ENTREVISTA COM O FILÓSOFO E ANTROPÓLOGO WLADIRSON CARDOSO - Por Gigio Ferreira.
Wladirson Cardoso nasceu em Belém do Pará em nove de junho de 1979. É filósofo, mestre em Direitos Humanos, doutor em Antropologia Social, pós-doutor em Educação, professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia Moderna e Contemporânea - COGITANS. Atualmente, orienta mestrandos em formação pelo Programa de pós-graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e, também, milita pela democracia e pelos direitos das minorias - em especial, pelos direitos LGBTQIA+
I. Gigio Ferreira - Ao iniciarmos
essa entrevista, gostaria que você nos contasse sobre as atividades
desenvolvidas pelo COGITANS, do qual você é o grande articulador. Quais foram
até agora os grandes desafios enfrentados pela soma? E sobre isso, como você
enxerga o futuro das linhas de pesquisa que vocês adotaram como estratégia aos
enfrentamentos?
Wladirson Cardoso - A ideia do “Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia
Moderna e Contemporânea – COGITANS” emergiu no ano seguinte à defesa de minha tese
de doutorado que ocorreu em 25 de setembro de 2014. Isso me habilitou,
institucionalmente, a criar um Grupo de Pesquisa em Filosofia nos quadros dos
Grupos academicamente reconhecidos e certificados pela Universidade do Estado
do Pará (UEPA) – com o aval do CNPq. Incomodava-me deveras o fato de a licenciatura
plena em Filosofia da Universidade onde atuo como docente efetivo desde de 2013
não ter uma independência e identidade própria, estando sempre às expensas de
outros cursos de graduação como o de Pedagogia e Ciências da Religião, algo
que, de um modo geral, prejudicava o funcionamento de nosso desenho curricular,
provocando uma série de questionamentos, tanto por parte de nossos discentes,
quanto por parte dos professores do curso de Filosofia da Universidade Federal
do Pará (UFPA), no que diz respeito à nossa validade, à nossa qualidade e, até
mesmo, no tocante à nossa competência para atuar a partir da Filosofia e formar
dignamente futuros profissionais da área, habilitados à reflexão teórica e
epistemológica, à ação ética e política e à apreciação estética no campo das
artes. Então, quando tive condições de criar um grupo que pudesse reunir
docentes e discentes de dentro e de fora da UEPA para somar forças e agir no
sentido de cortar todos os laços comparativos possíveis que diminuíam nosso curso
de licenciatura, em relação à suposta matriz Federal no estado e na própria
região Norte. Claro que isso desagradou a muitos; mas, sinceramente, não era a
intensão e tal desagrado não me preocupa. O objetivo do Grupo sempre foi e
continua sendo discutir aquilo que para a cultura filosófica, desde Descartes
aos nossos dias, pode ser qualificado como “res cogitans", isto é, nossa
capacidade para o pensamento, para a realização da vontade através da ação e,
finalmente, para a compreensão da dimensão simbólico-criativa do homem nas suas
mais variadas expressões. Por isso que o “Grupo de Estudos e Pesquisa em
Filosofia Moderna e Contemporânea- COGITANS” da Universidade do Estado do Pará
tem esse diferencial, qual seja, nós procuramos ler a história das ideias com
lentes que nos permitam trazer o debate dos clássicos para a atualidade,
considerando que nossos discentes, particularmente falando, necessitam se
iniciar na pesquisa em Filosofia, no contexto de uma Universidade ainda jovem
e, ao mesmo tempo, bastante capilarizada e que atente a um público de alunas e
alunos que na capital vem das periferias e que no interior vem de áreas
indígenas, ribeirinhas e quilombolas também. Por isso a estratégia de
enfrentamento de existência e resistência do COGITANS perpassa pela defesa e
promoção da dignidade de nossos discentes, buscando promovê-los de todas as
formas na vida acadêmica e, assim, permitindo-lhes sonhar, seja com um trabalho
aprovado em algum evento ou congresso, seja publicando artigo em revista ou
livro. Em 2018, por exemplo, o COGITANS publicou um livro organizado por mim e
pelos professores Ernani Chaves (UFPA) e Emerson Sena da Silveira (UFJF) com os
textos de alunos egressos do curso pelo Núcleo de São Miguel do Guamá, dando
visibilidade à produção reflexiva de nossos discentes do interior. E, a partir
de 2019, passamos a organizar o “Seminário Foucault e as Ciências Humanas” que
este ano terá abrangência internacional e discutirá questões de gênero e
sexualidade, teoria queer, feminismos e decolonialidades. Ou seja, o COGITANS
existe e resiste na contramão dos grupos de pesquisa em Filosofia que são em
sua maioria formalistas, elitistas e desligados de interesses materiais reais,
organizados muitas vezes para alimentar o ego de pesquisadores; e, claro, o COGITANS
existe e resiste na contramão da própria história política nacional, pois é um
Grupo assumidamente inclusivo, democrático e antifascista.
II. Gigio Ferreira - Há uma mixórdia intencionalmente bem aceita que
confunde o criador de frases espirituosamente bem humoradas e, algumas, até
eivadas de potencial crítico- erudito como atividade de Filosofia. Na sua
opinião, quem são os responsáveis por essas distorções de competências?
Wladirson Cardoso - Ainda que a Filosofia Contemporânea também se
apresente sob a forma de aforismos, parágrafos, teses e ensaios, o que
caracteriza de modo profundo e radical a atividade filosófica é precisamente o
rompimento inexorável com relação a dogmas, cânones, modelos, padrões e
paradigmas. Neste aspecto, a Filosofia – a que se pode considerar veementemente
experimentalista (e aqui já sinalizo um pouco de como penso e vivo a Filosofia
que perfaço e pratico) – estará sempre em um movimento interno e externo de
mudança e transformação de si mesma e do mundo. Acompanhe: se se evitar animar
o pensamento na seara da reflexão com frases ou “notas de razão” que inundam o
peito de emoção ou motivação, pode ser que se consiga perscrutar a coerência
interna daquilo que foi dito ou expresso - tanto em termos práticos, quanto em
termos materiais – constatando-se, enfim, que grande parte das sentenças que se
pretendem filosóficas – ou as que foram descontextualizadas – não passam de
“palavras de ordem estilizadas", cuja capacidade crítica não saltou para
além da reformulação daquilo que já foi verbalizado. Isso é o mais do mesmo,
dizendo-se de outro modo. Mas a Filosofia, ela não é isso! E a crítica que a
orienta só tem potência construtiva se antes for corrosiva, implosiva e
destrutiva – renovando o pensamento com referências principais e marginais
daquilo que argumenta e sustenta enquanto uma provável releitura de mundo e da
experiência humana no geral [mesmo que o começo de tudo seja o sujeito e suas
experiências particulares]. Por isso discordo formal e tecnicamente dos
esforços e tentativas de se renovar ou ir além da própria Filosofia que,
paradoxalmente, se define como um exercício diverso de reflexão peticionando o
mesmo estatuto de validade que tentam confortar (para romper supostamente com a
referência primeira ou anterior). Gosto da ideia de “Filosofia Contemporânea”,
pois ela já sinaliza justamente aquele movimento de revisão constante de si e
do mundo. Porém, me cansa muito os que afirmam, por exemplo, que a Filosofia
Latino-Americana ou a Filosofia Africana não são eurocêntricas ou
europeizantes, lançando mão do próprio termo qualificativo Filosofia que, por
sua vez, é tudo o que negam, quer analiticamente, quer fenomenologicamente.
Essas “filosofias” ainda não me surpreenderam, a não ser na crítica ao racismo
e à barbárie – crítica que, aliás, a gente já encontra em Sartre, Adorno,
Horkheimer, Arendt, Marcuse, Foucault, Habermas, Butler e muitos outros. Estas
“filosofias” não me surpreenderam ainda, não vi nada de novo ou revolucionário
nelas, porque circunscrever a Filosofia a uma região do globo - ora para
afirmar sua origem elitista, classista e imperialista e tentar romper com isso
no mesmo plano de linguagem; ora para informar seu potencial crítico que parece
estar mais próximo de uma Antropologia ou de uma Etnologia – não demonstra a
profundidade do exercício do pensamento filosófico e nem seus desdobramentos e
repercussões para uma verdadeira analítica da condição humana. Essas
“filosofias" ganhariam mais em criticidade e destrutividade, se operassem
uma fratura dolorosa e exposta – mas absurdamente necessária – com a “filosofia
europeia", se a deixassem de lado e lhe fossem indiferente, sem descuidar,
obviamente que, desde Marx, Nietzsche, Freud e Foucault, estamos licenciados a
pensar e refletir pelas beiradas e periferias da razão iluminista ocidental. O
que consigo observar nessa ginástica hermenêutica toda é uma fricção de
superfícies ou tensão de barras que procura trazer a Filosofia (acusada de
eurocêntrica) para um nível em que ela sirva tão somente de referência
“perversa e descartável” para outras modalidades de pensamento que não querendo
se igualar a ela, se afirmam paradoxalmente “Filosofia" – definindo,
categorizando e universalizando, qual seja, realizando operações mentais de
predicação do outro, da realidade e do mundo, da mesma forma que Aristóteles
nos ensina em seu Órganon, inclusive. Para esquematizar esta minha resposta: a
Filosofia não se detém em frases ou sentenças. E a verve crítica de um
pensamento numa frase exigirá muito mais que a sua simples expressão da mesma.
Ou seja, exigirá um reposicionamento de visão e um recomeço. É necessário se
rever por dentro, para que, inclusive, o que se pretende filosófico não seja
apenas uma metáfora cristalizada, como num poema que – de tão repetido – acabou
perdendo a força criativa. Algumas frases nos enganam em sua pretensão
filosófica. Uma parte considerável delas não quer dizer nada. Algumas poucas que
restam são muito mais resultado do bom senso do que da reflexão em
profundidade. Já sentenças do tipo “Conhece-te a ti mesmo" (Sócrates),
“Entre a amizade e a verdade, devemos escolher esta última” (Aristóteles),
“Penso, logo existo" (Descartes), “A razão na Filosofia” ou “O céu
estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim" (Kant) e, finalmente,
“Deus morreu" (Nietzsche), não fazem muito sentido sem todo o percurso
discursivo elaborado por cada um desses filósofos respectivamente.
