desertos - poema de Daniel Da Rocha Leite


(Foto de Tiago Fezas Vital)


desertos


quando as palavras eram a parede áspera e quente dentro da noite
esse teu fêmeo silêncio sextavado em minha língua perfurava o branco
o teu vestido negro, o gosto do cigarro em tua boca, a limalha da saliva
aquilo oculto na linguagem diante do corpo que vestíamos e gritávamos

dentro do silêncio a memória das mãos
dentro do beijo o saber agridoce do sangue

dois bichos farejavam
o sexo e a língua um do outro
dois bichos em busca de um silêncio

não era a erosiva hora

a água, o corpo magro, o tempo
a fome, o nervo, o amor, o minério
a terra mútua em que dois corpos se escavam
lavoura turva que sabemos de um livro invisível

tudo era a miragem da fome que alimentava o fogo 
esse precipício sobreposto à palavra entre os dentes
quilha de um corpo feito dos meus e dos teus pedaços

não é a erosiva hora 

há um livro para se aprender a ler no escuro
quando as palavras não alcançam este silêncio no peito.


/daniel da rocha leite/

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Daniel da Rocha Leite é escritor. Entre poesia, romance, contos, crônicas e literatura infantojuvenil, possui dezesseis livros publicados. Atualmente cursa um doutoramento na Universidade de Lisboa. Segue a escavar silêncios.

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