Até a última página - crônica de Cleu Silva

10 dicas de leitura essenciais para amar os livros | HuffPost Brasil

Até a última página


Numa manhã de terça-feira, uma vastidão de curiosidades projetou o meu olhar para a apreciação instantânea de um livro recém-chegado. Observei o colorido da capa e apoiei-me nas brilhantes letras que ditavam o tom do suspense. Folheei as primeiras páginas, li as orelhas e a apresentação. O momento foi interrompido, por um instante. Planejei outro tempo para a leitura, para que a tranquilidade e a fruição se mesclassem àquele discurso.  

Mais tarde, cedi espaço ao reencontro com a obra. Esse evento permitiu-me imaginar ou recriar faces, vozes, cenas e lugares. Por meio da narrativa profunda e densa, senti as dores que se inscreviam na alma das personagens, dilaceradas pela exclusão social. O amor entrecortava o labirinto do sofrimento, mas esvaia-se logo, ao nascer do sol. As ações instigaram-me a continuar, arrastando-me pela fluidez comunicativa.  

No meu ambiente propício, notava que o caminho da cronologia projetava um cenário de retirantes, de pessoas sonhadoras, independentemente de quais fantasmas cercavam-nas. As hipóteses emergiam-se, porque a ficção se inter-relacionava com a realidade, e aquele vasto campo imaginativo construía as referências que me prendiam. Assim, a leitura me fascinava, por meio da elaboração simbólica das expressões e modalizava a minha receptividade, de onde as conexões da escrita eram objetivas ou polissêmicas. 

Notei que estava refém daquela trama. Então, equilibrei-me entre a escrita e os reflexos das emoções. A pesquisadora Maria Helena Martins, em O que é leitura (Brasiliense, 1982), aponta que essa conexão emocional com a leitura ocorre quando somos despertados à curiosidade, ao estímulo da fantasia, à descoberta de lembranças, entre outros. Tudo isso nutriu o meu encantamento, por isso acolhi a história. E foi nesse contexto, que me vi engajada naquela projeção, em que a minha imaginação corporificava as palavras, revelava o íntimo daquelas dores, naquele íngreme contexto.

No último capítulo, testei as hipóteses. Mergulhei na tessitura produzida pelo autor que ponderava o jogo da narração, sem entregar a última cena. A consistência dos fatos avolumava-se em mudanças repentinas que jamais poderiam ser captadas por mentes distraídas. Necessitava-se de afeição, de uma leitura atenta, de ir além da superfície textual para encontrar as profundas unidades de sentido. Era um esforço prazeroso que me permitia experienciar interrogações e descobertas, ultrapassar os horizontes da realidade, driblar o tempo e decifrar o jogo dos segmentos. Findando a dramaticidade, a história se encapsulou em alegrias e lágrimas. O jogo criativo, por fim, inscreveu-se em minha memória, por meio de uma pulsação de alegria, por encerrar a leitura, e, ao mesmo tempo, um desconforto, por alimentar a minha solidão imagética, após a última página. 

 





Cleunice Silva Lemos é professora da Rede Pública de Ensino de Minas Gerais, é Graduada em

Letras pela Universidade Estadual de Montes Claros e Mestra em Letras pela mesma

Universidade. É poeta, cronista, uma das organizadoras de O caderno de Camila (Autografia,

2018) e autora de Quando o Silêncio é a poética do tempo (Folheando, 2019).


curadoria e edição de marcos samuel costa
Variações revista de literatura contemporânea
2020
I edição

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