Lirismo em tempo de caos: leitura de “Mesmo que seja noite” de Matheus Guménin Barreto

 

Ao longo da leitura fui sentindo uma emoção boa, que às vezes alternava com outra, um tanto angustiante, mas que ambas pareciam fazer parte de um todo desse prazer que é ler poesia. A leitura desses poemas do livro “Mesmo que seja noite”, Matheus Guménin Barreto (editora Corsário-satã, 2020), começa com ponto-e-vírgula , que li como se fosse (pela minha formação em música) um convite à uma pausa, mas uma pausa um pouco mais longa, mas isso foi minha forma de interpretar/ler. Então a primeira coisa que li do livro em si, foi isso, o silêncio. Vou dividir essa resenha em três aspectos que despertei no decorrer da leitura: a) Lirismo em tempo de caos, b) Repetição, o som e a música do impossível e c) Amor e sexualidade.

Lirismo em tempo de caos: publicar um livro durante a pandemia, e não apenas isso, publicar um livro de poesia durante a quarentena e mais, por meio de financiamento coletivo é um ato de coragem. Nascer-se em poesia durante a dor (de si e dos outros), durante o que se move em morte e vírus, quando o governo vai acelerando num andamento rápido e quase infinito seus cortes, seus cânceres, suas cloroquinas, suas reformas, seu elitismo, é um ato de coragem. E como se move o lirismo em tempo de caos? Se move do outro para nós como força, sinto a poesia vindo do Matheus e chegando aqui nessa ilha fora do continente, onde tenho habitado, e sendo em mim como um certo alimento de força, revolta e amor, porque se ama mesmo quando se morre, mesmo quando se sofre, mesmo quando se vive o luto, as lutas de classe, e se sente no aumento do custo/valor dos alimentos, as contas chegando, o desespero gritando, as dúvidas sussurrando nos ouvidos: “vamos parar com tudo isso, que tal desistir?”. Várias vezes já ouvi e li dos meus amigos escritores falando que a poesia não salva ninguém, e sempre penso comigo: “Ela tem me salvado”, não num sentido cristão e de jubilo, pois por vezes as leituras me acabam me jogando ainda mais fundo nesses abismos que nos habitam, mas sempre me trazem de volta, me ajudam a arrancar esse choro que ficou preso e nega sua saída do peito, e pesa. O lirismo, a poesia, a rebeldia, os lamentos, o protesto são sempre bem-vindos na minha casa, são bem-vindos em toda essa estrutura que forma meu corpo. A poeta Wislawa Szymborska disse em seu discurso quando ganhou o Novel que, o livro de Lamentações da bíblia cristã, é um livro bonito, fui procurar uma boa tradução e li partes deles, e entendo o que ela disse, não que não se saiba como lamentar, chorar e gritar, mas que quando se permite o vivenciar dessas leituras, soltamos o que sempre quis viver preso: “soou à meia-noite na sala quieta; / se houvesse gente domingo, acordaria na certa” (W. S), “o momento o mo- / mento aquele anterior à fala / anterior ao verbo à boca / aquele / pré-adâmico se adão houvesse tivesse havido / aquele / antes, pré-antes / o momento aquele” (Matheus Guménin Barreto). Ambos poetas falam de alguma forma da mesma coisa, da poesia que ocupa espaços, que atravessa muros, que derruba mundos, essa poesia que é física (som, movimento e escrita).     

Repetição, o som e a música do impossível: os olhos da leitura caminham entre um mar de repetições, palavras que ganham força e formato, um eco dentro da cabeça. De início estranhei o formato como um todo do livro, mas conforme a leitura avançou fui percebendo que ele como num todo de poemas forma apenas um longo poema. E a cada vez que na leitura as palavras se repetiam, sentia como baque/banquete forte no coração, a palavra como viva e carne, como vida e física. Arrastando meus lamentos e medos, trazendo força mesmo que seja noite, e lá fora nenhuma sarça se arda, nenhum fumo se apaga, nenhuma erva se ferva. “Dentro da mão um presente / dentro da mão um presente guardado / através do passado que é presente / do futuro que vai ser / dentro da mão um presente tão firme / tão firme / na mão junto ao peito / não vá se apagar na tormenta // dentro da mão um presente / firme, seco, verde ainda / preste a ser / e já tudo o que há”. Depois desse poema o que falar? Para mim ele diz tudo quando grita por dentro da leitura do leitor, quando grita em repetições dentro do leitor.      

Amor e sexualidade: um amor fundamentado, um amor entre a carne e entre pares, iguais, homens e homens, um amor, mulheres e mulheres. Mesmo que seja noite e essa noite seja densa e desoladora, ainda assim pulsa na vida das pessoas o amor, o lirismo, o sexo, a esperança mesmo convivendo com o caos, com o medo do governo Bolsonaro, mesmo sentido mesmo do valor do supermercado. Não quero me estender muito, mas não podia deixar de falar sobre o amor e sexualidade dentro de “Mesmo que seja noite”, que colma um homoerotismo, quase sem erotismo algum, é profundo, belo, calmo e gostoso de ser lido e sentido: “toda linguagem é crime / maior ou menor” ou em “arder a vida nos ecos // e nos corpos ora nacarados ora suados / discurso que o lábio promete”. O mais importante: leiam esse livro.

 

Marcos Samuel Costa

Escritor, poeta e graduando de Serviço Social/UFPA

Ponta de Pedras / Ilha de Marajó / Pará / Amazônia brasileira

Setembro de 2020     

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