Um pé em Pipa - ficção Abraão Vitoriano



Um pé em Pipa 


Na Praia do Amor, nos conhecemos. Ele, calção azul, camisa no ombro, olhos entreabertos, de sol ou de sono? Reparamos um no outro na escadaria de pedra. Ele me encarava em plena duas horas da tarde. Lá embaixo, puxou um papo de que "tava calor mas a vista compensava". Concordei um pouco tímido e combinamos de tomar um açaí. Ele descreveu sua outra ida a Pipa, estava acompanhado, pai de dois filhos, mulher executiva. Depois do divórcio, esta era sua primeira viagem. Falei vagamente sobre o lugar, nada a meu respeito. A brisa pairava e, também por isto e ainda mais pelo cheiro ou ânsia ou mãos caminhantes na mesa, nos tornávamos levemente suscetíveis. Ele relevou sua idade. Eu pedi para tirar uma foto minha diante do arrebol. Nossos corpos suados subiram a ladeira. Ele andava a tocar as paredes. E achei tudo aquilo engraçado. De súbito, revelei que precisava ir embora. O grupo já estava a arrumar as malas. Partiríamos logo. Não pediu que ficasse. Simplesmente perguntou que tipo de música apreciava. Eu gosto de Marina Lima e Lulu, mas não use isto contra mim, revelou enquanto olhava para os transeuntes, tranças, barbas e tatuagens. Não respondi. Apenas lancei um olhar. Eu, mais uma vez, craque em cortar a onda, em tropeçar na entrada e cair na saída. E antes que maquinasse um outro pensamento depreciativo, ele esfregou seu pé no meu. Minha boca, meus braços, meu sexo: vibrantes e cálidos. Quanto ele passava seus dedos, a terra, o fôlego, mais eu encontrava em mim um lugar. Um lugar vasto e soberano como a iluminação dos postes, respingada nas paredes, na rua estreita de cadeiras brancas, onde nos perdemos. Voltei para o hotel descalço. Meus pés flutuavam. 


Abraão Vitoriano é um escritor brasileiro.


curadoria e edição de marcos samuel costa
Variações revista de literatura contemporânea
2020
I edição

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas