O matador - Mateus Saraiva

 

(Guy Veloso)


O matador


Diariamente tomo entre as mãos a caixa onde estão os restos mortais do meu amigo. E sofro. Sozinha, sem outro rosto, outra esperança, é-me impossível voltar a acreditar.


Maura Lopes Cançado


Falamos, gesticulamos, soluçamos, puerilmente, em torno dele — que não nos ouve nem nos conhece.


Ferreira Gullar



Para Diene Lisboa




  O domingo é vazio, próprio de todos os domingos, que sejam vazios, desérticos. 

  A cidade é uma carne trêmula, aqui, me olhando, vibrando as coxas dúbias, os olhos notívagos sobre mim. Passo em frente ao Tribunal de Contas, qual o nome dessa rua, não lembro, me deixo deslizar porque o céu está nublado, porque as pessoas dormem, porque miro os olhos baços sobre a pedra. A pedra é o vórtice do tempo. 

  Lúcido, pouco mais de um mês, fostes delírio. Miro a arma na nuca, na nuca dele, deste homem que tem os olhos esbugalhados, uma tatuagem de dragão nas costas, costas lanhadas. Miro a arma e sei que vou atirar, sei que vou matá-lo.       

  Andando pela rua quase escorrego em uma manga podre. As árvores todas enfileiradas, os rostos rugosos, as horas graves, carros-pipa, etc; a palavra frágil, tudo que antecede o desastre; ruidosa, minha boca ferida de eternidade. Pelo primeira vez, minhas mãos tremem, como treme minha boca esmagada, o jambu entre os dentes, a farinha entre os dentes; miro, esse homem que não conheço, sou indiferente a quem ele pode ser, quais seus sonhos, quais suas marcas de nascimento, seus sons favoritos — o meu é o som de uma respiração pesada, o som do serrote na madeira, o som de uma televisão sem sinal, o ruído — quais as formas inexatas de que se faz um desejo, vagas as línguas mortas, os olhares no arrebol. Encosto a arma na nuca, e pressiono.  

  Continuo andando por essas ruas estreitas, as luzes neon nas vitrines, o cheiro de gasolina, as poças d'água depois da chuva. Visto uma camisa social preta com listras cinzas, uma calça jeans azul-escura, o 38 na cintura. As nuvens pinicam no céu. Os prédios cheios de musgos. As janelas abertas, por onde entra a luz de um sol decepado, por onde entra o ar rarefeito, por onde se espia o movimento absoluto dos ossos. Talvez eu estivesse sido outro. Os caminhos que se tomam, as pessoas que encontramos, o que lemos, o que sofremos, acho que, essa experiência irredutível da dor, de alguma maneira, cria uma vibração que emana uma certa matéria espessa, por onde guiamo-nos, cegos, vagos, irrefreáveis. 

  A morte é lenta. A morte é a imobilidade. Sei que mato, quando tudo é silêncio, assim como deus é silêncio, o lugar místico da ruína.

  Mamãe, me perdoe, digo, mamãe, a vida toma sentidos torpes, pútridos, não tenho vergonha, me perdoe, as vozes cheias, as vozes cruas, a palavra me fere, mamãe, eu matei pessoas e sinto que minha hora está chegando, talvez a salvação seja estar perdido, mamãe.

  Entre o momento em que encosto a arma na nuca desse homem, e o momento em que puxo o gatilho, há como que a irradiação de um silêncio paralisante, a mudez de um corpo, tão inerme, tão quente ainda, o sangue escorrendo, uma massa amorfa fora da cabeça, e a imagem do dia em que fui na praia pela primeira vez, em que quase me afogo, os navios distantes, sumindo, as ondas quebrando na areia, o vômito, o frio, e a sensação de que tudo é sonho, um sonho em que morri afogado e que estou roxo, roxo, e inchado.

  Morto.

  Você morreu tão nova, eu tinha 15 anos, desde lá tento encontrar você nos rostos sem viço, opacos, e mudos.

  Há um eco que corta a mata. Cantos de pássaros. O campo é o exílio. Entrar no campo é estar mundiado na língua. Mais pra baixo da várzea só há mangue. Não disse nada ao trazê-lo pra cá. Só havia silêncio em mim, como só havia silêncio no rosto dele. Simplório. Há reentrâncias no tecido fino da carne do mundo, a voracidade da carícia na pele, tíbias fraturadas, manias meticulosas, a lágrima no rosto, a lâmina maníaca na epiderme; um caranguejo na terra seca. Não escuto o que ele diz, só um ruído fino entre os dentes, só um fantasma que me acompanha.

