Conto de Felipe Sanna
TERAPIA
Naquele dia, um misto de insegurança e ansiedade
conduziam meus passos a caminho da sessão. O tempo nublado prenunciava a garoa
fina que viria no fim da tarde, algo incomum no mês de maio. Protelei por anos
fazer terapia, até o limite. A possibilidade de ser vasculhado, por um alguém
desconhecido, causava-me desconforto, inquietação. Os pensamentos oscilavam, mudavam...
as pessoas, os lugares. Avenida Paulista. Prédios imponentes. Crianças
carentes. Nas calçadas, corriam; subiam e desciam as escadas do metrô. Árvores
robustas e contorcidas; postes e orelhões 'enfeitados' com anúncios de
advogados trabalhistas, agiotas, garotas de programa e travestis. Homens
apagados sentados no meio-fio. Hippies batendo boca. Fumaça e cheiro forte de
incenso misturado à erva. Mulheres secas comendo barras de chocolate sintético.
Jovens burgueses ao telefone, ostentando uma classe forjada, desengonçada.
Distraí-me com todos por um tempo, imerso em delírios imagéticos. Ao chegar no
local, próximo ao shopping Higienópolis, para minha surpresa, Figueiredo estava
à minha espera no saguão do prédio e, tão logo me viu, sugeriu que fizéssemos
uma caminhada pelas ruas do bairro judeu. Achei aquela ideia estranha, pois não
o conhecia pessoalmente, e esperava por uma consulta padrão, mas concordei...
Afinal, as recomendações sobre ele eram positivas. Cumprimentamo-nos. Tive uma
boa impressão a princípio: ele aparentava ter meia-idade, expressão serena,
gestos polidos. Simultaneamente, afobados, alguns executivos saíam do saguão em
direção ao táxi, estacionado do outro lado da avenida. Um deles esbarrou em
Figueiredo, que reagiu com indiferença. Depois, com a cabeça baixa, quase como
um murmúrio, comentou algo sobre o incidente que poderia ter guardado para si.
Balancei a cabeça e guardei minhas opiniões. Afinal, mal o conhecia... falar ou
não daria na mesma.
Durante a caminhada, incomodado, tentei iniciar uma
conversa. Antes de eu completar a primeira frase, de maneira ríspida,
Figueiredo cortou subitamente a minha fala, como se quisesse conduzir a seu
modo aquele momento, sem ser importunado. “Conversaremos melhor sobre o motivo
da consulta em lugar apropriado, ok?” Aquilo me incomodou. Reconsiderei a
veracidade das impressões iniciais que tive sobre ele. “Folgado!”, pensei
comigo. Passei a observar o entorno, cético. Cruzamos com algumas famílias
judias na ida ao café (só depois soube que a sessão ocorreria num café).
Gostava de observar o comportamento daquelas pessoas, como se portavam, sobre o
que conversavam, como se vestiam. A apatia da mulher burguesa sempre latente,
de expressiva desolação. A imponência do patriarca burguês, ao tentar dissimular
o seu fracasso, confiante, carregando consigo a tragédia nas costas, levemente
arqueadas (quão pesada estava?), a mirar o chão com olhar pesado, soturno
(imaginava a dor na sola dos sapatos, esmagando-a?); súbito, cabeça erguida,
voltava à superfície, ressurgia... confiante outra vez, deixando rastros da
falência conjugal para suas crianças, que vinham logo atrás e fingiam não
perceber, mas, silenciosamente, assimilavam e entendiam. A dinâmica da vida é
incontrolável, e eu por vezes suponho situações sem saber o porquê. Aquele
momento me trouxe algo que vivi na infância, reminiscências dos meus pais,
motivo da inferência? Talvez... Mas ali, na av. Angélica, os judeus disfarçavam
bem suas mazelas.
No café, Figueiredo ouviu atentamente a minha fala,
circunspecto, em silêncio; postou-se assim por exatos 45 minutos, até findar a
sessão. Em seguida, levantou-se de maneira abrupta e, antes de ir, solicitou-me
que depositasse o valor da próxima sessão, marcada com antecedência para sexta,
dia 12. Foram suas últimas palavras. Despedimo-nos secamente. Ele saiu sentido
bairro, eu, praguejando, saí sentido centro. Foi a última vez que vi
Figueiredo.


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Felipe...brilhante...como sempre!!!!!
ResponderExcluirMuito grato, Marcelo.
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