III. Gigio Ferreira - Afirmam que a Ciência Jurídica foi a que mais
aprendeu com os desatinos da Revolução Francesa. Isso ocorreu pelo nascimento
de uma consciência nacional burguesa a partir dos iluministas ou isso apenas
explica a assimilação em parte das outras ciências nos aparelhos ideológicos do
Estado? Por quê?
Wladirson Cardoso - Se a Ciência Jurídica houvesse aprendido algo com os
desatinos das revoluções inglesa e francesa, ela jamais teria se permitido
chegar a um grau exagerado de positivismo na sequência de seu desenvolvimento
enquanto campo de saber. A questão é que os valores democráticos e as noções de
liberdade, igualdade e vontade geral foram tomados de assalto ao povo pela
classe burguesa que, por sua vez, se utilizou do sistema jurídico como
instrumento político em sua ascensão e, consequentemente, como recurso prático
na implementação de modos e técnicas de disciplinarização, normalização e
controle dos corpos e populações através de ações governamentais dos Estados
Nacionais. Tais ações se deram frequentemente por meio de processos de
territorialização e/ou de expansão imperialista e, no tocante ao Brasil, por
exemplo, observamos que, mesmo nas suas mais recentes experiências
democráticas, a Carta Magna que chamamos de Constituição não foi suficiente
para resguardar os interesses das minorias, as liberdades de pensamento e
expressão, o multiculturalismo e o direito à vida – porquanto, seguindo uma
pauta elitista, nossos políticos implementam agendas que são de interesse
patrimonialista, relativizando direitos fundamentais. Então a pergunta que
devemos fazer é: a quem efetivamente serve a Ciência – de um modo geral – e a
quem serve a Ciência Jurídica em particular, cujo objeto é o direito positivo
traduzido em normas, leis e regras?
Eu não sou tão otimista quanto Habermas que acredita que o Direito é um
médium entre os valores supremos da humanidade e os conflitos de interesse que
caracterizam as disputas políticas do mundo da vida, tornando o Direito um
sistema equilibrado de proteção da vontade de todos, em termos da relação entre
correção e verdade no exercício prático de uma ética da ação comunicativa que
põe em suspensão as certezas e paradigmas quando estes não apresentam mais
tanta eficácia para, com isso, decidir em parlamento e congresso, através de
representantes, o que é melhor para o bem comum. Por outro lado, não sou tão
foucaultiano a ponto de pensar que o Direito e a Ciência que o estuda constituem
unicamente discursos de poder que forçam um enquadramento apodítico e
categórico da subjetividade que, assim, terá que se submeter aos imperativos
das normas, leis e regras, porquanto, na concepção do próprio Foucault, onde há
poder e resistência. Se o sistema cumpre formalmente seu desiderato e
materialmente considera com equidade a peculiaridade de cada caso, é possível
que nos aproximemos da Justiça (como princípio). Todavia, não vejo como seja
possível realizar o Direito e garantir à Ciência que lhe corresponde a
independência epistemológica e os procedimentos interpretativos necessários no
momento de sua aplicação sem um diálogo com outras Disciplinas e Ciências
Humanas e Sociais. Isso pode ampliar a autoconsciência do Direito e, ainda,
expandir as áreas de investigação da Ciência Jurídica obviamente. No entanto, o
problema está no uso estritamente técnico da norma, porque em si mesmo o direito
para ser matéria de Direito tem de ser positivo, o que não significa que ele
seja justo. Se se compreender a justiça apenas como o locus onde se aplica o
direito positivo, ele estará sempre ideologicamente comprometido, desde a raiz,
origem e nascimento com os interesses patrimonialistas de direita e de esquerda
e jamais encarnará a Justiça como valor supremo e princípio inegociável. Se bem
compreendi sua pergunta, é correto afirmar, como você sugere na proposição da
mesma, que a Ciência Jurídica nas formações sociais capitalistas e ocidentais é
legatária das Revoluções Burguesas – isso considerando uma relação de
antecedência e consequência na qual se obnubila toda a complexidade das lutas e
disputas dos inúmeros grupos sociais que demandam Direito e Justiça. Porém,
Aristóteles já adverte no começo da Ética a Nicômaco que as disciplinas que são
ensinadas em um Estado e – acrescento – a própria maneira como elas são
ensinadas vinculam-se aos interesses dos que ocupam a estrutura política. E,
claro, isso também vale para a Ciência Jurídica e para o Direito.
IV. Gigio Ferreira - Da segunda fase da Revolução Industrial para cá,
diante das demandas de mercado e das crescentes corridas armamentistas, o
Estado Liberal-Burguês acabou incluindo em sua agenda econômica o conhecimento
científico como Commodity. Você poderia apontar as principais e cruéis
contradições que isso acarretou ao ensino da Filosofia nas Universidades?
Wladirson Cardoso - Tão logo a Ciência se tornou a linguagem
característica do pensamento teórico e do conhecimento epistemológico,
construindo para si um paradigma de certeza e verdade através do qual se
avalia, se julga e sentencia a realidade natural e o mundo dos homens, a
Teologia e a Filosofia sofreram um duríssimo golpe em seus pressupostos
metafísicos e dogmáticos, cedendo espaço à investigação metodologicamente
conduzida por instrumentos de observação, a fim de se testar e/ou provar
hipóteses e suposições na experiência, que, a partir deste momento, se torna o
critério de validade das teorias que reclamam o estatuto de cientificidade.
Assim, embora já tivesse indicado que a Metafísica constitui um dos interesses
da razão, Kant a inviabiliza enquanto Ciência, na medida em que ela não
consegue provar empiricamente aquilo que afirma, deixando a especulação livre
para levantar voo no campo da moralidade e da apreciação do gosto e do juízo
estético - uma estratégia, talvez, do filósofo para não se indispor com o imperador
e com a religião na Prússia da segunda metade do século XXVIII... Uma posição
mais radical talvez tenha sido adotada por Nietzsche já no século XIX declara a
morte de Deus para demostrar tão somente que valores como certeza e verdade não
passam de hábitos reiterados e vicissitudes morais que são naturalizadas, mas
que, portanto, não são essenciais e universais. Óbvio que a posição adotada
pela cultura acadêmica e investigativa não foi a de Nietzsche
predominantemente, e sim do Positivismo Cientificista de Augusto Conte, que
invadiu a Filosofia e influenciou pesquisas nos campos da lógica e da
linguagem, ensejando uma espécie de novo kantiano, motivando um número
considerável de pesquisadores reunindo-se em sociedades especializadas para
dizer o que era conhecimento científico e verdadeiro e o que, portanto, deveria
ser descartado como misticismo, obscurantismo e crença. Sem dúvida alguma que
todo esse histórico possibilitou à Filosofia a emergência de novas disciplinas
como a Teoria do Conhecimento, a Filosofia do Conhecimento, a Filosofia da
Ciência, a Epistemologia, a Lógica Simbólica (Matemática); porém, limitou consideravelmente
seu prestígio nas Universidades que, por sua vez, passaram a associá-la aos
Departamentos de Letras e Humanidades. Além disso, com a expansão e
consolidação da técnica como uma mediadora da relação homem/mundo, a Filosofia
institucionalmente assistiu ao declínio de seu potentado, apesar de permanecer
enraizada ao chão tal qual os pilares de um edifício sobre o qual se erguem as ciências
como um todo. É correto afirmar, no entanto, que o lugar da Filosofia em Universidades
de países da Europa como Inglaterra, França e Alemanha permanece numa posição
muito melhor e muito mais confortável do que em outros lugares do mundo como o
Brasil, o qual – ao longo da Ditadura Militar a partir de 1964 e, mais
recentemente, durante este governo neofacistoide de Jair Messias Bolsonaro –
assistiu e ainda assiste à pauperização de nossos cursos de licenciatura
enquanto parte integrante de um processo maior de inviabilização do ensino das
humanidades que, por sua vez, compõe esse cenário perverso e cruel de
sucateamento e desmonte das Universidades e da cultura intelectual em nosso país. Assim é que, nas Universidades Públicas
Federais e Estaduais, os Grupos de Pesquisa em Filosofia trabalham com nenhum
ou quase nenhum recurso ou apoio e nas Universidades Privadas, em muitas delas,
a graduação em Filosofia encontra-se em quase total extinção, tentando se salvar
do completo ocaso migrando para a Educação à distância. O curso de licenciatura
plena em Filosofia da Universidade do Estado do Pará é um exemplo de erros e
acertos da UEPA em atender a uma demanda que não era atendida com suficiência
pela UFPA. Nascemos sob a égide imperiosa da Pedagogia e, na sequência,
passamos a caminhar nas dependências das Ciências da Religião, com uma matriz curricular
eminentemente voltada para a formação e atuação do “professor de
Filosofia" na Educação Escolar Básica. No começo, a maioria de nossos
professores era horistas e substitutos, e grande parte deles, incluindo-se aí
os efetivos, nem tinham formação e até identificação com o curso. Pouco a pouco
isso foi mudando, tanto pela pressão que os discentes fazem, quanto pela minha
militância pela Filosofia para que ela não desapareça em nosso estado e,
também, não se transforme no reino inerte da arrogância de alguns docentes que
acreditam que ler Kant em alemão é o suficiente para suportarmos uma aula ruim,
torturante e psicologicamente prejudicial à saúde mental de quem a assiste. Professores
de Filosofia – como de resto em qualquer outra disciplina ou curso de graduação
– não podem e nem devem praticar nenhum tipo de assédio. Isso é criminoso e não
acrescenta em nada à dignidade de nossa área.
