POEMAS INEDITOS DE KARLA LIMA


(Marciel Cordeiro)

Voluptuosa saudade

A luz amarela escorre pela parede

por ela,

as palavras retinem,

gemem,

escapam da sede dos beijos

e se dilatam.

Sinto na carne o arrepio,

por baixo um gozo que alucina

se repetindo, contínuo

rio caudaloso

de desejo e sina.

Prove minha pele

numa carícia ardente,

deslize entre os meus pêlos

num deserto vasto e quente,

penetre,

perpasse

adentre...

 

Vida entre frestas

Já tive anseios diminutos,

resumidos em um único rosto,

agora distorcido.

Nesses tempos,

permiti que a beleza

me viesse imposta por esses olhos.

Com eles e neles,

se resumiam

quase todos os meus anseios.

Ansiosa e sôfrega

esperava sem fim,

aos poucos, sua ausência

adquiriu um tom onírico,

inexorável e ligeiro,

do qual me esqueceria

em horas parcas.

Retornei à velha trilha,

meio ferida e enfraquecida,

crescente e solitária

ao som de mil nãos retorcidos.

Arrastei essas lembranças

como ferros,

brasão,

ferida na carne,

até se esvanecerem nos anos

entre os contornos de uma vida.

Liberta,

abandonei a pequenez

de anseios tão resumidos,

me apropriei do cinza dos dias

como um troféu

e um olhar de fome,

de quem busca em ansiar

um caminho só seu,

inscrito em seu nome.

 

Etimologia poética

Gosto de palavras velhas,

cheias de densidades

as que não caem em desuso,

rebuscadas em seus entraves,

e carregadas de sentidos sub-reptícios.

Aprecio os acentos de memória

que demarcam o território

de uma letra fantasma,

como os que aparecem em

algumas palavras francesas.

Aprecio as línguas mortas

enterradas em outras eras,

dialetos,

idiomas,

regionalismos.

Quid pro quo.

Num escambo sem as confusões,

da língua mãe portuguesa.

E em troca

as palavras me enleiam,

viram versos sobre o que for,

linguagem melíflua e secreta

ou explícitas declarações de amor.

Entendo meu gosto por palavras,

delas nasce a poesia,

mas o seu sentido encoberto,

é maior que tê-las reunidas.

Palavras trazem consigo

um declarado mistério,

não esclarecido por dicionários,

continuum na vida e etéreo,

para o qual simples chave não basta.

Para elas nada é óbvio,

pois as palavras são um vício,

embriagante feito o ópio.

 

Desencanto fracionado

Me vejo em fragmentos

retalhos dos anos,

cacos dos dias

fiapos das horas,

desvanecendo-se...

Não me enxergo na totalidade,

são pedaços de sentido,

metades de um tempo perdido,

onde encalham as lembranças.

Um rol de nomes

com o mesmo fim,

são homens, são gente,

mas ainda assim,

já não se sente

o sentido de estarem ali.

O papel envelhecido,

como riscos numa pele,

mostra que a mulher no espelho

não endureceu o olhar,

o devolve em desafio

cortando o vidro dos anos fragmentados

na memória da vida em que está.

No tempo,

sou ela e não sou,

não me vejo inteiriça

e sim recortada,

e o verso se alinha e reúne

o que os olhos não vão dizer:

Que dentro de si

não é possível se ver,

falta distanciamento,

é preciso sair

e um momento se olhar

com os olhos de fora,

para só então mergulhar.

 

O que não foi...

A chuva cai espessa,

na meia luz,

mergulhos rasos

em telas luminosas...

É o fim do carnaval

e as horas se vão

girando sem pressa,

num vendaval de cinzas...

Garganta sufocada,

palavras contraem o pulmão

o não dito aperta o peito

e chove por fora

das horas de espera

nas asas de um avião...

Tempo no ar, em suspenso

a vida em turbulência,

voltando pra casa,

estranhando por dentro

o rebuliço de versos

em turbilhão...

E tudo se desloca

despontam as dores silentes

o desejo de transcendência

crescente e inquieto

arranha as cordas vocais

e se estabelece nos sonhos...

Fim de festa

por dentro só o silêncio,

um brilho opaco flutua agora

no que poderia ter sido,

se fosse a hora...


Karla Lima - Foi poeta de gaveta por anos a fio. Vive sua intensidade que transborda nas palavras, que lhe assaltam de tempos em tempos e em dias cinzas ainda mais. É autora do livro “Sobre deitar no tempo e esquecer do chão” publicado pela Editora Penalux em 2020. É uma mulher mutável, sob influência do signo de Câncer, e isso se dilata do seu gosto por viagens aos seus cabelos azuis.




curadoria e edição de Marciel Cordeiro
variações revista de literatura contemporânea
2020

I edição 

 


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