A Velha Que Desarrastou Os Pássaros De Uma Criança - conto de Isadora Salazar

(Joyce Luz)
 

A Velha Que Desarrastou Os Pássaros De Uma Criança


Isadora Salazar


A


 Meg Guimarães

(mulher cuja palavra faz meu denso feixe de pássaros voar)


Edgar Borges

(que sempre saca tudo de referências)


Edyr Proença

( o primeiro click )


Aracy Amazonas Barreto

 (padrinho médico de tantos  primeiros atendimentos) 


A memória de todas as vítimas da Covid 19 no Brasil


e


A todos os que ousam acorrentar

(um lembrete)



Sob o sétimo sol da ilha do Mosqueiro, existe uma velha que arrasta pássaros.

─ Não tem jeito. Nasceram acorrentados a mim!. ─ Responde essa velha aos transeuntes outros de seu passeio. E os pássaros, esses que amarrados todos juntos por cada uma de suas patas tal qual bolas gás hélio de vendedor de praça de igreja matriz que os segura pelas hastes, ensaiam voos baixos de colisão e reconhecimento, enquanto cagam titicas sobre sua  cabeça e sobre as cabeças escalpo  de todos os outros velhos que dela tentam se aproximar. Eventualmente, quando a força da velha é maior que o desapercebido dos pássaros, ela os arrasta para uma direção contrária àquela comandada por suas bússola rosa dos ventos, e conquista para si um amendoim, um naco de hot dogs, um grão de pipoca ou um vintém de doce. E fica feliz. Mas os pássaros, ao observar suas conquistas, ainda mais enfurecidos do que antes, somam à tarefa diária de arrancar-lhe as carnes, o devorar de seus lanches e brisas, o arrancar de suas orelhas, garganta, avessosAng, mãos, sombras, roupas, testa e nariz. ─ Eles venceram! ─ a velha grita aos transeuntes outros e também aos outros velhos da praça enquanto, entre lágrimas, escuta Belchior no velho rádio de válvulas movido a pilhas de gato preto compradas por sua avó.

─ Nós vencemos! – crocitam entre si os pássaros, repletos de si menor e em seus coros de anjos branco da noite. 

E então a velha prostra. 

E quando prostra vê que os pássaros, ainda acorrentados a ela, tal qual bolas gás hélio sob imensa ventania, a arrastam; vê braços em riste e ao alto, enquanto esses pássaros voam para o lado que bem eles entendem. E a velha, ainda acorrentada às suas argolas, vê que engole pedrícolas de ouro e poeiras de prata enquanto esfacela seu couro e crânio em meio as rochas e ao asfalto que agora já lhe marca a cara.

E então, a velha amanhece.

E então, a velha que amanhece observa os outros pés descalços;

Observa os saltos, rasteirinhas e sandálias; 

Observa as botasbotinasˢ de um palhaço que a maioria dos transeuntes outros, sem perceber coisa alguma, são obrigados a usar.

E observa também que, sob o sétimo sol da ilha do Mosqueiro, existe uma e outra velha, e que essa outra velha também arrasta consigo seus pássaros e coros: ─ Não tem jeito. Nasceram acorrentados a mim!. ─ a velha e a outra velha gritam, enquanto cada transeunte outro de seu passeio nessa praça igreja matriz, velho ou criança, arrasta consigo seus próprios feixes de pássaros guanina, timina, XX, XY, XXXˢ, XXYˢ, cromossomos duplicados, cromossomos duplicados em especificidades, grupamentos fosfatos e Desoxirriboses; e todos colidem entre si e enovelam entre si suas correntes compostas de elos, ácido, ouro, aramidas, harmonias em tom menor e sangue muito muito antigo. 

─ Tão bela essa nossa corrente. 

─ Tão dourada de histórias tão antigas a história de nossos elos e ferros. 

─ Nós os pássaros sábios.

─ Nós os pássaros muito muito sábios.

─ Meu pai foi senador 

                                          senador ador          

                                                                                                            or 

                                     orr – or

                                                                                                                          ! 

                                                         or

o  

           rrrrrrrrrrrrrrrrrr

o

Desoxirribonucleico, justo o pássaro que voa mais alto entre todos, ecoa em estampido e grasno. 

(moscas)

─ Nós, essa penca de gente sabida.

─ Nós, essa penca de gente sábia e sabida. – E todos, em repetição colidem, dividem e repartem-se em seus bicos, seus voos, seus vícios e suas penas.