V. Gigio Ferreira - A aula propriamente dita é um dispositivo pedagógico
do século 19. A formação que temos pertence ao Paradigma da Instrução. Você
acha que poderíamos observar mais os Paradigmas de Aprendizagem e os Paradigmas
de Comunicação? Você é adepto das Oficinas, Círculos de Estudos e Projetos de Formação?
Por quê?
Wladirson Cardoso - A aula clássica do “mestre" proferindo lições e
os alunos olhando fixados e anotando freneticamente rápidas, mas importantes
observações, me cansam como docente, porque sempre me cansaram como discente.
Eu me lembro de ter tido professor que passava metade da aula falando em grego
clássico e latim – acabava maravilhoso, mas também não via muita vantagem
naquilo... Havia um outro professor que a figura dele amedrontava por si só:
ele era muito alto e nos olhava dos pés à cabeça com um ar de total desprezo, e
eu tinha que estar ali. Um outro professor era engraçado: ele soprava tanto a
língua na hora de pronunciar uma palavra com a letra R/ em alemão que os
colegas e eu saíamos dali meio tontos de tanto rir pelas costas dele. Porém, o
mais grave e traumático foi quando uma professora, ao feitio que lhe era
típico, me chamou de burro na frente da turma ou algo do tipo. Alguns colegas
tentaram me defender e foram prejudicados nas notas da avaliação final. A
professora não admitiu a contrariedade. Como ela foi interditada em me punir,
acabou punindo as colegas e os colegas que advogaram em meu favor... Estes são
alguns exemplos do que você chama de “paradigma da instrução”, e ele é o que eu
chamo de tortura psicológica, trauma e mortificação. Imagine ter – ainda hoje –
que ficar sentado em uma cadeira desconfortável, ouvindo aquelas e aqueles que deveriam
ser exemplos de vida e modelo de inspiração para a vida acadêmica. E os mesmos
se aborrecendo porque queriam que adivinhássemos a filologia de termos de uma
ou duas línguas mortas, dizendo que não sabíamos ler as outras línguas, que
nossas traduções eram péssimas, que não possuíamos experiência e maturidade
para ler um texto de Filosofia... Esse tipo de formação violenta, que
constrange e assedia foi muito comum em minha época. É o tipo de formação
pautada numa educação tradicionalista e elitista. Os cursos de Filosofia devem
tomar esse cuidado, então, para não se tornarem mais elitistas, classistas e
racistas mais do que já são, digo, aprender a reestabelecer o diálogo com
sujeitos que ali encontram-se interessados. Não aprendi a dar aula com os meus
professores. Eles não me ensinaram isso. Se me ensinaram algo, foi a
arrogância, a prepotência, o desprezo pelo outro – tudo o que contrario. O fato
de ter ido para a pesquisa em Direitos Humanos no Mestrado e, depois para a
Antropologia Social no doutorado, representam sintoma disso. E um sintoma
grave, pois me diagnosticaram como incapaz de suportar processos pedagógicos
pautados na barbárie em que o professor se coloca acima dos seus alunos. Por
isso eu contesto, conflito e confronto com este tipo de formação para a
erudição – ou seja, o discente aprende a ler Hegel, Husserl e Heidegger, mas
não tem sensibilidade humana, não exercita a alteridade, não olha nos olhos de
quem o encara e reconhece nesse olhar um ser humano. Não aprendi a dar aula com
meus professores, eu aprendi a dar aula com meus alunos da Pedagogia da Terra
em Marabá, lá pelos idos de 2006 e 2007; eu aprendi a dar aula por meio de
Oficinas de Leitura e Formação que ministrei para colegas da Educação Escolar
Indígena na Aldeia Kyikatêjê Amitatí entre 2008 e 2009 - na época do mestrado;
eu aprendi a me comunicar com o povo quando militei em Movimento Universitário
de Defesa dos Direitos Humanos e sexuais LGBTQIA+ entre 2009 e 2010; eu aprendi
a dar aula com minhas turmas de Filosofia do Campus XI de São Miguel do Guamá
de 2011 a 2019, quando ali atuei quase que com exclusividade porque existe uma
carência muito grande de professores de Filosofia com formação de base na área de
interiorização de nosso ensino superior. Sim, eu sou adepto da troca dialógica
e democrática em sala de aula, de oficinas, círculos de leitura e projetos de
formação pela simples razão de que essas outras práticas consideradas
complementares, são as que mais nos engrandecem como pessoas, tanto quanto ou
principalmente exercitar a docência em lugares afastados dos grandes centros
urbanos e grandes capitais. Em novembro do ano passado, fui convidada para um
Ciclo de Palestras e Formação em Pesquisa organizado por um grupo de professores
da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB), sediada na cidade de Redenção, distante apenas 72 km de Fortaleza/Ceará.
Sem dúvida essa foi para mim uma das experiências mais intensas, pois estar em
contato com estudantes do interior do Ceará e, também, com estudantes vindos de
outros lugares do mundo na África me mostrou o quanto consigo falar se
pensamento, conhecimento, ciência e pesquisa para um público diferente do qual
estou habituado seja em Belém, seja no interior do Pará. Ora, o que adianta ser
filósofo e assumir o compromisso público de praticar a sabedoria se não se
consegue se comunicar com toda e qualquer pessoa?... Ainda no ano passado, uma
senhora que faz a limpeza da sala de minha coordenação na UEPA, entrou meio
acanhada e me olhou tímida. Eu senti que ela queria me pedir algo. E o que ela
me pediu me surpreendeu e me emocionou. Ela pediu que eu explicasse a ela o que
era Filosofia. Daí, sem pestanejar, lhe respondi: “Filosofia é o que te faz,
nesse momento, querer conhecer e ter coragem de perguntar”. Os olhos daquela
mulher saíram de minha sala marejados em gratidão. Já o meu espírito não
conseguiu mais caber em mim de tanta alegria, porquanto naquele instante
percebi que resgatei um tipo antigo de exposição da sabedoria que o
academicismo instituído e a vaidade de muitos docentes fizeram se perder.
Comunicar-me desta forma com o outro não me diminui e nem me torna menos
pesquisador...
VI. Gigio Ferreira - A intersubjetividade consegue atingir graus
elevados de vivências? Por quê?
Wladirson Cardoso - Às vezes não. Quer dizer, na maioria das vezes não.
Eu, particularmente, não sou um entusiasta da vida gregária e da
interdependência (afetiva, sexual, econômica, política e existencial). Almoços
e jantares familiares não me agradam; datas comemorativas e celebrações
públicas – à exceção do Círio talvez (e muito mais por motivos culturais do que
propriamente por motivos religiosos) – não me animam; reuniões de trabalho
sempre me desgastam. Não se trata de misantropia necessariamente. Penso que é
por que na minha história de vida, não tenha crescido próximo a parentes. Fui
filho único por muitos anos e, quando meus irmãos, nasceram – com uma
significativa diferença de idade em relação a mim – eu já tinha meus pequenos
hábitos, uma rotina e algumas manias que arrasto comigo até hoje. Além do mais,
no início da adolescência descobri as obras de Machado de Assis que me deram o
hábito da leitura e da escrita e que preenchiam minhas tardes monótonas com um
exercício saudável de linguagem e imaginação. Não fui um “adolescente problema”
– eu vivia de forma intensa minhas fantasias e idiossincrasias. Porém, quando
entrei na vida adulta fui construindo uma trajetória existencial na qual
primava muito pela minha autonomia de espírito e independência material. E isso
é muito forte em mim agora no início dos meus 40 anos. Eu penso que me permito
a intersubjetivação – mas com muitas reservas de intimidade – apenas quando
estou em sala de aula na companhia de meus alunos e/ou na minha função de coordenador
do curso de licenciatura em Filosofia da Universidade do Estado do Pará. Tenho
uma relação franca e direta com os discentes do curso que têm acesso a mim – ou
presencialmente, quando necessitam que eu resolva alguma demanda urgente; ou
remotamente através das redes sociais e ligação telefônica. Eu interajo
bastante com muitas pessoas nas redes sociais, mas em meu convívio direto estão
o meu companheiro, a nossa cadelinha, a Delina – que organiza minha casa, meus
livros e o que mais não consigo fazer -, minha mãe e meu irmão caçula.
Eventualmente recebemos alguns amigos próximos ou meus orientandos de mestrado
para uns vinhos e vinis. Para uns, minha descrição vai parecer muito
liberal/burguesa e para outros muito anarquista. E não é nem uma coisa, nem
outra. Sou defensor de um projeto humano socialista, no qual todos possam gozar
das mesmas oportunidades de forma igualitária, respeitando-se as necessidades
dos grupos mais vulneráveis e setores mais carentes da sociedade,
considerando-se, pois, a importância mesma da implementação de políticas
públicas para a inclusão e reparação histórica. Mas não me passam o convívio –
não! Não me sinto obrigado e detesto me sentir assim: forçado, compelido,
escravizado pelas normas do trato social – quer seja no registro da etiqueta
europeia; quer seja no registro da cordialidade brasileira. Eu fujo para as
montanhas e serras literalmente quando a cidade urbanizada e conturbada com
todos os seus problemas e dilemas me inquietam e exasperam. Mas admito que
gosto do vai e vem dos grandes centros apenas para observar o comportamento das
gentes e aprender com a diferença e o contraste. No entanto, se pensarmos num
projeto grandioso de humanidade, a intersubjetivação é fundamental e urgente,
mas sob a égide e orientação da Justiça, dos Direitos Humanos, do
reconhecimento da alteridade e do respeito à diversidade e acolhimento sincero
das escolhas individuais e das diferenças. O que nos impede de chegar a isso é
não só o modelo viciado de sociedade que temos conflagrado através de um Estado
classista, patrimonialista e massificador que planifica e burocratiza a vida;
mas, também, o egoísmo e a vaidade. E esses desvios de caráter estão presentes
nas práticas populistas de muitos políticos e seus asseclas. Por isso não
bajulo quem quer que seja, evito intrigas departamentais e não me vitimo – um
tipo de ceticismo público que me afasta de gente controladora e manipuladora,
uma figura muito comum nas Universidades. Eu procuro transmitir isso aos meus
alunos e orientandos, como uma forma potente de resistência. Todavia, na minha
vida privada – quem me conhece mais de perto pode confirmar – sou um cínico, ou
melhor, um sátiro, adepto do deus Dionísio...
