Três poemas de Marco Aurélio de Souza

 

Candido Portinari: as obras e fatos curiosos sobre o artista - arteref

(Portinari, reprodução)

O poeta brasileiro


Pablo Neruda descascou a humanidade

Escalando paredões andinos

Até chegar ao cume dos poemas

Quando no Chile teve a voz

Silenciada


Kaváfis, o heleno,

Obsessivo pela Grécia ancestral

Observou a imensidão mediterrânea

Com os olhos marejados de quem conquista

A eternidade por meio da volúpia


Também Rimbaud e Baudelaire

Puderam falar em sua França

Desde bulevares e cafés iluminados

Capturando versos à sujeira

De miseráveis sem glamour


O maior entre os russos

Matou-se ainda jovem, mas antes

Maiakóvski cantou aos operários

De todo o mundo, a começar

Pelos que bem compreendiam

Os desígnios da Revolução


Ai de ti, grande poeta brasileiro,

Com que tristeza há de falar junto ao teu povo

Se nem sequer conheces bem tua nação –

Este país em que se fala de justiça

Na mesma língua em que se nega a escravidão?



O gigante acordou


Na madrugada o grito agudo dos pneus

Levanta o mendigo da calçada

Que em desnorteio recebe

Um par de ovos na cabeça


Vê na esquina a camionete

Em retirada

Cheia de rapazes

E pensa que podia ser pior


Quando consegue outra vez

Pegar no sono

Os pesadelos lhe perturbam

: sonha com monstros do dia-a-dia

Tendo espasmos ao relembrar

Que o gigante acordou


Naquele tempo é que o mundo era bom


Naquele tempo da Mesopotâmia, sim,

Naquele tempo tão sofrido

É que o mundo era bom.

Lá quando os rios eram domados

Por homens corajosos, de valor,

E desde cedo toda a gente humilde

Aprendia nas lides a lição

Não do peixe,

Mas sim da pescaria.


Na Mesopotâmia, sim, naquele tempo,

Bandido e traficante não tinham vez.

Olho por olho, dente por dente:

Nunca na história houve outro código melhor.

Decerto que as ruas eram tranquilas

E as famílias jamais seriam importunadas

Com ideologias de gênero ou LGBT –

Se bem que ignorassem Cristo,

Seus governantes jamais seriam acusados

De faltar com a religião.


Havia escravidão.

Sim, nada no mundo é perfeito.

Mas lá se ergueram grandes obras

De engenharia


Sem qualquer dúvida ou indício

De ilícito

Ou de desvio ao longo da

Licitação.


E se o povo era pobre, além de analfabeto,

Forçoso lembrar que

Antes da Mesopotâmia

Quando o estado

E a escrita

E o comércio

E o que chamamos hoje

Civilização

Sequer existiam

A vida era um inferno bem pior.


Mas se o trabalho na colheita não lhe agrada

Que vá em frente e enfrente

O deserto

Ou se acostume à selva cheia

De animais,

Só não critique aquele tempo

Tão ordeiro

Quando as pessoas tinham fé

E algum respeito –

Pois na Mesopotâmia, sim,

Naquele tempo é que o mundo era bom.


Marco Aurélio de Souza nasceu em Rio Negro, Paraná, no ano de 1989. É autor dos

livros Assombro Zen (poemas, 2020), Os touros de Basã (contos, 2019), Anjo Voraz

(poemas, 2018), Travessia (poemas, 2017), Conexões Perigosas (romance, 2014) e

O Intruso (romance, 2013). Publicado em diversos periódicos e antologias, integra

a coletânea de jovens contistas 15 formas breves, editada pela Biblioteca Pública do

Paraná. Graduado em História (UEPG), mestre em Linguagem, Identidade e

Subjetividade (UEPG) e doutor em Estudos Literários (UFPR), atualmente, é

professor na rede pública de educação. Atua como editor no selo Olaria Cartonera e

mantém a página de crítica de poesia contemporânea O Pulso – decálogos sobre a

poesia viva. Vive em Ponta Grossa/PR.



curadoria e edição de marcos samuel costa
Variações revista de literatura contemporânea
2020
I edição

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