Martírio - crônica de Douglas Oliveira




Martírio


Teu sorriso estendido na cama, Andreia, amarrotou meus lençóis, tua língua despiu meu guarda-roupa, me deixou a carne crua. Tua voz fechou as janelas e desolou os casais na praça, teu grito destroçou do dedo o anel; cuspiste alcoolizada tua paixão na boca de alguma traição. Calaste, zarpaste tatuada noutra pele que não é a minha, contudo deixaste na cama o cheiro do teu corpo solvido após a fome do sexo. Teus dentes mastigaram meu coração, que nessa altura não sei por onde anda e em que peito bate. Minhas mãos suportam o peso do teu vazio, as cordilheiras ainda têm teu nome escrito no gelo e o toque dos teus seios; tenho ainda as impressões dos nossos primeiros anos, das águas dos nossos banhos e da toalha que lambeu tuas pernas. A fotografia, que queima no frio da poeira, nos deu essa cara triste que costumávamos jantar às quartas-feiras após a foda sob a misericórdia do vinho tinto; as contas vencidas do aluguel cozinharam nosso desejo, a rotina salgou o gosto do sexo, já não tínhamos fome, ainda assim meus olhos te devoravam. O amor era a roupa que nos vestia, caíste no mundo e levaste nossas fantasias, talvez elas enfeitem teu corpo e em outra pele as vestirás. Tuas promessas penduraste em minhas orelhas, somos agora fractais, pedaços ambulantes de raiva, Andreia. Talvez voltes para me mostrar que teu amor vive, ou sumas de vez com a fantasia que hoje não nos serve mais.


Douglas Oliveira - arquiteto e urbanista, escritor e editor da editora folheando. Em 2017 venceu o Prêmio da Fundação Cultural do Pará, com o romance "Histórias de Chuva", em 2018 publicou o livro de contos Deus e o peixe-voador, e atualmente trabalha no próximo livro, "Elefantes não sabem voar", sem data de lançamento.



curadoria e edição de marcos samuel costa
variações revista de literatura contemporânea
2020
I edição 

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