VII. Gigio Ferreira - O modo como o professor aprende refletirá no modo
como ele ensinará? Por quê?
Wladirson Cardoso - Estamos falando de uma aprendizagem pautada num
processo de formação em nível superior? Porque se for isso, mais uma vez,
prefiro me isolar nas montanhas a ser aluno novamente da maioria absoluta dos
professores que tive no doutorado, no mestrado, e principalmente na graduação
em Filosofia. Não se trata de “cuspir no prato em que se comeu"; trata-se,
isto sim, de se fazer jus aos meus esforços de não parecer em nada com muitos
dos “exemplos” (entre aspas aqui, porque há um sentido pejorativo) que tive ao
longo de todos esses anos de formação. Por exemplo, um avaliador interno de
minha tese de doutorado – não tendo nada mais a “criticar” – resolveu debochar
da minha escrita que, em muitos aspectos é leve e metafórica, perguntando-me se
aquilo era pesquisa e se tinha validade científica. Bem, se aquilo era pesquisa?
com toda certeza que sim. Daí se era Ciência, vamos ter que descer aos manuais
de metodologia científica, aos manuais de Teoria do Conhecimento, aos próprios
textos históricos se fundação/ inauguração do pensamento científico, aos textos
de etnografia que discutem autoria e à toda e qualquer problemática que é fazer
pesquisa e ciência no campo da História, da Sociologia, da Ciência Política, da
Antropologia e da Psicologia, em que os objetos não são dados em si e nem fatos
ou casos monolíticos e isolados, mas sim eivados de complexidade e
instabilidade. Essa fixação que tangencia à neurose de muitos professores que
tive no doutorado e no mestrado – em especial desse meu avaliador – me mostrou a
duras penas que, no âmbito das humanidades, uma parte considerável dos
pesquisadores querem por força que a complexidade do mundo se restrinja às
categorias e conceitos de autores de sua preferência e cabeceira – tal qual
criança mimada que se atira ao chão esperneando porque a mãe não comprou o
brinquedinho que logo se vai descartar ou o chocolate que nem se vai comer. Na graduação
eu tive que me dividir entre os partidos kantiano e nietzscheano – sem,
contudo, escolher nenhum. Pela necessidade da Bolsa, eu me envolvi com os
kantianos, mas sempre de olho atento e muito interessado no outro grupo que me
olhava com desprezo. Conclusão: eu leio e discuto Nietzsche e Kant com muita
tranquilidade com meus alunos em sala, ainda que não seja especialista. Aliás,
por que exigem que sejamos especialistas nisso ou naquilo? Por que temos que
nos especializar nesse ou naquele autor, nesse ou naquele filósofo, nessa ou
aquela abordagem, se podemos borrar fronteiras, se podemos transversalizar o
pensamento e os argumentos? Penso que essa minha postura iconoclasta e
libertária no modo como faço pesquisa e ensino eu não aprendi com meus
professores, mas sim na minha experiência de militância social, junto a
professores da Educação Escolar Indígena, junto aos discentes de Filosofia de
São Miguel do Guamá. Ou seja, aqueles que para mim verdadeiramente importam. Os
meus professores da formação em Filosofia foram muito importantes, porque de
grande parte deles só me resta esperar que jamais eu os ature como aluno
novamente e que jamais venha a reproduzi-los em sala com meus estudantes – à
exceção do professor Ernani Chaves, obviamente. Portanto, a resposta à pergunta
que você me fez é: 1) Sim, se o professor desde sua formação tiver talento
apenas para copiar modelos. 2) Não, se ele quiser ousar fazer um trabalho
diferente em todos os seus aspectos, o que talvez lhe custe amizades e relações
influentes na academia – mas quanto a isso, eu realmente sou indiferente. Hoje
posso dizer que eu rompi com os cânones, modelos e mestres. Então, sigamos!
VIII. Gigio Ferreira - Em recente artigo ao Jornal O Estado de São
Paulo, o antropólogo Antônio Risério afirmou que o Brasil nunca foi e não é um
espaço multicultural. Ao contrário, disse que o Brasil é sim um país
sincrético. E prosseguiu afirmando que (LUGAR DE FALA) circunscreve
legitimidades discursivas só para oprimidos. E não obstante a tudo isso,
concluiu seu artigo afirmando que a história cultural da humanidade é toda ela
feita de imposições, apropriações, empréstimos, trocas e mesclas... E que a
ideologia multiculturalista se opõe às interpenetrações culturais, defendendo o
desenvolvimento apartado de cada comunidade étnica. Como antropólogo, como você
discute essas questões com a comunidade científica e os mestrandos que você
orienta?
Wladirson Cardoso - O ponto de vista dele é claramente anti-relativista
e elitista. O que ele esqueceu de dizer é que as imposições culturais se dão
sempre a partir de uma política expansionista e imperialista; que os
empréstimos culturais se dão frequentemente partir da necessidade de soluções
práticas e materiais convenientes aos grupos dominadores que, geralmente,
obliteram a origem de onde se realiza o empréstimo ou, melhor dizendo, o saque
– porque à sombra de cada empréstimo haverá sempre um saque ou uma pilhagem – e
que trocas e mesclagens culturais se dão comumente de forma lenta, complexa e
variada como uma estratégia negociada de equilíbrio, sobrevivência ou
resistência dos sujeitos em suas formações sociais. O fenômeno cultural humano
não cabe em teorias abstratas e muito menos em um artigo para confrontar ou
detonar os movimentos sociais que demandam atenção, respeito e proteção,
ensejando e afirmando a narrativa de uma outra história, de uma história
contada a partir de baixo, a partir do ponto de vista dos vencidos ou dos oprimidos.
Por isso, em termos políticos e de garantia de direitos constitucionais e de
Direitos Humanos e Fundamentais, fala-se em identidade, etnicidade e raça – não
para separar, segregar ou apartar; mas sim para reparar e superar os
preconceitos, as discriminações e suas múltiplas derivações específicas
(classismo, racismo, sexismo e LGBTQIA+fobia). Por isso, em termos
governamentais, digo, em termos de políticas públicas, fala-se em inclusão e
cotas – e, com isso, não está se falando em premiar incompetências e/ou
incapacidades; mas sim de oferecer condições objetivas e materiais palpáveis a
pessoas, grupos ou populações inteiras que estão longe do sistema de ensino ou
do mercado de trabalho porque se encontram em situação de fragilidade,
vulnerabilidade ou marginalidade. A sociedade brasileira se estruturou e se organizou
a partir da lógica do racismo e da discriminação. Me diga, pois: quem habita as
periferias dos grandes centros urbanos? Quem frequenta a Educação Escolar
Básica da rede pública de ensino municipal e estadual, mas está
caracteristicamente ausente das Universidades Públicas e das cátedras
universitárias? Quem sofre nas filas das Unidades de Pronto Atendimento, nos
Postos e Emergências e demais Hospitais do Sistema Único? Quem é pego e revistado
nas batidas policiais nas esquinas dos bairros pobres das cidades? Quem
constitui a maior população encarcerada do país?... A resposta é a mesma em
todos estas questões. Não sejamos hipócritas! A coisa se agrava se a pessoa
negra e pobre recaem outros marcadores sociais da diferença: mulher e/ou
LGBTQIA+. Por isso que é importante falar de racismo estrutural e pobreza em
nosso país. Por isso é importante discutir o feminicídio, os crimes de
LGBTQIA+fobia. Por isso é importante esfregar na cara de nossa sociedade as
desigualdades, injustiças, violências e mazelas que nos atingem porque não é
uma questão de vitimismo ou vitimização; é uma questão ética de respeito pelo
outro e, também, é uma questão política de justiça e reparação. Nesse sentido,
não se pode confundir ideologia, diversidade, multiculturalidade e diferença.
Em termos gerais, ideologia é o mascaramento da realidade – intencionalmente
por um ato de vontade ou desvio de caráter (aqui, então, posso afirmar que as fake
news são ideológicas) ou inconscientemente por naturalização e essencialização
da realidade. Diversidade significa contraste e alteridade, isto é, tudo o que
no plano simbólico e material das culturas não se pode igualar entre si.
Multiculturalidade é a pluralidade na diversidade ou a multiplicidade do que é
diverso – como afirmar que o Brasil não é um país multicultural e que o
multiculturalismo, enquanto abordagem antropológica, é “Ideologia”? Ao que tudo
indica, subscrever o multiculturalismo uma expressão ideológica, para além de
ignorância evidente, é, de fato, uma inflexão perversa e canalha para reafirmar
a “mistura de tudo e de todos" sob os agouros implicados no termo
“sincretismo” que se presta, por exemplo, ao discurso nacionalista e autoritário
que, no seu fundamento obscuro, propaga a ilusão de que o país é um “espetáculo
democrático de raças” vivendo supostamente na mais plena harmonia. Não é o
multiculturalismo que é ideológico, mas sim a adjudicação do sincretismo que,
por sua vez, mascara, tendenciosamente, a realidade. De posse dessas primeiras
noções, posso dizer agora que a diversidade comporta a diferença. Elas não são
a mesma coisa, teoricamente falando; mas estão em relação, inclusive de tensão
– porque é mais fácil ou conveniente admitir a diversidade e a
multiculturalidade, confundindo-as tacanhamente com o “sincretismo”, como fazem
na maioria das vezes os ideólogos da direita e do Estado totalitário no Brasil
desde a Ditadura Militar praticamente, a que, por exemplo, compreender que
existem graus de vivência e experiência do racismo, da pobreza, da
performatividade do gênero e da sexualidade e, ainda, da prática religiosa de
matrizes africanas e não cristãs que podem expor os sujeitos a toda sorte de
violência e extermínio quanto mais afastados estejam dos ideais de branquitude,
juventude, masculinidade, trabalho, emprego, renda, sucesso e religiosidade.
