Outras vozes: voz de Franck Santos

Naquela tarde


Na tarde em que a rainha da Inglaterra desfilou no seu
Rolls-Royce e tirou os sapatos para massagear um pé no
outro, no litoral brasileiro, um estrangeiro olhava um atlas
como se quisesse outra geografia.
Naquela tarde, tinha um casaco sobre uma poltrona, era
seu, mesmo que nessa cidade não precisássemos de casacos.
Você me criticava porque queimava minhas dez agendas
confessionais, contou sobre os diários de Sylvia Plath, que
Ted Hughes havia rasgado.
Fez-se um silêncio que você não foi capaz de romper, por
isso, na tarde daquele dia, mostrei meu braço recém tatuado,
falei de Paris com seus cafés e dos amores que deixei em
repouso. Coloquei um disco de Patti Smith e você disse que
não gostava do seu visual andrógino, mas queria fotografar
como Robert Mapplethorpe e ficou estourando o plástico
bolha que envolvia os livros que tinha comprado na viagem.
Daquela longínqua tarde que tinha uma rainha, um atlas,
Patti Smith e Sylvia Plath, restou uma sensação de quase
escuro, mas continuo anotando frases nas agendas e como
um argonauta ainda fabrico minhas conchas.
De você, sei que a morte rondou algumas vezes, que se
tornou um monólito indecifrável. Um ponto num mapa de
alguma galáxia desconhecida.

Aqueles dois


Ele, super-herói, escalou prédios. Torres. Pulou pontes.
O outro, no chão, tão comum,
sentando em praças, cruzando esquinas, numa fila.
Ele, escafandrista, buscou tesouros. Submarinos. Virou
anfíbio.
O outro, na praia, tão comum, catando conchas,
tomando água de coco, vendo o sol se pôr.
Ele, artista, andou na corda bamba. Passou em arcos de
fogo. Globo da morte. Daniel na cova dos leões.
O outro, na plateia, tão comum, querendo bis,
aplaudindo, o show não podia parar.
Ele, tão só, em casa,
descansando de ser herói,
anfíbio,
artista.
O outro, num parque de diversões, tão comum, tomando
sorvete,
 olhando a Lua, roda gigante.
O super-herói. O escafandrista. O artista, tentando
dormir, tão comum,
querendo praças, água de coco, roda gigante
com o outro.
O outro, sem saber daquele outro, nos seus sonhos,
Tinha um herói, um escafandrista, um artista.



Café da tarde


Quando ele atravessou a cidade e chegou na minha casa
Fez-se um buraco negro,
Um absurdo ponto de interrogação.
Busquei ouro
Ele, monolítico.
Pulsamos vida numa cozinha, numa casa qualquer, de
uma cidade qualquer no litoral do nordeste brasileiro.
A cidade não nos existe
No café que se perde servido nas xícaras, no queijo, nas
duas taças de vinho,
Numa dor sutil no coração que nunca mais passou
E impediu meu coração de ir mais longe
Como os bichos que hibernam, os rios subterrâneos,
alguns insetos.
Necessito tempestades e mar e sal para abrir frestas
Ele, falésia.
A tarde se vai imóvel, oca, parada, folhas caem, cães
ladram,
Livros, poemas, uma rede, músicas que não ouvimos.
Naquele momento, só queria o amargo café, o agridoce do
vinho,
Ou sua boca.
Por me entender, me entendo triste,
Um filete de água escorre na noite
Tudo que não existia agora sou eu.


Vórtice 


Quis umas tardes com você para caber no mar, quando os portos não tivessem navios, mas pontos de silêncio e solidão. Umas tardes que nos levassem para onde o vento soprasse, como um vórtice. Um móbile. Pipas. Nas tardes que quis com você, poderíamos vestir nossas roupas brancas. Implodir rochas de corais. Irromper nas superfícies. Deixarmos os vazios que carregamos no abissal. Quis umas tardes com você para caber no mar. Em alto mar, restaram minhas cinzas como uma anêmona e seus tentáculos. Você ainda prefere nas tardes o fogo e aquele piano tocando na casa ao lado umas canções que não terminam nunca.



Franck Santos é um homem comum, ilhado em São Luís, cidade esta que tem mar, porto, muitas histórias, sol e céu azul o ano inteiro, mas prefere dias nublados e chuvosos, uma casa no campo, vinho e blues.



curadoria e edição de marcos samuel costa
Variações revista de literatura contemporânea
2020
I edição

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