  A primeira vez que matei, era um dia de sol, o dinheiro era bom, usei esse mesmo 38, tive que chegar bem perto pra não errar. Depois tomei um banho, li Jorge de Sena sentado em uma cadeira de plástico, o rádio de pilha ligado, deus era o todo em todas as coisas. Um dia. A glória das coisas mudas. Disse a mim mesmo. Pensei que. Só então percebo que meu rosto está um pouco sujo de sangue, na maçã esquerda. Me olho no espelho. Enrolo tabaco. A linguagem das flores e das coisas mudas. Choro a noite toda. 

  Sou matador de aluguel — comecei com dezoito anos, não tenho residência fixa, sou do signo de áries, tenho 1,75, cabelos ralos, barba feita, um rosto comum, não tenho muitas tatuagens, só um verso no glúteo esquerdo que diz seios decotados não me deixam ver a cruz — e poeta.

  As ruas são estreitas e vazias.

  Penso na casa onde passei a infância. As tábuas pintadas de azul-marinho e branco. Os olhares da matinta pelas frestas. Os assobios noturnos. Os corpos noctâmbulos. Os espasmos. A mesa suja de farinha, os copos de alumínio, a tv fora de sintonia. Uma casa guarda em si sua própria ruína. Essa lembrança se mistura com a casa demolida, apenas o piso sobrando, o chão avermelhado, o que resta: os monturos. Ver: a ruína do íntimo. Olho a rua e penso nisso. Pode-se descrever uma paisagem tendo como modelo a casa da infância onde fomos mais ou menos felizes (ou tristes) na mais remota infância. A casa persiste como ruína.

  É quase noite, o 38 apontado pra essa cabeça que flutua como numa pintura.

  Sou um homem sem costumes arraigados, no entanto, não quero perder nada, nem o que eu mesmo abandono, como uma permanência translúcida e inacessível.

  Dobro em uma esquina qualquer. Entro em um bar que não vejo o nome. Narrar é como nadar, diria Cesare Pavese.

  Bebo uma bohemia. Escrevo no guardanapo. 

  A fímbria das cidades fantasmas, mudas no arrebol

  como que plácidas, com o sexo exposto, vulva e carne.

  Margens obtusas, milagres na língua, há signos e vórtices. 

  Por isso adormeces quando falas e amas todas as tardes irremissíveis.

  A cano longo. Calibre 12. Um buraco no corpo teso, ainda me olhando. Funesto, dúbio. A fina tessitura de palavra e fogo na carne derruída. 

  A casa é de barro. A espingarda encostada na mesa. Uma lamparina acesa. Tomo um gole de cachaça. O corte de faca bem no bucho, sangrando adoidado. Talvez eu quisesse a morte. Morrer desde o primeiro dia. Ir de encontro aos píncaros celestes. Tu me esperas, com castiçais dourados e línguas nuas, intangível. Pressiono a ferida e adormeço na rede suja de sangue. Uma sede. Sinto uma sede imensa. Uma secura. Um sufoco no meu peito, a solidão; lá fora, chove.

  Minha filiação demoníaca é a fome.

  Partos áridos, um rosto alienígena, a palavra ácida, pulsátil. 

  Vejo-te na mesa ao lado. Essa música escrota. Um dia vou escrever um livro que seja sempre uma véspera, a antecipação de um segredo. Um dia vou passar em frente a uma igreja, dizer bem, vou acreditar em deus, ou deus me perdoe, ou o pudor é a forma mais eficiente da perversão, ou sinto tanta saudade de vovó, ou apenas gritar e ir embora. Um dia vou escrever um livro e me entregar pra polícia. Um dia vou fugir pra Cartago. Vou amar arredio, ambíguo, sem máscaras, em uma língua fenícia. 

  Vejo-te na mesa ao lado. Um dia vou te contar esses segredos ilegais. Um dia vou te contar a história natural da dissolução. Escrevo em mim os cadáveres enterrados, todos os que matei, uma matéria viscosa, plasmática, fremindo, todo o amor irremediável, as noites porosas. E o início de uma nova língua, agora que sou desmoronado, sem salvação, ferido de morte, esquecimento.