Não existe “cristofobia" no Brasil! O termo é ridículo; a expressão é
risível! E, só para frisar, questões de gênero e sexualidade não são
“ideologia”, tanto quanto o multiculturalismo não o é. Quando pesquisadores e
militantes da diferença mobilizam a partir dos movimentos sociais e de suas
reivindicações identitárias próprias – sim, identidade e diferença se
relacionam – a expressão “lugar de fala", querem nos chamar a atenção para
quem tem mais legitimidade para abordar essas questões, porquanto um homem
branco, hetero, cis, classe média e cristão não pode falar ou se posicionar em
lugar de uma mulher negra, trans, lésbica, pobre e não cristã. Quem de ambos
carrega em si mais marcadores da diferença que surge em barreiras na vida? Ora,
para um homem branco, hetero, cis, classe média e cristão, o mérito já está
previamente legado como dispositivo discursivo a ser acionado. Todavia, para
quem carrega em si as marcas da diferença, a primeira resposta ao mundo, à
realidade e à vida é, justamente, a garantia da sobrevivência. Não há mérito,
há residência! Por exemplo: nosso país registra índices altíssimos de violência
policial contra jovens negros nas comunidades pobres e distantes dos grandes
centros; os crimes de violência contra mulher e feminicídio são alarmantes; o
assassinato de LGBTQUIA+ por aqui é o maior do mundo quando comparamos Brasil e
alguns países eslavos onde o a LGBTQIA+fobia é quase uma política de Estado. A
expressão “lugar de fala" não pode se constituir, porém, em uma camisa de
força no discurso e na ação dos filósofos e antropólogos da diferença. Para
vencer e superar as injúrias, calúnias, difamações e os preconceitos e
discriminações em nosso país, devemos intercessionar as pautas, reunir as
lutas, juntar forças e ir para o enfrentamento. Isso exige uma postura de
receptividade ao novo, de reconhecimento do potencial transformador da
contracultura inaugurada por uma política cotidiana das múltiplas e variadas
existências que não se enquadram nos modelos compulsórios da produção dos
corpos e desejos moralmente úteis. Então, o cuidado que se deve ter para não
subsumir o identitarismo da diferença ao liberalismo político é não esquecer
que os direitos individuais ou civis são parte importante no ciclo da geração
dos Direitos Humanos e que a defesa dos direitos sexuais sempre perturbará a
hipocrisia de “pais de família e cidadãos de bem” que, a despeito de suas
esposas e filho(s) e/ou filha(s), descarregam – catarticamente – as obrigações
apodíticas (mas frágeis) de sua masculinidade nos banheiros de shoppings e
rodoviárias; em saunas ou através de aplicativos de relacionamento, buscando
sexo casual – “apenas para curtição, na broderagem e sem frescura";
porque, afinal de contas, são heteros... É deste jeito, neste grau de profusão
teórica e de densidade analítica que discuto tais questões com meus orientandos
de mestrado no programa de pós-graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica
(PPEB) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Procuro mostrar-lhes que a
escola, que deveria ser um espaço de acolhimento e promoção da diferença (na
diversidade), é o primeiro a excluir ou, o que é mais perverso ainda, o
primeiro a invisibilizar ou marginalizar jovens que estão mais próximos da
exclusão social do que dos critérios de humanidade que a própria instituição
escola preconiza. Já orientei trabalho sobre a implementação de projeto de
aceleração do tempo de formação na Educação Básica para alunos considerados em
idade/série “em distorção”. E o que isso significa? Quem está distorcido? O
aluno? Pois se assim for, a culpa do “fracasso escolar” é dele, que, assim,
confirmará sua incapacidade – leia-se: anormalidade – para o estudo. Absolve-se
a instituição que, objetivamente, está estruturada e organizada, desde o espaço
físico até o Projeto Político Pedagógico para promover o aluno disciplinado e
funcional... Outro trabalho que orientei mostrava como as pastorais da
juventude da/na Igreja Católica - em uma cidade do interior do estado –
instaurava um currículo paralelo e complementar ao da Escola Básica para
subjetivar meninos e meninas para a heterossexualidade, o casamento, a
reprodução biológica e para a vida religiosa, condenando como pecado outras
possibilidades de viver os imperativos do corpo. Eu poderia citar aqui mais um
trabalho cuja orientação iniciei este ano e que diz respeito ao modo como uma
dada instituição escolar em outro município do interior paraense silenciou
diante de um crime de assassinato por homofobia. Observe algo: todos os meus orientandos
de mestrado são em sua maioria absoluta LGBTQUIA+ ou heteros cis sensíveis à
causa e grande parte deles são de outros municípios ou de áreas afastadas do
centro de Belém. Nas minhas orientações, procuro destacar a importância de se
realizar uma etnografia pós-estruturalista com os aporte teóricos de Michel
Foucault, desesperando e decepcionando filósofos e antropólogos – os primeiros
porque consideraram o pensador francês apenas a partir de um ponto de vista
teórico e porque não entendem nada de Antropologia Cultural e os outros porque
não leem Foucault em profundidade e não encetam uma compreensão relativista do
mesmo. Porém, acredito que o maior incômodo vem da parte de alguns colegas do
Programa, que adotam uma abordagem crítico-marxista e que, já ouvi dizer,
afirmam que não sei orientar e que o que oriento não é Ciência. Mas isso, se
não for fofoca, é despeito...
IX. Gigio Ferreira - O idealismo cristão foi responsável pelas Cruzadas
e a Inquisição. E por isso mesmo até hoje não conseguiu sair e nem retirar da
cama de Procusto os políticos que a igreja sediada em Roma gerou e criou para
se defender, ironicamente, das ideologias fascistas e nazistas. Na sua opinião
os sonhadores são todos idealistas ou poderíamos acomodá-los razoavelmente bem
e sem prejuízos líricos em recantos de uma utopia útil?
Wladirson Cardoso - O idealismo – no singular – pressupõe que as ideias
antecedem à realidade. Se elas não são legadas pela razão – como naquele esforço
meditativo que Descartes enseja para provar sua origem inata; as mesmas
decorreriam de um “Ser Supremo" que Platão chamou de “Sumo Bem" e que
o cristianismo chama de Deus. Ora, quer seja o idealismo racional ou
racionalismo idealista; quer seja o idealismo religioso de um Plotino ou até
mesmo o idealismo cristão de um Santo Agostinho, estamos diante daquilo que
Heidegger chama de “constituição onto-teológica da metafísica”. E o que isso
quer dizer? Em linhas gerais, isso significa que o grau máximo – em termos
absolutos – do exercício do pensamento atinge um nível tão elevado na busca de
uma fundamentação única para todas as coisas que a Filosofia arrasta para
dentro de si aquilo que é objeto da Teologia. Depois da Patrística na transição
do Helenismo para a Idade Média e da Escolástica Europeia para a Idade Moderna.
Filosofia e Teologia caminharam juntas e inseparáveis a ponto de se
“cristianizar” filósofos pagãos, de se defender a proeminência da fé sobre a
razão, de se desenvolver exercícios de lógica apenas para se reafirmar o mais
do mesmo nos jogos teóricos e dialéticos das provas e contraprovas da
existência cosmológica e ontológica de Deus, para se discutir a origem do mal e
o livre-arbítrio. É possível afirmar, junto com Ernest Cassirer, em “Indivíduo
e Cosmos na Filosofia do Renascimento", que as reiteradas discussões
acerca dos mesmos temas de reflexão na Escolástica Medieval – todas elas
fundadas em argumentos de autoridade, retirados da Bíblia, da física aristotélica
e do sistema-mundo ptolomaico – exauriram a imaginação e a criatividade do
homem com espírito de ciência que, então, passou a vislumbrar outros esquemas
explicativos não conformes ao Teocentrismo da Igreja. Filósofos como Giordano
Bruno na Itália e Francis Bacon na Inglaterra ensaiaram novas possibilidades se
compreensão e entendimento da vida, do homem, da natureza e de Deus. Porém, a
Revolução Científica que foi, ipso facto, uma revolução metodológica, qual
seja, uma mudança de perspectiva na maneira de se pensar o conhecimento, a
relação sujeito-objeto, a elaboração de leis físico-naturais elaboradas pela
razão que foi à natureza para tentar decodificar sua linguagem matematicamente
somente ocorreria com Copérnico, Kepler e, finalmente, Galileu. A utilização de
instrumentos para a aplicação do método, como demonstra Alexander Koiré, nas
obras “Do Mundo Fechado ao Universo Infinito" e “Estudos de História do
Pensamento Científico”, abalaram o idealismo especulativo que sempre afirmara
de forma peremptória aquilo que não consegue provar na experiência possível.
Não se deve esquecer que, paralelamente a esse movimento interno de
questionamento das verdades impostas pela Santa Sé Romana, ocorria um outro
movimento de questionamento e confrontação quanto a práticas clericais abusivas
que resultaram na Reforma Protestante de Martinho Lutero, Calvino e Henrique
VIII. Todavia, a reação da Igreja na defesa de seus preceitos filosóficos e
dogmas de fé foi implacável, resultando, consequentemente, na Contra Reforma,
cujos instrumentos de apoio e sustentação foram basicamente o Tribunal da Santa
Inquisição e a Companhia de Jesus. A história é longa e cheia de complexidade e
nuances. No entanto, o que se tem que entender é que quando o idealismo se
torna política de Estado, a guerra, o extermínio e a barbárie são a decorrência
perversa e cruel de um discurso que impõe a universalidade de uma certa verdade
que se pretende inquestionável e irrefutável. Não quero dizer com isso que todo
idealismo é ideológico – do contrário, pareceria simplista demais e perderia em
consistência e densidade argumentativa. Posso dizer, seguramente, que toda
ideologia é idealista – já que se procura estabelecer como visão de mundo
inquebrantável. Neste sentido, como alega Karl Popper, se nosso conhecimento é
pouco e limitado e nossa ignorância é infinita, o senso comum (da fé, da
Religião e da Filosofia) nos serviriam para o avanço da Ciência e a
desmistificação da vida. Porém, de acordo com Adorno e Horkheimer – na
“Dialética do Esclarecimento” – não foi o que aconteceu, uma vez que a razão se
instrumentalizou e se tornou meio para destruição em massa de povos e grupos.
