Nunca fale com estranhos - conto de Fernanda Noal

Paisagens Urbanas de Francisco Beltrão - Blog da Flaviana
(Francisco Beltrão)

Nunca fale com estranhos


I

Acordei como de costume ao nascer do sol, pontual como o grande Astro, ou até
mais. Senti um arrepio estranho percorrer meu corpo, subindo dos pés até o pescoço, a
ouriçar meus pelos. Pensei em quantas vezes acabei por me anular, pra permanecer nas
convenções sociais, nos ambientes requintados em que não tinha a menor intenção de
adentrar, mas precisava constantemente estar.
Vesti as meias e os sapatos, encarei a garrafa de uísque, ainda preenchida pelo
líquido arrebatador até mais da metade. Quis terminar de bebê-lo, quis não sair para o
escritório, quis ficar de pijama na cama, assistindo algum filme que me fizesse rir ou ao
menos esquecer a solidão de ser eu.
Saí de casa com as pernas cambaleantes, um amargor na língua, se espalhando
pelo meu inconsciente áspero e frustrado. Ao passar por uma praça movimentada, cheia
de bancos para as pessoas darem uma parada e lerem alguma notícia no jornal, vi um
garoto sentado ao lado de uma senhora idosa, dois bancos de distância de onde me
encontrava. Quando ele se levantou aflito e pálido, sentei-me ao espaço vazio no banco
ao lado da velha, por mera coincidência, pois todos os outros estavam ocupados.
— Olá, meu jovem. ― disse-me ela, com olhar penetrante e algo de perturbador
em sua voz.
— Olá, bom dia! ― respondi apenas.
— Desculpe, mas não estou vendo seu guarda-chuva e penso que logo começará a
chover. ― ela prosseguiu.
— Desculpe-me a senhora, mas não acredito que esteja para chover... ― fui de
ímpeto interrompido por um estrondo luminoso no céu, um relâmpago majestoso
cortando o até então azul límpido, que instantaneamente começou a mesclar-se, rajado
de tons de cinza, grafite e roxo.
Não pude conter a expressão de espanto que se desenhava em meu rosto, o Sol
que tinha feito meu corpo arder de calor até poucos segundos, estava totalmente
encoberto por nuvens de tempestade.
— Existe beleza na ferocidade com que a chuva se aproxima. ― dizendo isso,
segurou minha mão e penetrou em meu olhar com aquelas duas bolas pretas brilhantes,
que ocupavam o espaço de seus olhos, mas pareciam dois abismos. ― Existe beleza em
tudo que constrói, mas também em tudo que destrói, meu caro Jonas. ― cerrou os
lábios esticados num incompreensível sorriso.
— Como pode saber meu nome? ― todo meu corpo a essa altura já estava
ensopado de suor, os tremores e arrepios fazendo-me sentir um frio inacreditável,
mesmo podendo jurar que tinha visto no celular que estava mais de trinta graus, pouco
antes de sentar-me ali, ao lado daquela incógnita e perturbadora senhora, que nunca
tinha visto, mas sabia meu nome. Havia algo dentro de mim que soava como um sino,
um alarme, uma sirene, cada vez mais alto como que para prevenir-me de algum mal.

— Sei muito mais que seu nome, meu querido, mas não tema a mim. ― fiz
menção de levantar, ela pousou as mãos em meus joelhos, com um misto de autoridade
e gentileza. ―Espere para ouvir o que tenho a dizer e depois poderá partir se ainda
desejar fazê-lo.
Perplexo eu percebi que minhas pernas estavam moles e sem a menor condição de
suportar meu peso em caminhada. Ela esperou até que eu me desse conta de que não
tinha como sair dali, não sem a permissão dela, ou pelo menos essa foi a impressão que
tive ao vê-la encarar-me friamente.
— Sei de suas aflições, sei o que o repele e também o que o atrai. E não estou
aqui para responder suas perguntas, ou desnudar meu ser. Estou aqui pra dizer que
talvez devesse mesmo ter ficado em casa, jogado na cama, assistindo aquela comédia
romântica que há meses você quer, mas não encontra um tempo pra isso. Aproveite e
tome o resto daquele uísque. Acho que antes dessa tempestade passar você já vai estar
morto.
Eu recebia cada palavra como um golpe, observava os sulcos e as rugas, o brilho
impetuoso e negro das duas covas olhos, o corpo frágil dava impressão de a qualquer
momento se desintegrar, mas a expressão era ardilosa e segura de si. De súbito senti
minhas pernas formigarem muito, quase gritei, me contive a tempo de sentir as
primeiras gotas da chuva molharem meu rosto. Levantei e me senti tonto, embriagado,
incapaz de andar em linha reta.
Mesmo assim avancei pra longe dela, mesmo com vertigem, mesmo com o chão
se mexendo sob meus pés, sentindo aquela chuva derretendo meu ego, amplificando
meus medos.
Quando dei por mim estava no meio da avenida movimentada que cercava a
praça, com muitas buzinas me ameaçando, vozes falando comigo e eu não conseguia
compreender nada do que me diziam.
Mas, a voz que me atingiu como um sussurro leve pronunciado dentro de minha
orelha, era inconfundível, era dela, da enigmática senhora.
— Não se preocupe, querido, você não vai morrer atropelado.

