DOIS POEMAS DE ALUÍSIO DE MARTINS

 

Aluísio De Martins.


a mulher que não fecha os olhos quando morre

Nas descargas de ajudas; no equilíbrio que ali se completa entre os rascunhos de vida dos seres minúsculos. Entre os corpos truncados. As teias ainda sem aranha. Os olhos ainda sem luz. As penas sem movimento. Os remendos de vermes. Os bulbos de cobras. Arquétipos de carunchos. (Manoel de Barros, Livro de pré-coisas, 1985)

 

 

a mulher que não fecha os olhos quando morre

e eu que só vejo quando me inverso.

 

viu, por exemplo, que dor pode sorrir

se ainda tiver queijo na geladeira

quando o corpo está morto.

pior são as deságuas das plantas —

não ganham orvalho na estiagem,

desabastecem a memória dos pés das castanholas

e roubam o assentamento das jibóias.

 

vidinha também não gosta das folhas secas,

em síntese de incraquelável.

 

 

dia desses, me contou que despencaram

dois minutos de preguiça a menos em cima da cama.

 

os casacos não dormem

até o dia ligar as fervuras.

 

isso não eram horas

do sonho perder a cabeça e sair de si.

comia os segredos.

 

o que ocorria

de eu ter de esticar muitas vezes a poesia —

ela se irritava com isso.

às vezes dava um nó na própria língua,

dormia no dicionário de mesa.

 

 

o tarô explicou

que a mulher tinha nascido hackeada.

 

só não lhe levaram o riso

que arqueia o olho esquerdo

quando está nos perigos.

 

o resto regenerou

quando os cogumelos arrendaram os búfalos —

com bufo e tudo.

 

 

mobiliado de somente os indigestos no homem,

matéria-prima de gnomos, louva-deusas e prostitutas sagradas.

 

o rola-bosta é o mestre de obras daquela merda toda.

 

ela — xícara de porcelana —

bebe o chá das cinco.

diz que a pedra tem criminalidade perdoável,

cumpre a termo.

 

me cumprimenta que já morreu oito vezes,

inveja do gato.

tem dom para energúmenos.

 

 

dado por isso,

tiro ofício de colírio

para palavra vermelha com a vista cansada.

 

a palavra deus está convalescida,

temência nos intestinos.

 

se desmuda aos garranchos —

crise de identidade.

os silêncios têm labirintite nos fastios,

contrariam as heresias dos domingos.

 

não fazem estrupícios na língua:

é gula sanável.

 

 

sente vísceras com as colmeias apetecendo.

 

as centopeias só viajam às canastras;

o embuá prefere consigo,

enrosca seus apetrechos.

 

as safadezas luscam-fuscam aos absurdos,

tomam cheiro por léguas.

 

várzeas alagadas seguem o curso —

o rio que dá orgasmo nas beiradas,

se cabeceira nos barrancos,

sobe os cipós coloridos

nas antebotas dos soldados,

segue a batina.

 

 

Desvirgulamos nossos indizíveis saudáveis,

as impropriedades das palavras sanguíneas,

pré-tintam.

 

almas querendo farmácias,

ambições semânticas pornográficas.

 

Dito os restos, contagiam os pergolados.



SONAR

fosse
respiro ontológico
daí derivassem raízes
sem morte por mercúrio

ainda:
palavras que se atiram nas nervuras
do pano —
doravante, casca
derme, sítio

o self intuído na infância
camadas a colorir
espíritos transeuntes
íntimos, consoantes

  nada importaria:
a dinâmica dos átomos
o universo —
fiapos das gentes
a fraternidade das águas
espirais em hertz
arbítrios modulados

errâncias dos carinhos
sertão tem cheias
línguas lavando lábios

canduras antepassadas
descascando a parede —
mimetizam-se nos cactos:
encantos na sala
sem espinhos

  nós:
argilas, taipas
veredas trespassadas na ampulheta
diários — notas sobre auspícios

arranhaduras nos assoalhos do não-tempo
razão de insígnias
a se constar —
usuras

acrescêssemos sentido, droga
o insano prazer do sono sem cílios

fórmulas gastas
expedientes do corpo
a fúria farmacológica da rotina

uns amam urgências
outros enlouquecem

a prazo —
fruíssemos estética:
face interna dos umbigos enrugados
transes cardíacos
servidos às potências

brincantes
como abelhas entretidas no vidro
divergindo o mito dos trabalhos análogos
algum deus sem escravos, roga-se

contrários se divertem
plantando bananeira com colibris
flores excitadas
acústicas — sonetos em pólens

nos córregos estrangeiros nascidos fogo
a intuição acende os disparates

solstícios testam a amabilidade da areia —
o verde de cá é mais marinho que os de lá
como cantam os coloniais

a resiliência da alma
cala
a negligência da força

prazeres-liames
circunscrevem átimos em milhões
como estrias comprimem cronômetros
cartografando limbos na matéria-ruído

a mão do pensamento do escuro se dilata
a dobradura se dissolve na imagem de estanho
entorta seus galhos de chumbo
sobre a volúpia dos timbres

paraíso — a título de instalação
seivas: fusões de afetos fluidos

  o artista atravessa a linha
  o frio
  a aranha cerzindo o hábito


Aluísio De Martins se dedica à arte contemporânea e poesia, explorando linguagem, corpo e percepção. Seus interesses incluem bioarte, estudos queer, pós-humanismo, antropoceno e colaboração entre humanos e não-humanos. Trabalha com práticas literárias, performativas e visuais que questionam os limites do físico e do invisível, entre sujeito, corpo e mundo.


Variações: revista de literatura contemporânea
 XIII Edição - vidas fantasmas: poéticas assombrológicas
  Edição de Bruno Pacífico, 2025.

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