Logo, a crença nos poderes e capacidades da razão para a perceptibilidade
humana - uma expressão linda retirada da Filosofia Iluminista – não lograram
verdadeiramente seu propósito emancipador e humanitário, na medida em que o
Estado capturou a Ciência e a utilizou como recurso prático na ideologização,
alienação e, finalmente, nos processos de disciplinarização, normalização,
judicialização, medicalização, governamentalização, traduzidos naquilo que
Michel Foucault define como Biopolítica ou Biopoder, a qual se caracteriza
justamente pelo controle dos corpos – moldados preferencialmente nos enquadres
de uma dietética da utilidade e funcionalidade – e das populações – treinadas à
obediência e reprodução do sistema. O ponto crucial neste debate não é,
portanto, a substituição do idealismo (em uma de suas múltiplas definições)
pelo intelectualismo, pelo realismo, pelo criticismo, pelo niilismo, pelo
anarquismo, pelo materialismo mecanicista ou pelo materialismo dialético. E sim
por uma espécie de política de artificialização da vida – inventada, testada e
re-feita no cotidiano –, na qual se consiga ampliar nossa opção pelos pobres,
excluídos, marginalizados e pelos “loucos" – como naquela música do Vitor
Ramil [“Loucos de Cara"] que nos conclama percorrer o planeta e... Sumir
nos descaminhos da liberdade. Esta opção, no entanto, seria uma opção sem
definições prévias, em constante reelaboração para que nenhuma categoria ou
conceito nos roube a possibilidade de nos experimentarmos em nossas diferenças
específicas e desejos particulares. Neste sentido, o exercício da imaginação e
a reabilitação da dimensão lúdica e onírica do homem é fundamental para não
enrijecer a ideia de uma possível transformação da intimidade e das estruturas
sociais numa perspectiva antimoralista e nenhum pouco previsível em suas
conclusões e programas de ação. As utopias individuais e/ou coletivas deveriam
resgatar a potência e vivacidade da imagem distante daquilo que ainda não
existe, mas que um dia – em algum tempo e lugar – pode “vir-a-ser" (não
para além deste mundo ou para além das estrelas; e sim no presente, quando se
legitima o sonho de dias melhores como resistência à decadência do sistema de
mercado e das relações humanas que dele emergem). Penso que assim, retiramos os
que os comitês do partido comunista espalhados pelo mundo apoiassem líderes
sonhando de olhos abertos, na metáfora do idealismo e da sombra do
racionalismo.
X. Gigio Ferreira - No pós-guerra de 1945, Moscou enviou uma
ordem para que os comitês do partido comunista espalhados pelo mundo apoiassem
líderes nacionalistas com algum lastro social-democrata. Era um evidente estratagema
de combate à hegemonia cultural, política e econômica das forças representadas
pela atuação direta do novo bloco nomeado (OTAN) em vários países e em muitos
continentes. Com isso, vimos aqui o grande líder Luiz Carlos Prestes apoiando o
caudilho Getúlio Vargas, mormente na campanha (O Petróleo é Nosso!). Após a programada
queda do Muro de Berlim, as mesmas forças hegemônicas do ocidente declararam e,
posteriormente impuseram, uma nova ordem mundial. Pergunto, mesmo com os
insurretos (BRICS), por que ainda há uma boa parcela de comunistas brasileiros
ainda se dizendo nacionalista? Isso não é um paradoxo ou o socialismo moreno de
Leonel Brizola tinha razão?
Wladirson Cardoso - Quem são esses comunistas? Os mesmos que aparecem
ladeados a políticos de direita em escândalos de corrupção? Pois se forem os
mesmos, me parece que não há muita diferença aparente entre os que se elegem
defendendo uma agenda fascista resumida no lema “Brasil acima de tudo; Deus
acima de todos" e o oportunismo de quem vai escalando uma carreira no
legislativo e no executivo com um programa supostamente democrático e
humanista. As leituras que fiz até hoje, quer na Filosofia, quer na
Antropologia, me ensinaram a lançar um olhar distanciado e de suspeita sobre a
vida, o conhecimento e a moral. E o que define e sustenta essa tríade, senão a
política? Os gregos já nos ensinaram isso. Mas Maquiavel – que talvez tenha se
tornado clichê por habitar a cabeceira das comidas de alcova daqueles que
acreditam extrair dele alguma lição de sucesso – também advertia que a política
não é o reino dos céus e que não existe inocência nessa seara. Eu diria,
ingenuidade talvez (e de principiantes com “boa vontade"); mas inocência
jamais. Porque política, numa definição clássica, é a ordenação do “bem
comum" e a condição da “vontade de todos". De fato, o Estado seria
uma entidade metafísica vazia sem a política (que conduz – mediante interesses
de partidos ou grupos – a dinâmica e o funcionamento das instituições) e sem o
Direito (que assegura a ordem e garante estabilidade do sistema político). Não
se que tipo de teste ou prova deveríamos aplicar aos candidatos a cargos
eletivos na política, a fim de que demonstrem competência e habilidade no
exercício da representação pública dos interesses daqueles que os elegeram. Só
sei dizer que o projeto da direita sempre foi capitalístico e de garantia do
status quo das elites; e, por outro lado, o projeto da esquerda, neste aspecto,
jamais deveria se aproximar, se assemelhar ou se confundir com o projeto de
seus antípodas – até porque, quando isso ocorre, dilui-se o valor da alteridade
e o princípio da humanidade que devem orientar o sonho de um Brasil mais justo
e mais igualitário. Mais uma vez, aqui, nos deparamos com o inconveniente de um
idealismo que requer um estatuto de cientificidade, positividade, diretividade
e controle, em oposição à utopia. Porque esta, se permite rever e refazer, mas
o anterior não. E é neste instante que o sonho corre o risco de se transformar
em ideologia – e nós, feito os bichos iludidos da fazendo, corremos o risco de
nos surpreendemos estupefatos com os “líderes” de nossa tão sonhada revolução,
comendo, bebendo, rindo, celebrando e andando sob duas patas, à semelhança dos
humanos exploradores e opressores (só para ficarmos aqui com a metáfora que
encerra o conto “The Animal Farm", traduzido aqui sob o título A Revolução
dos Bichos. De George Orwell). Conheço de perto um certo número de pessoas
ligadas a partidos políticos de esquerda que se utilizam da boa-fé dos outros.
Pior, ainda, conheço de perto gente que se vale do “nome de família” – como se
fizessem parte de uma casta superior ou como se fossem a própria realeza –, que
é tão elitista quanto qualquer pseudoaristocrata de família tradicional
decadente que sempre revive os tempos passados de uma suposta Belle Époque que
é quase uma narrativa idílica e saudosista... Nos tempos da Guerra Fria, Moscou
representava para os militantes do socialismo /comunismo ao redor do mundo uma
linha de fuga ao imperialismo americano e à dependência econômica . Devemos
muito a eles na resistência ao autoritarismo e ao militarismo. A salvaguarda
dos interesses nacionais se apresentava como uma alternativa coerente ao
entreguismo de nossas riquezas naturais que deveriam ser mantidas entre nós e,
assim, promover o desenvolvimento do país. Ora, defender o nosso patrimônio
(histórico, cultural) e/ou nosso potencial hídrico, energético, enfim, sempre
foi o projeto político de nação de nossa esquerda (às vezes em tons mais brandos,
às vezes em tons mais aguerridos, se se considera a maior ou menor proximidade
em relação à direita do país). E aqui tenho que dizer que deve haver uma
distinção entre o nacionalismo de direita – que é neoliberal e, portanto,
alinhado ao capital estrangeiro – e o “Projeto Brasil" – que recentemente
foi vítima de um golpe jurídico-midiático e civil-militar também por parte de
nossa elite que – na expressão do título do livro de Jessé Sousa – é “A Elite
do Atraso", pois frequentemente se vale dos interesses patrimonialistas da
classe média para se perpetuar no poder através de expedientes políticos
canalhas que põem em risco a nossa democracia. Não me incomoda que a esquerda
brasileira pense e elabore um projeto de nação que faça frente ao entreguismo
de uma direita que é nacionalista na medida injusta de seus interesses
perversos. Aliás, repensar o Brasil numa perspectiva da redistribuição da
renda, da reforma agrária, do incentivo à agricultura familiar, da criação de
parques industriais com a participação dos trabalhadores no lucro e geração de
novos empregos, no fortalecimento do comércio, na ampliação do terceiro setor e
do turismo, considerando as políticas de inclusão das minorias e grupos sociais
em situação de vulnerabilidades, a necessidade de se implementar instrumentos
jurídicos de reparação histórica dos direitos fundamentais de povos e
populações tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos), ofertando-se
saúde pública universal e educação escolar básica de qualidade e Universidade
para todos e todas que precisam ter sua dignidade garantida e sua cidadania
restituída, tudo isso, é obrigação da esquerda; pois, somente assim, se
garantirá um país politicamente democrático, institucionalmente republicano,
culturalmente diverso e verdadeiramente justo e inclusivo. Logo, não é isso que
me incomoda na esquerda. Para mim, o mal-estar e o paradoxo estão nos acordos
para se chegar ao poder e ali se manter – acordos com uma direita gatuna e
velhaca que não se constrange em mudar de lado; acordos com setores moralistas
e conservadores que sempre negociam benesses e que não se importam
verdadeiramente com o outro e que odeiam e perseguem as minorias e a diferença;
acordos com uma esquerda também elitista e que persegue cargos e com toda sorte
de gente dessa “estirpe" que não lê, não estuda, não se qualifica, não tem
experiência de militância e, tampouco, contato direto com o povo e a população
para, realmente, tomar ciência das demandas e necessidades dos que passam
necessidade, dos que moram de aluguel em áreas distantes dos centros urbanos,
dos que não têm saneamento, transporte, segurança pública e lazer.
