tons fortes e sóbrios - diálogo de Wanderson Razoni e Tiago Portsan



A importância do ovo na pintura e na fotografia - arteref
(Sandro Botticelli, © The National Gallery, London)

O OVO

por Wanderson Razoni

acordei como se estivesse me desfazendo de um abraço caloroso, morrendo de sono mas entregue à minha preguiça; estava numa cama confortável demais para ser a minha, num quarto com luz demais para ser o meu, numa casa arrumada e elegante demais para ser meu lar. Olhei para o lado e recobrei todos os possíveis acontecimentos e os que só tomavam vida na minha mente quando o vi ali. Me levantei de súbito e tentei refazer os caminhos percorridos ontem à noite. o escritório. provavelmente minhas roupas estariam lá. que loucura pensar que alguém com quem me cruzei tão pouco fosse capaz de entrar em comunhão comigo apenas através de seus olhos.

 não vou entender como de um passeio com sorvete e pizza eu fui parar na sua casa, mas fui. eu simplesmente não conseguia parar de escutar sua voz e como ele falava de seu trabalho, era simplesmente inebriante; seria capaz de ficar congelado ali pra sempre, se preciso fosse, para que ele falasse e falasse e falasse com toda aquela paixão que tinha guardada nas pregas vocais. 

criávamos uma imagem engraçada: eu, saído direto de uma tv tubo, um hippie desleixado perdido na cidade, com suas roupas surradas e coloridamente juvenis e uma sandalha de borracha nos pés, e ele, tão elegante quanto alguém que está prestes a viajar ou fechar o próximo grande negócio, sempre em tons fortes e sóbrios, que deixavam seu olhos escuros ainda mais lagunosos, com camadas macias e quentinhas, com uma bota nos pés e a postura ereta. isso é o verdadeiro significado de contraste. mas, ainda assim, nossos sorrisos ficavam muito bem juntos; seu sorriso me levou pra dar uma volta na cidade e o meu sorriso sabia que talvez não devesse subir pra sua casa, mas subiu. eu queria cheirá-lo e lambê-lo inteiro. queria cheirar suas roupas, cheirar os cantos de sua casa, queria cheirar o seu escritório e os seus livros, eu queria cheirar todos os cantos da sua mente e lamber todos os seus pensamentos tanto quanto eu queria lamber o seu pescoço; então futuquei seus livros. imergi. imergi na sua cabeça e beijei sua boca apenas enquanto lia aquelas palavras. 

sua presença se instalou devagar no chão da porta, com as costas apoiadas na moldura e uma taça de vinho na mão, seus olhos eram apenas duas águas misteriosas que me encaravam sob a luz amarela e tudo nele me fazia querer devorá-lo e mastigá-lo e engoli-lo até que toda a sua matéria fosse absorvida pelo meu corpo e assim se fundisse à mim como quem funde os discos de sua vértebra; engatinhei até ele como se eu rastejasse para injetar meu veneno, subindo por suas pernas e me envolvendo nos seus braços e o beijei. o beijei com boca de sede e naquele momento, sim, naquele momento éramos revolucionários, éramos o próprio ovo e a concepção divina. minha língua só queria roubar suas palavras para mim, queria mergulhar na sua saliva adocicada e se conservar molhada, ali, daquele jeito; e tiramos as nossas roupas, só que à muito já estávamos desnudos, estávamos expostos, vulneráveis, nus; ele poderia me matar se quisesse e eu o deixaria porque naquele momento eu o amava mais que a minha própria vida e apenas queria que ele me abrisse ao meio e revirasse todas as minhas entranhas. e ele o fez. ali mesmo, no chão, fizemos amor. ele estava dentro de mim; ele não saiu de dentro de mim.

me vesti às pressas, não podia estar ali, aquilo não podia ser real em nenhuma dimensão. antes de sair, parei e observei mais uma vez: lado a lado, uma sandalha de borracha verde-água e uma bota de couro e salto. calcei meus dedos e fechei a porta. 

 respiro.

 pego os pães e a fatia de bolo.

 espero voltar antes que ele acorde.

Wanderson Razoni, diasdavilense, é escritor, professor, artista, bruxa, estudante da UFBA e atuante no Coletivo das Lilith. Em seu livro, "Alucinógenas", ditou pra si mesmo: "seu corpo sua alma metamorfose de você não tenha medo transcenda". 


Obra-prima de Clarice Lispector, 'A hora da estrela' completa 40 ...


No beijo dele, tinha Clarice.*


por Tiago Portsan


*(esse conto é do namorado do Wanderson Razoni)


depois de uma volta pela cidade, regada a música, sorvete, gosto de mar o sol deitando no horizonte; depois do vinho e da pizza, da mão sobre a minha perna por baixo da mesa, da risada infantil por saber que não devia, ele pediu pra subir.

Entrou feito gato, investigando o lugar e sentindo o meu cheiro. Passou pela sala, pediu para ir ao banheiro. Na volta, pela brecha da porta, viu o escritório bagunçado. De fininho, empurrou a maçaneta e ligou a luz. Sentado na sala, pelo corredor, eu o vi se esgueirar para o meu santuário. Deixei. Não havia nada ali que ninguém já não conhecesse. Ficou lá por alguns minutos. Eu, intrigado, tirei o sapato e fui com os pés nas meias. 

Quando cheguei à porta, completamente envolvido, ele lia meus livros. E sei lá o que me deu na hora, senti o meu corpo inteiro tremer. Como quem descobre um mundo, ele lia Clarice, sem nem se dar conta de que eu o observava. Quando, por fim, me notou, perguntou com ar de sinceridade:

"Você também concorda?"

"Concordo com o quê?" 

"Que o ovo é revolucionário." 

Sorri. O Ovo e a Galinha, de Clarice, era um dos textos mais misteriosos que eu já tinha lido, e do qual eu mais gostava.

"Concordo"

"Por quê?"

 "Porque, quando você descobre o que é um ovo, o mundo passa a fazer sentido"

 "Estranho... Esquisito"

Sorri de novo, porque ele estava certo. Era estranho e esquisito.

Voltou a ler, sem me dar qualquer atenção. Corri na cozinha e busquei meia garrafa de vinho sobrada da noite anterior. Sentei na batente da porta do escritório, no chão, assistindo ele namorar com as páginas. Não havia nada mais excitante, mais fascinante, nada mais delicado do que a capacidade de um livro deixar alguém nu sem precisar tirar suas roupas.

Em dado momento, ele fechou Clarice e me olhou. No fundo daqueles olhos, eu vi um tanto de medo e admiração. Deixou o livro sobre a minha mesa de trabalho e engatinhou até mim. Me beijou com boca de Clarice. Eu quis dizer que ele era lindo, mas, de súbito, me lembrei de uma regra áurea. Não dizer que ele era lindo fazia com que ele fosse ainda mais. A beleza de algumas coisas mora na falta de explicação. No ovo. Na galinha. No ovo ou na galinha. No sim. E no não.







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