  E tu dirás: a ruína do íntimo. E tu dirás: acho que não trouxe a bolsa. E tu dirás: estou à espera de uma nova forma de expressão, do nascimento de uma língua-mapa. E tu dirás: estou translúcida. E tu dirás: estou toda nos olhos, por trás do abismo. Dirás também que a realidade é a pedra. Dirás que a realidade é o signo volátil arranhado nas paredes de um sítio arqueológico, o primeiro símbolo, a imediatez da cisão, o corpo florido onde passam peixes e a água escorre e isto é beleza.

  Sento na sua mesa. Cruzo as pernas. Te olho de esguelha. Tu me fitas, submersa em algum líquido invisível, prendendo a respiração. Num átimo levantas e se ergue, e lança o rosto em direção ao meu, e o beijo na bochecha é pesado, como se não tivesses consciência da força que colocas em cada movimento. 

  A arma engatilhada. Esse homem que chora. O tempo delicado das armadilhas.

Agora as rosas nuas perdem suas pétalas. O sono toma a casa. Meus dedos de acídia. Meu olhar hipocondríaco. O sangue circulando o espanto. Estou branco de pavor, mudo, grave. O céu perfurado de estrelas. A cadência dos milagres. Vejo-te entre pedras e pássaros. As ruas são estreitas e vazias. Hoje é domingo. Alguma coisa nos falta. Piscas o olho esquerdo. Os hipopótamos cruéis, macrobióticos, finos, embaixo de álamos, portas fechadas, a ritualística de um nome que instaura uma poética míope, de tudo que não pode ser dito. Os luares insones, vagos, sobre os lagos que escondem um corpo morto, desaparecido, fantasmático.

  No instante seguinte vou atirar, sei que vou atirar.

  Me olhas de perfil, fito-te lateral. Me lembras uma atriz, a Minnie Driver. O rosto marcado, geométrico. Usas uma blusa preta, uma bermuda, e um coturno, altiva, sóbria, gutural, como se soubesse algo, como se conhecesse a substância cristalina e delicada da coisa úmida, o sopro, as formas abstratas de um corpo, o esqueleto da língua. 

— Tu parece assustado — Diz enquanto abre a bolsa.

— O espanto é próprio das coisas reais.

— Nada mais certo. Nada mais certo. Que música escrota — Um casal que dança (a música escrota) esbarra na nossa mesa. Já é tarde, não vi as horas passarem. A noite é oclusa. Ela ajeita o corpo na cadeira de metal. 

— Esse dia é tão vago.

— Como são os domingos.

— Gosto de terça-feira, terça-feira é verde, gosto de verde.

— A sexta é melhor, é vermelha, é quase sábado, é tudo que queremos, é tudo que ansiamos. Nós, os proletários. Os sonâmbulos.

— Desejamos a noite e os segredos da noite.

— Não tem segredo, cara. As coisas são isso. Reluzentes, claras. Assim como tu me vê.

  Assim como eu te vejo — Tira um espelho da bolsa e retoca a maquiagem. Me olha trêmula, astigmática, como que longe, tentando acessar um núcleo misterioso.

  O espaço arde. Os homens queimam. Pensas se Kardec comprava relógios suíços ou palitava os dentes. Galopes e urros: a exterioridade da pele. O toque: límpidos os dentes, placas tectônicas movem-se num ritmo agudo. Os pássaros celestes. A cidade é noctâmbula. Uma vaga sensação de reumatismo nos ossos. Um cheiro de carvão. As retinas dobradas, soníferas. Você sabe. Você diz que todas as coisas cooperam para uma autobiografia-antes-da-queda. Você diz que deseja essa nudez anterior, inconceituável, gravíssima, essa linguagem arcaica, nua, onde tudo é ainda inacessível; onde a palavra ainda não é assassina, onde não há sangue entre os dentes — e há um filete de sangue em minha gengiva e você sabe. Buscas o inomeado. Buscas aquilo que é sem nome. Estou nu diante de ti e sinto vergonha. A detumescência. A claridade dos signos ásperos e febris na garganta. Sabes o que queres. Estou perdido. Tiras da bolsa uma faca e corta meu pescoço. Se diz vingadora de um tempo carnívoro: ele mesmo de antes, quando não havia o silêncio permeando o abismo da letra inscrita na carne, quando ainda havia música ondulante na superfície das pedras brutas, e a língua era um futuro excessivo, esfacelado. A cidade ainda dorme. Somente esse bar aberto na madrugada. Não há piedade no signo. O ser é excessivamente inexequível, e nos fere de morte. 