XI. Gigio Ferreira - Por que o determinismo de uma certa forma acaba
gerando ou promovendo preconceitos?
Wladirson Cardoso - Acompanhe meu pensamento: se uma opinião – a
despeito de qualquer compromisso com a verdade, com a realidade e com os fatos
– se estabelece como proposição explicativa supostamente eficaz quanto ao
resultado de sua constatação no que respeita à ocorrência dos fenômenos
naturais e sociais, ela certamente não constitui um erro, mas sim uma mentira.
O erro é um engano no juízo; ao passo que a mentira é uma falha
intencionalmente elaborada para iludir e enganar. Geralmente as opiniões são
enganosas, justamente porque prescindem de fundamento e se ressentem com
questionamentos. Por isso os gregos antigos nos primórdios da Filosofia
estabeleciam uma distinção entre dóxa (opinião) e episteme (conhecimento). A
primeira é subjetiva e idiossincrática; a segunda problematizadora e analítica.
A opinião, então, sempre esteve no des-nível do preconceito, mas a episteme
não, pois sempre perquiriu o verdadeiro. Entre a dóxa e a episteme, me diga
qual tem mais poder de seduzir como canto de sereia e por que?... Com toda
certeza é a opinião (dóxa), pois ela mobiliza hábitos, costumes, tradições e
sentimentos de identificação e pertencimento com um certo “estado natural"
das coisas – isso porque os esquemas de apreensão e repetição das sentenças na
opinião são esquemas deterministas arraigados em pré-juízos e pré-noções.
Portanto, o determinismo não gera preconceitos; ele os reitera e reproduz. É
possível dizer que o determinismo está em oposição e confronto com a liberdade
de pensamento, a liberdade de ação e a liberdade de criação. Quando alguém
preconiza sua liberdade de opinião como um direito, não espera a dialética, a
tensão e a superação, pois a defesa que faz da liberdade é tão somente para se
impor de maneira a não sofrer contrariedades e permanecer preso à sua
convicção. Já as Artes, a Justiça e a Ciência só avançam provocadas e
provocando. Por isso me assusta a figura de sujeitos que se dizem livre
pensadores, ou de humanistas e artistas autoproclamando-se conservadores. O
conservadorismo frequentemente está pari passu com o determinismo, seja ele
cosmológico, natural, biológico, genético ou geográfico. Ademais, o
determinismo, enquanto crença de opinião segundo a qual as coisas ocorrem
mediante uma relação de origem irrefutável e se manifestam em decorrência
disso, está na raiz do positivismo e do evolucionismo sociológico que
justificou de modo pseudocientífico as práticas geopolíticas do imperialismo e
do neocolonialismo europeu a partir do século XIX, cujo produto mais criminoso
foi, sem dúvida alguma, os regimes totalitários nazifascistas e suas muitas
versões entre diversos países do mundo. Em termos epistemológicos, o
determinismo é esquematicamente limitado e estruturalmente mecanicista; em
termos ético-políticos o determinismo é um obstáculo ao humanismo e à
realização dos ideais dos Direitos Humanos e da Civilização e, finalmente, em
termos existenciais ele é um impedimento ao exercício pleno da liberdade.
Expressões preconceituosas como: “todo brasileiro é malandro", “índio é
preguiçoso”, “negro é bom de trabalho", “menino veste azul e menina veste
rosa", “bandido bom é bandido morto" e “professores e artistas são
dogradictos" – são todas expressões abusivas, agressivas e discriminatória
que carregam em si um apanágio determinístico simplório de pensamento rasteiro,
violento e fascista. Por meio de ato falho, o determinismo requer um valor de
conhecimento, que não possui e nem pode possuir. O determinismo não se orienta
pelos critérios da razão e da verdade. E, lamentavelmente, tenho observado que,
no Brasil, ele tem reforçado a ignorância e a própria dissolução de nossa
sociedade.
XII. Gigio Ferreira - Até que ponto o contexto urbano é a centelha das
indignações e do cogito concomitantemente falando?
Wladirson Cardoso - Não necessitamos exclusivamente da Pólos urbana para
intuirmos as contradições e mazelas da vida humana e/ou para elevarmos o
pensamento acima da imediaticidade das sentenças determinísticas do senso
comum. A relação entre capital e interior, entre cidade e campo, centro e
periferia ou zonas de circulação e áreas de restrição é relativa, complexa e
contraditória. O dispositivo de análise aqui não pode ser a vida urbana em si –
o que seria uma superestimação da “figura do citadino” que, por sua vez, é uma
ficção burguesa presente em tratados políticos, análises sociológicas e até em
romances da Literatura. O ponto chave da análise neste aspecto é a
problematização dos graus de liberdade e a possibilidade de exercício
individual e coletivo da mesma em espaços públicos. Existem grandes centros
urbanos no Brasil e no mundo que são desenvolvidos e que, porém, estão fechados
à emergência e expressão de novas ideias, novas formas de performatização dos
desejos e dos corpos e de criação artística de uma forma potente e impactante.
Em sociedades e grupos tradicionais ou fechados, talvez os meios e recursos
para a indignação e o confronto encontrem formas de resistência e reação no
anonimato e na clandestinidade. Ao contrário do que se passa em contextos
sociais abertos e pós-tradicionais, nos quais talvez a crítica e a
individualidade se percam no movimento frenético do ir e vir do cotidiano
moderno, cadenciado pelo tempo do relógio e atravessado pelo imperativo da
produtividade. Tanto em uma formação social, quanto em outra, a indignação é
possível e a mobilização coletiva o termômetro que medirá o grau de empatia
quanto ao outro e à mobilização em torno de uma causa que abrirá perspectivas
para algumas mudanças. Foi isso que assistimos àqueles movimentos de
contestação aos arbítrios das ditaduras e práticas de corrupção e tortura
ocorridos no ano de 2010 em países do Norte da África e Oriente Médio que
ficaram conhecidos como “Primavera Árabe”. Um simulacro de revolta
midiaticamente manipulada e conduzida por jovens paulistanos de classe média se
utilizou da indignação latente quanto à situação política do Brasil, resultando
nas passeatas de 2013, que, embora pretensamente pacíficas e apartidárias,
provocaram o Impeachment da Presidente Dilma em 2016 – eu contesto aqui o
movimento; no entanto, apesar de manipulado e instrumentalizado, o sentimento
de indignação esteve lá e não deixará de ser legítimo. Algo de indignação e
revolta tomou conta da França, quando os Gilet Jaune marcharam sobre as ruas de
Paris, quebrando vitrines, agências bancárias e monumentos históricos,
interditando grandes e famosas avenidas e interrompendo a circulação dos trens
de uma das maiores linhas de metrô do mundo, em razão do aumento de impostos e
da carga tributária propostos pelas reformas de Macron. A reação indignada ao
racismo estrutural das sociedades americana e brasileira, traduzido em
violência policial, cujo critério de atuação e repressão parece estar na
dependência da tonalidade da cor da pele de um indivíduo, é a origem do
movimento Black Lives Metter... Para mim, então, não é o lugar em que se está
no espaço que definirá a minha indignação e revolta, mas aquele sentimento de
alteridade quando sou confrontado pela dor e pelo sofrimento do outro. Com as
redes sociais, tenho na palma da minha mão a imagem das atrocidades cometidas
por soldados americanos em países mulçumanos, a imagem da fome das crianças
africanas, a imagem dos assassinatos de jovens em comunidades e favelas do Rio
de Janeiro, as imagens chocantes do extermínio transfóbico de Dandara no bairro
Bom Jardim em Fortaleza/Ceará e os incêndios das casas de madeira dos moradores
carentes de bairros pobres de Belém do Pará. Imagens de dor, sofrimento e morte
ao alcance das mãos – se eu não me indignar e revoltar, terei me habituado à
crueldade e à barbárie, como quando, por exemplo, o presidente deste país zomba
do luto das pessoas que perderam parentes e amigos próximos por conta do
COVID-19 nesse ano de 2020...
XIII. Gigio Ferreira - Estética vem de estesia... Que quer dizer:
sensibilidade. Ela é a aptidão para compreender as sensações causadas pela
percepção do belo. Na sua opinião, a beleza precisa ter ética para alcançar a
plenitude da práxis e da retórica no humus? Por quê?
