura militar para o regime civil, nas décadas de 1960 a 1990. Octávio Pessoa não se furta à narrativa sobre o final do regime militar, a tentativa frustrada de implantação de eleições diretas por uma proposta de emenda constitucional, os arranjos feitos para a eleição de Tancredo Neves e sua morte antes de tomar posse como presidente civil da república, cabendo ao seu vice, José Sarney, a tarefa de governar durante 4 anos o combalido e excitado executivo nacional. 

Mesclando a vida romanceada de Victor Peçanha Fonseca, formado em Medicina, com a história política do Brasil, o texto vai muito além do que se poderia esperar como conteúdo didático ou informativo sobre o transporte aéreo no continental Brasil amazônico. 

O reconhecimento sobre o acúmulo que o autor faz Victor passar em sua trajetória de vida e pesquisas sobre os catalinas teria valido ao protagonista do romance um convite de uma empresa americana que teria comprado um avião que encerraria suas atividades com uma derradeira viagem para os Estados Unidos. Essa viagem teria coincidido com a aprovação da aceitação do médico para um curso de doutoramento na Universidade de Harvard onde também se encontrava Andreza, uma paixão da juventude, inviabilizada primeiro pela distância, depois pelo casamento da amada, mas mantida como esperança após a separação que ocorrera e da qual tomara conhecimento em um encontro casual com a mesma mulher de seus sonhos.

O romance termina deixando perguntas no ar, não respondidas, sobre o que teria acontecido a Victor depois de seu doutoramento em Harvard. 

O livro prossegue com o seu propósito e protagonismo dos catalinas, com um generoso Posfácio recheado com tamanha quantidade de dados que mereceria uma sistematização em forma de quadros, tabelas, mapas e gráficos que permitissem uma visualização panorâmica aos leitores, do quantitativo de aeronaves incorporadas ao intenso trafego aéreo, tanto quanto a participação dos setores privados e governamentais articulados no uso desses artefatos. A Força Aérea Brasileira e empresas de Transportes de brasileiros se destacam nesse relato detalhado que Octávio Pessoa nos oferece. 

A impressão que se tem nesse detalhado relatório do Posfácio sobre os Catalinas que operaram na Amazônia é que o autor quis oferecer todas as informações arrebanhadas durante seu processo de pesquisa, o que ele assim faz da página 153 à 190. Chama a atenção a quantidade de aeronaves acidentadas em muitas cidades amazônicas, alguns com vítimas fatais, o que mereceria referências e marcos locais que ativassem a memória dos moradores desses lugares. 

Os numerosos acidentes permitem e poderiam fazer pensar que teriam sido eles a causa da aposentadoria dos catalinas, entretanto, em seu exaustivo trabalho, Octávio Pessoa apresenta outras razões muito convincentes, ao eviscerar mais uma vez as entranhas da política brasileira e demonstrar que alianças e acordos favoreceram interesses empresariais de apoiadores do golpe de 1964, deslocando setores progressistas para a margem da História. Diga-se que temos aqui uma rica fonte de informações sobre a aeronavegação brasileira, mas também das instituições governamentais militares ligadas a este setor estratégico para o país. 

O livro oferece ainda um glossário, uma seção fotográfica com recortes de jornais dando conta de fatos históricos, imagens de personalidades, aviões e ambientes apropriados no decorrer do romance e mais, o que o autor chama de bônus, qual seja um artigo que publicou prometendo escrever um romance, o que materializa e cumpre com essa saga. 

Não se pode deixar de fazer menção em uma resenha como esta, à estrutura do livro que o autor mascara sem fazer divisões formais de capítulos, mas demarca o tempo cronológico da vida do protagonista com cartas que encerram ou iniciam fases de sua vida. 

Octávio José Pessôa Ferreira é jornalista e advogado, mas nessa obra comparável a uma tese de doutorado romanceada, qualifica-se aos cargos que vem exercendo como liderança dos setores literários no Pará como a Academia Paraense dos Jornalistas e a Academia Maçônica de Letras do Estado do Pará. É autor de Causos amazônicos, livro que recomendo igualmente para melhor conhecimento das habilidades desse autor.

Enfim, como dito no início desse texto, o livro é recomendável para o público mais expandido que se possa ter, mas em particular para os jovens brasileiros que ali podem muito aprender sobre o Brasil como um todo, mas em particular sobre a Amazônia que se encontra no foco das abordagens sobre as transformações recentes na

 vida humana no planeta.

Comentários

  1. Crônica maravilhosa, é como fazer uma viagem ao passado, mesmo não tendo sido minha realidade tem algo místico que somente um texto bem redigido e refinado pode proporcionar ao leitor. Costumo falar que seus textos prof Gutemberg, tem um poder persuasivo que faz o leitor de entregar e viver a leitura como se fosse a realidade.

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  2. Segundo os livros do Proferssor Ubirajara Umbuzeiro, os primeiros vôos que atenderam a cidade de Altamira, eram os Catalinas que pousavam no Rio Xingu

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