Eles venceram – a velha recém amanhecida reflete. Mas não mais olha para o seu chão, pois a velha observa que há outros velhos; e que todos os velhos escalpos são ou não reunidos e que todos continuam seu lento trabalho de conquistar para si ou para outros o açúcar, o sal, o daemon e os pequenos grãos de milho cará vintém que os pipoqueiros da praça inadvertidamente derrubam de seus carrinhos. 

E em todas as gerações de desoxirribonucleosesˢ há novos pássaros dourados a encantar seu coro de panelas, noites e esquemas.

E em todas as gerações há novos elos sabidos.

─ Um crocitar a honra de pertencer àquele feixe de iguais, cada vez mais iguais a todos os outros!  

E então, envaidecem-se todos os pássaros. E então, engordam-se em mundiada fartura de vaidades e de inúmerasˢ mil vidas todos os pássaros. E nenhum deles se preocupa com os restos de algodão docejujubavintém multicoloridos e abandonados nesse ou naquele caminho pelos vendedores dessas ou daquelas outras praças mais ou menos vizinhas. E nenhum deles se preocupa com os restos de velhos arrastados sem nome e descartados sem cidadania em meio a um IML de crânios esfacelados de asfalto e de chão; E nenhum deles se preocupa com os restos de velhos arrastados sem nome e descartados sem cidadania pelo chão enquanto esses mesmos pássaros se preocupam em limpar de seus esquis, hélices, carrinhos de pipocos e pás o sangue negrovermelhocoágulo derramado em meio a sua contagem de furos e de rasga-mortalhas.

Pássaros também são bons de bala ao alvo, vocês esqueceram?

“cem pontos o centro do cerebelo de um velho! 200.000 pontos um pulmão bichado!!! E quanto vale a alma de um Arara, KayapóMebêngôkre, Pataxó ou de uma criança Apiaká? E afinal de contas  quanto vale o tiro na bunda de um viado ? ”, os pássaros covardemente gritam; e de seus bicos caem rajadas de amendoins e outras azeitonas enquanto muitos e muitos outros os aplaudem.

(moscas)

(panema)

(barracos destruídos em plena pandemia)

(panema)

(panema)

(panema)

(moscas)

E então, os velhos descartados, braços em riste e ao alto, também amanhecem;

E então, os velhos, descartados sobre carrinhos de mão e de construção, também são amanhecidos.

E amanhecidos também observam os outros velhos escalpos que lá já existem.

─ E eles só existem porque se repetem. – Ensina aos outros um dos velhos e outros de outros velhos que, um dia, insistiram em ser professor. 

E esse e outros velhos professores sabem que em suas turmas, eventualmente, também haverão pipoqueiros com coturnosbotasbotinasˢ de palhaço, carrinhos de mão e também vendedores de balão da igreja matriz que serão eles mesmos seus novos ou antigos algozes, aprendiz e alunos. E os velhos professores também ensinarão que os pássaros que vencem os velhos são carregados pelas mãos eugênicas de repteis adestrados para entender que essa e só essa vitória é a sua única e verdadeira opção. E os velhos professores também ensinarão que essa vitória não é a sua única verdade. E assim a velha e a outra velha, mesmo amanhecida e cansada, continua a plantar suas raízes de jasmim. E os velhos e os outros velhos escalpos, mesmo que também amanhecidos e muito cansados continuam a plantar suas batatas, azeitonas, sementes de abóbora, eudaimonias e outras hortaliças.

─ Se comermos da terra e ficarmos mais fortes quebraremos as correntes e afastaremos de nós os cem pontos de mosca – diz uma velha e a outra velha.

─ Nós, os pássaros repletos de prata, hélices e cartuchos dourados, carregados pelas mãos dos que acreditam que só existe essa e uma única verdade traduzida nos ColdresCânticosBalísticosSarsCovCânions em si menor que ecoam sobre essa ilha, também somos muito muito fortes e também vencemos por ser muito muito antigos. – Dizem aos transeuntes esses e todos os outros pássaros que existem sob esse amanhecer do sétimo dia da ilha do Mosqueiro. 

(coletes a prova de bala milhos pentes  amendoins pipocas e  moscasˢ)

E muitos sabem que a velha um dia mudará de nome. 

E muitos sabem que,

a céu aberto, 

vertem sangue 

de suas pás, hélices e esquis.

