Modificações - crônicas de Marcos Samuel


Tesouros e ruínas 


Você não é grande coisa e é grande coisa. Essa dicotomia nos acompanha. Sempre somos gigantes em alguns aspetos da vida e quase insignificantes em outros. Eu nunca consegui desenhar uma casa, mas descrevo impecavelmente a casa de minha avó que mora em minha memória. Lembro do cheiro da sua casa, das tábuas, da máquina de costura, das panelas, do rádio na cozinha e a face morena de seu rosto. Mas nunca me peçam para desenhar isso, eu não conseguiria, aquelas sombras cansadas em seu olhar, seus vestidos floridos e com botões de pérolas, suas plantas na frente do pátio, eu não saberia desenhar. Mas outro pessoa no mundo sim. Eu sei que sim. Vovó passou anos tomando conta dos quitutes que eram vendidos na igreja, cozinhava bem, fazia para os netos e filhos feijão com mocotó e pimenta cominhilo que era um espetáculo. Mas eu pouca coisa sei cozinhar. Nessas artes, sou pequeno. Muito pequeno. No que sou grande, às vezes nem sei. Em amar às vezes dou meus saltos, amo por demais meu pai e minha mãe, minha irmã é meu tesouro. Há tantos tesouros em nossos corações. Alguns ruínas decerto, mas faz parte. Importa sim, somar com o outro, no que sou bom e no que o outro é bom. E Nunca esquecer, não somos nada e somos tudo. Cada um, com seus tesouros e ruínas. 



Modificações  

- estou perdido.
- mas onde queres chegar? tinhas local almejado?
- sim.
- tinhas né, foi o que imaginei, tu sempre foste ambicioso.
- isso é um problema?
- sei lá, sei lá cara, isso é contigo.
- comigo?
- olha, da tua vida só tu toma conta, pelo menos teria que ser assim, teoricamente.
- teoricamente. não te falei a metade.
- começa.
- de qual parte?
- de qualquer parte, desde que te alivie.
- alívio...
- vamos caminhando? 
- vamos.
- o rio tá com a maré cheia.
- vamos pela beirada.
- vamos, mas começa.
- tem fracasso no meio, ah, no começo também.
- ainda bem que ainda não chegou o fim, ainda podes modificar. 
- modificação, como areia movediça.
- areia movediça, como areia movediça no coração. Não te falei, mas a faculdade anda uma droga, ando com medo, sinto vontade de me matar. 
- não se mate.
- não sei se vou.
- melhor não se matar, não torne breve essa brevíssima vida.
- como um fosforo aceso. 
- como o pouco combustível. 
- um fosforo.
- numa noite de escuridão.
- como noite, como noite.
- vai amanhecer.
- mas é tarde para tanta coisa.
- eu diria cedo.
- pode ser, ontem eu me afoguei.
- eu sei, teus pés ainda carregam grão de areia.
- mas eu voltei do fundo.
- eu vejo a vida.
- aqui.
- aqui. 


Marcos Samuel Costa
editor de Variações 

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