  O som dos pássaros celestes. Ele sabe que morrerá. Eu sei que irei atirar. E o mundo ainda será o mesmo.

— Tem isqueiro aí?

— Não tenho — digo, olhando pra fora, chove.

— Você trabalha com o quê? — pergunto.

— Moda. Trabalho com moda. Sou advogada também. Mas trabalho com moda. 

— Parece feliz.

— Sou o que tenho que ser.

  Parece que a tatuagem de dragão se move, está viva, e me olha, rugindo. Finalmente atiro. O homem está lá, morto. O sangue escorrendo pelo chão, a viscosidade rubra recobrindo a placidez de vidro da coisa. O mar é tão longe daqui. Os miolos expostos, a carne do mundo. O mar é tão longe daqui. O sinal da destruição muda do gesto: todo o amor se transforma em uma violência perigosa. O trabalho está feito. Esse manguezal que parece vivo e sabe o que fiz. Algo sempre me ronda, apontando, dizendo, imperativo, implacável, que não há mais tempo. Aquele rosto morto sem remorsos, de bruços, enquanto eu apodreço gasto, sem além, somente a imensidão íntima de um vermelho: o sangue.

— Belém é utópica.

— Tu é meio utópica. Transparente.

— Acreditas que ainda hoje tudo que é voraz consumirá a madrugada?

— É impossível sair da forma. Nada está ileso. 

— Fumas?

— Parando. Faz cinco meses.

— Ah, o milagre da autodestruição.

— A morte é um espaço limítrofe entre um passo e outro.

— Sabe, acho que o que mais me aflige é a morte. Nunca estamos preparado pra isso. A morte da mãe, do pai, é impossível fugir disso. Tive uma amigo, até hoje, eu lembro dele, acho que a memória é uma forma de não morrer, ou pelo menos de perdurar. Talvez não de uma forma pura. Mas de todo modo, uma certa cintilação permanece. E isso que importa — ela fala me olhando furtiva, sou escritura e esquecimento, hipócrita, morto, intraduzível, e quem sabe, ela saiba disso, de alguma forma obscura e desconhecida.

— A primeira vez que vi um morto. Eu tinha nove anos. Era um bêbado que tinha morrido afogado. Cheguei perto e vi o corpo inchado e roxo. Até hoje tenho um medo agudo. Não do morto ou de mortos. Mas do morrer. Desde esse momento, sempre me falta a respiração. Sou asmático.

Essas vozes agudas e ventanias abruptas.

— O infinito nos persegue — Ela diz.

— O infinito é meu destino vazio.

— O infinito é o nunca ou o sempre.

— Não sei.

— Tu não bebe vodka?

— Só cerveja.

— O mundo se reconstrói sem ideal e nem esperança.

— E o dono da tabacaria sorri.

(silêncio) — O que você faz?

Mato pessoas por dinheiro, penso.

— Faço bicos. Faço instalação elétrica. Serviços gerais. Tenho técnico em eletrotécnica. E sou poeta, também.

— Só restam os doidos e os poetas na terra.

— Se você acha.

— "O homem é grave. E não canta, senão para morrer."

— Eu aguardo o assombro.

— Você vai voltar?

— Tudo depende de um certo mistério no fundo da paisagem.

— Há uma paisagem em você?

— Sim, mas uma paisagem destroçada. Ruínas.

— O tempo não existe. 

— Só esse espaço fixo nos olhos, a ardência.

— Só o poema existe. Só a língua existe. Só o texto que é esse lugar hérmetico, de onde não se pode fugir. Só resta trapacear na língua, não é?

— A língua é nudez e encobrimento.

— Já é tarde.

— Quem você espera não vem.

— Eu nunca espero alguém.

— Tu vai voltar?

— Adeus — Levanta-se. Acende um cigarro. Passa as mãos nos meus cabelos ralos. Olha pra fora. 

— Adeus.





Mateus Saraiva é poeta, nasceu em Vigia de Nazaré (Pará-Brasil). O autor prepara ainda o seu primeiro livro de poemas, Entre Touros e Anjos.

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