E alguns temem o dia em que a lavoura dos velhos finalmente começar a florescer. 

─ O meu pai 

é       sena  ador

      

o

or

r

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rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr (eles fuzilam)

       

                     !

!          !

Mas todos voam alto demais para perceber os brotos vivos que nessa e em todas 

a     

                                                                                                                                               s

 outras lavouras já existem 


Isadora Salazar

Escritora. 

Autora do Romance Água de Mortas – Editora Patuá / 2017 (Premiado com a Bolsa de Criação Literária Ministério da Cultura 2015); Em 20 de novembro foi mediadora do Bate-Papo A POESIA E SUAS TRAVESSIAS com os autores Marcelo Labes e Milton Rosendo; 28 de setembro integrou o elenco local do espetáculo “Femi Clow Caberé Show” com Cabaré das Rachas DF onde fez a leitura de seu texto Tardígrados na Lua , apresentado no Sesc Ver-o-Peso; Em 27 de  abril participou da roda de Conversas ESCRITA FEMININA DA CONTEMPORANEIDADE , Casa das Artes / Fundação Cultural do Estado do Pará; Foi Sub Comissão Prêmio SESC de Literatura 2019;  Em 25 de março de 2019 foi convidada pela Fundação Cultural do Pará – junto com a Autora Luciana Brandão Carreira --  para  evento O AUTOR E SUA OBRA , em homenagem aos 148 anos da Biblioteca Arthur Vianna; Em 2018, junto com autores convidados que realizaram leituras de seus textos, participou do evento Círculo Onanístico de Literatura, organizado por Ney Ferraz Paiva , no Núcleo de Conexões Ná Figueiredo e Relançou o seu romance Água de Mortas no SESC BOULEVARD;  publicou o conto DIÁLOGO nos Cadernos de Oficina POÉTICAS DO DESASTRE, organizado por Nilson Oliveira , Fundação Cultural do Pará; Publicou o conto CAIXA DE VIRA-LATAS no WORKSHOP DE CRIAÇÃO LITERÁRIA com Simone Brantes, Fundação Cultural do Pará; Entre 2017 e 2018 publicou seus contos nas seguintes  Revistas Digital MARINATAMBALO(http://marinatambalorevis.wixsite.com/marinatambalo); Publicou o conto BATHEIA na Edição 90 da revista física Ô CATARINA(https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1880949255530365&set=a.1382240398734589&type=3&theater) ; Publicou na Edição n° 7 do Caixa de Pont[o} Jornal Brasileiro de Teatro a cena teatral MEL DE BARATAS(http://docs.wixstatic.com/ugd/23361d_3ff3829c2ec6430fabf92ba78bb58a82.pdf ), escrita em parceria com Luis Eduardo de Sousa;  Seu texto IMPERMANENTE BELLE  abriu o espetáculo teatral  CANÇÕES DO TEMPO, sarau musical realizado pelo Grupo Vocal Cantores Contemporâneos, Dirigido por Ana Maria Souza; Autora das cenas teatrais ARAPUCA , dirigida por Lorenna Mesquita e Fabio Brandi Torres para leitura dramatizada dessas cenas pelo projeto DRAMA SESSION 2014, na data de 16 / 6 , São Paulo / SP; Em 2009 foi premiada com a  Bolsa Funarte de Criação Literária, com o projeto de  romance INVASÃO PRÊT-À-PORTER (inédito ); Em 2007 publicou e lançou dentro do evento São Paulo Fashion Week O PARÁ FAZ MODA – DE DENNER ÀS PASSARELAS DO SÉCULO XXI , em co-autoria com FELÍCIA ASSMAR MAIA – Editora Ideias e Letras, São Paulo; Em 1997, seu poema CANÇÃO DO PERDÃO foi musicado por ALTINO PIMENTA e prensado pela SECULT / PARÁ;  Assinou contrato para a circulação literária Sesc Arte da Palavra  por 11 cidades do Brasil , em parceria com a autora paulista  Aline Bei , no ano de 2020. Atualmente finaliza a coletânea de contos  INSETOS e inicia a escrita do romance Panthalassa.



curadoria e edição de marcos samuel costa
Variações revista de literatura contemporânea
2020
I edição

Comentários

  1. Um texto que nos faz voar com os pássaros-balões do sétimo sol em Mosqueiro , e, da cumeeira de um céu mesclado de azul e cinza, contemplarmos toda a grandeza e toda a pequenez da vida. Bravo!

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