II

Ao chegar em casa totalmente desorientado, tendo espasmos musculares, sentia
falta de ar e meus batimentos cardíacos acelerados e arrítmicos. Sentia a cada inspiração
como se meu coração estivesse se enchendo de ar, cada vez maior ele me parecia, cada
vez mais próximo de explodir.
Começaram os formigamentos: braço, perna, peito. A língua completamente
insensível, amortecida, os olhos tremendo como se avisassem que estavam a ponto de
pular de suas órbitas.
O coração já não estava batendo rápido, apenas com muita força, cada batida
ecoava dentro da minha cabeça e me atingia como um murro. O peito parecia se rasgar

em cada inspiração, e ao invés de ar parecia estar engolindo água. Senti que estava
afogando.
E nesse ponto acho que não havia mais retorno. Fechei os olhos e me enxerguei
dentro do mar, conseguia ver a praia lá ao longe, as pessoas pequeninas como formigas,
gritando-me da areia, avisos ininteligíveis, ao menos de onde eu estava. Foi então que
eu entendi, ou pressenti o que eram os avisos que vinham da margem. Senti-me sendo
engolido por uma onda gigantesca, que sacudiu meu corpo, me arrastou pro fundo e
então meus pulmões se encheram de água.
E por um lapso atemporal, uma ruptura de tempo e espaço, uma pontada na nuca
latejante foi a única coisa que senti. Então me vi com quatro anos jogando a bolinha pro
Ted buscar, um labrador caramelo que me acompanhou até os onze. E enquanto a bola
cortava o céu fazendo sombra no chão e Ted corria alegre com a língua pra fora a
persegui-la, eu soube que estava morto.

III

A velha está sentada no banco da mesma praça, a observo ao longe e ela parece
estar esperando alguém chegar. Há algo novo em seu olhar que eu não saberia
descrever, um azulado a circular o negrume que esconde até as pupilas.
Vejo uma garota sentando-se ao seu lado por mera coincidência, pois os outros
bancos estão ocupados.
Não escuto o teor da conversa, mas pela expressão angustiante da jovem posso ter
uma ideia bem precisa do que a velha está lhe dizendo.
O rosto dela está empalidecendo, os olhos agora se arregalaram de espanto (ou
seria medo?).
Ah não, o Sol está sendo encoberto por uma familiar nuvem de tempestade, os
primeiros pingos marcam o chão da praça, as pessoas começam a andar apressadas,
procurando um lugar pra se esconder da iminente e torrencial tempestade de verão.
Vejo a garota se levantar e, ela parece bêbada, abalada, não levanta o olhar dos
pés nem para atravessar a avenida. O ensurdecedor barulho de buzinas explodindo
enlouquecidas ao redor da moça me soa familiar.
Ouço a voz cravar a sentença ao longe, atingindo o alvo de maneira que a garota
cambaleia e quase cai.
—Não se preocupe querida, você não vai morrer atropelada.






Fernanda Noal é gaúcha e mora atualmente no interior paulista, em São Carlos. É
artesã de linhas metafóricas e literais. Participou pelo Projeto Passo Fundo das
Coletâneas de Contos de 2013 e 2017, e das Coletâneas de Poemas de 2013, 2015 e
2017.
Escreve quinzenalmente às quartas-feiras no site opartisano.org, na seção Flauta
Vertebrada.





curadoria e edição de marcos samuel costa
variações revista de literatura contemporânea
2020
I edição 

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