Wladirson Cardoso - Eu posso avaliar a arte pela produção da forma com
objetivo de atingir um determinado efeito de beleza; porém, a arte para ser o
que é, isto é, a arte para ser arte – em si, por si, para si e para os outros –
não precisa, necessariamente, reproduzir a realidade, corresponder aos
propósitos do Estado, servir às leis do mercado e agradar a religiosos e
moralistas. Pelo contrário, se a arte estiver circunscrita privativamente a uma
dessas determinações, ela perde sua força criativa, sua verossimilhança, sua
autenticidade e seu poder catártico e mobilizador. Poetas e filósofos se
comunicam e dialogam em um mesmo nível de compreensão e expressão da linguagem
e da vida. No entanto, o filósofo torna sua atividade reflexiva uma experiência
universal; ao passo que o poeta – mediante seu ofício – "penetra
surdamente no reino das palavras" e “sofre, lima, teima e rima". Veja
bem: as referências que fiz aqui a Drummond e a Bilac não significam apenas que
eu os conheço e que tenho seus poemas decorados pelo uso de minha memória – eu
nem sequer os declamei! As referências a um e outro significam que ambos –
elidindo-se, aqui, os cânones e pressupostos do Parnasianismo e do Modernismo –
nos ensinam que o poeta nos abre horizontes de percepção antes não imaginados e
que nem precisam ter sido vivenciadas pelo mesmo propriamente – afinal, o poeta
“é um fingidor"!... Uma edificação ou um prédio podem ser mais do que uma
construção de pedra e cal, se aludirem a uma concepção de moradia ou
sociabilidade de um determinado tempo. Um passeio público ou uma praça
certamente remetem a uma percepção estética, tão logo permitam uma relação não
usual dos passantes da cidade com o espaço do entorno. Uma escultura sempre
será mais que uma estátua, quando fundamentalmente romper com os limites do
corpo – seja na representação e apresentação do esculpido; seja na relação de
criatividade do escultor. Os autorretratos de artistas como, por exemplo,
Rembrandt e Van Gogh, são próximos quanto ao cenho fechado e circunspecto de
seus modelos e, respectivamente, diferentes, não só quanto às suas fisionomias;
pois, são fundamentalmente quanto à paleta de cores e ao jogo de claro/escuro
que nos dão o plano de fundo e o plano frontal. Em ambos os casos, apreciamos a
imagem de homens visivelmente angustiados pela busca da melhor expressão de
suas percepções de si mesmos – percepção de si e do mundo que tocam de maneira
semelhante, acredito eu, aos grandes compositores de música, quer sejam elas
clássicas, quer sejam elas populares. A tônica desta reflexão é, portanto,
antes de mais nada, um alerta para a importância da educação artística e,
primordialmente, para a educação dos sentidos. Não estou demandando que se
ensine apenas história da arte – isso já se faz [e de modo precário, alienado,
descontextualizado e sem tangenciar a vida dos sujeitos naquilo que lhes
importa de maneira mais imediata quando o que importa é a sobrevivência. Estou
falando de acesso livre e democrático a prédios históricos, a museus e suas
coleções, a teatros e a livros de contos, romances e poesias. Porque sim, a
arte pode servir ao Estado – como os retratos de Luís XIV e de Napoleão III no
Musée du Louvre em Paris – e, ainda assim ser arte. Da mesma maneira Andy
Warhol, os grafites do Kobra e as fotografias e instalações de Vik Muniz que,
por sua vez, são consumidas de diversas maneiras, digo, pela moda, pelos
transeuntes ou motoristas de veículos em grandes metrópoles ou em salões de
exposição da UNESCO na França por ocasião de encontros internacionais de
Filosofia e Direitos Humanos. Na medida em que a arte nos auxilia a perceber,
sentir e interpretar o mundo, ela nos transforma e transforma o mundo. Quem há
de permanecer o mesmo diante da exposição das obras de Da Vinci reunidas por
ocasião do aniversário de 500 anos da morte do pintor? Ou, ainda, quem há de
permanecer o mesmo diante dos quadros de um Tiago Martins de Melo? Ou das
xilogravuras de um J. Borges, das cenas pintadas por uma Maria Auxiliadora ou
de uma tela fantástica e vibrante de um Francisco Graciano? Ora, como não
deixar crescer a chama da utopia revolucionária ao assistir ao “Encouraçado
Potemkin", de Serguei Eisenstein ou mergulhar nos processos de reação e
residência comunitária e popular do interior do Nordeste brasileiro como em
“Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles?... Todavia, é ao
artista que devemos ir para lhe perguntar acerca de seu processo criativo, para
não supormos intenções e situações que não correspondem àquilo que se quis
expressar. Porém, é justamente aqui que se observa o poder e a independência da
arte: quando, portanto, a obra toma a criação e alça um voo livre para além do
papel, do material utilizado, do quadro, etc. Por isso, é importante que a arte
tenha engajamento, mas é imprescindível que ela permita sonhar e realizar em um
outro plano de relação do homem com o mundo aquilo que os imperativos sociais
reprimem e não permitem – daí a nudez e a nossa dimensão erótica encontraram
solo fértil neste campo, possibilitando-nos até outras discussões para além da
arte, precisamente como deve ser, no que importa às questões de gênero e
sexualidade.
XIV. Gigio Ferreira - No livro 18 do Brumário de Luís Bonaparte, de Karl
Marx, Herbert Marcuse diz em seu prólogo: “A análise que Marx faz do processo
de evolução da Revolução de 1848 para o domínio autoritário de Luís Bonaparte
antecipa a dinâmica da sociedade burguesa tardia: a liquidação do seu período
liberal que se consuma em razão da sua própria estrutura. A República Parlamentarista
se transforma num aparato político-militar encabeçado por um líder
“carismático” que tira das mãos da burguesia as decisões que essa classe não
consegue mais tomar e executar por suas próprias forças. E nessa fase, o
movimento socialista, o proletariado, sai de cena.”.
Estamos verificando a mesma transição no Brasil. Na sua opinião a farsa
é mais terrível do que a tragédia? Por quê?
Wladirson Cardoso - E olha que o governo popular do Partido dos
Trabalhadores, com seus erros e acertos, nem foi uma Comuna à semelhança
daquela de Paris. O que me espanta no Brasil é o “cada um por si" e o
“salve-se quem puder" das relações que têm um aspecto superficialmente
cordial mas que encobre profundos interesses egoísticos, quer dos que querem se
dar bem, quer os que querem manter seu status quo. Se se considerar que o
elemento característico da farsa é o absurdo inesperado e risível e o da
tragédia, no final das contas, é a morte, o que está ocorrendo neste país é um
verdadeiro desmonte das instituições democráticas, dos valores republicanos, da
segurança jurídica e dos direitos fundamentais, principalmente o direito à
vida, tudo isso orquestrado pelos verdadeiros dono do poder, que, como sempre,
se utilizam da fraqueza de caráter da classe média, da credulidade dos pobres e
da ignorância generalizada. Os comuns que riram com o Golpe de 2016 não são os
que estão rindo por último, porque no cálculo de quem se deve deixar viver e de
quem se deve deixar morrer – assim se faz política de Estado hoje em dia e
sempre! –, eles não estão na vantagem. Temos um protótipo maldito de ditador
que é politicamente acéfalo e governa para uma turba cujo perfil psicológico
deveria ser melhor estudado, porque, se se avaliar a maneira como os asseclas
defendem seu modelo, não é possível que não haja espelhamento nisso. O que
consigo dizer com um pouco mais de segurança quanto à essa tragicomédia
perversa que se nos abateu é que a maneira como o governo dos ricos tratou a
população durante a pandemia de COVID-19 e o descaso do mesmo com relação às
queimadas na Amazônia, no Pantanal e no Serrado evidenciam um altíssimo grau de
crueldade que está no mesmo nível do sadismo da criança que tortura e mata seu
bicho de estimação. Nós nos tornamos uma vergonha para nós mesmos – não nos
percebemos, negamos, culpamos sempre os outros, transferimos responsabilidades
e sublimamos da pior maneira nossos sonhos. Qualquer semelhança com o fim da
Comuna de Paris ou com a emergência do nazismo no entre guerras (observando-se
as devidas proporções), auxilia-nos a pensar no quanto não devemos descuidar da
análise crítica e da suspeita quanto ao otimismo das conquistas do povo.
XV. Gigio Ferreira - Platão como idealista não quis a presença dos
poetas em sua Res-Pública. Até que ponto o Éthos dos poetas dionisíacos
consegue através de efeito e causa, um certo estado de embriaguez e torpor como
ameaça real aos projetos políticos de nação? Por quê?
Wladirson Cardoso - Há uma questão de fundo nessa pergunta que deve ser
posta em debate: quem chama Platão de idealista somos nós. Ele mesmo não se
pensa e nem se define como tal. Está claro, porém, que – dos escritos da
juventude até o texto de As Leis – ele pressupõe a verdade ontológica das
ideias como sendo a realidade mesma das coisas. E, na concepção dele, como quem
conhece a verdade não erra, o mundo sensível, isto é, o mundo das coisas
passageiras e transitórias – fundado na sensação que, equivocadamente
conduziria a imaginação e ludibriaria a razão – jamais pode servir de critério
para conhecer epistemologicamente, agir eticamente e avaliar esteticamente o
mundo natural e a vida na pólis, visto que não deve ser a sensação a orientar o
conhecimento, as noções de Bem e Mal, a Justiça e a Beleza. É, portanto,
supondo um Estado filosoficamente consolidado que Platão opera a passagem do
homem comum para o sábio governante, cuja formação e educação deveriam
transigir do corpo às abstrações ou empírico/imediato ao necessário e
universal. Para tanto, seria preciso disciplinar a imaginação pelos critérios
de identidade e não contradição da razão e tornar o poeta inspirado em um poeta
consciente (de seu papel político neste contexto) – convidando-se o “fazedor de
mitos" a se retirar da República. O projeto político de Platão está de
pleno acordo com a ideia de uma Cidade-Estado perfeita, equilibrada, harmônica,
justa e bela; mas a custa da estratificação das classe sociais, da supressão
dos desejos individuais e da instauração de uma ordem moral correta e
inquebrantável – não à toa serviu de modelo para a “Cidade de Deus", de
Santo Agostinho, que, com muita maestria e retórica, instrumentalizou e
“converteu" o sábio grego, no sentido de adequá-lo, conceitualmente, à Teologia
Católica no alvorecer da cristandade. Ora, se o projeto de Platão é moralista e
se tornou, através da Patrística, uma espécie de arauto da doutrina da Igreja
antes mesmo de Cristo – porque assim o Catolicismo encontraria uma
fundamentação digna para si; conclui-se, destarte, à esteira de Nietzsche, que
o filósofo antigo, na metáfora histórica de seu mestre Sócrates, acha-se na
origem da decadência do espírito helênico que, por sua vez, tinha na Tragédia
uma forma prática de expressão da vida como uma tensão cósmica quase
absolutamente irreconciliável entre natureza e cultura, determinismo e
liberdade. A cisão entre corpo e alma (espírito, razão) perpetrada por Platão e
sequenciada ao longo dos sistemas de pensamento Medieval e Moderno chega até
nós como um produto discursivo de um saber-poder fincado na noção de verdade
cuja dupla dimensão epistemológica e moral deve se exprimir em todos os campos
da existência e experiência humana de forma apolínea, positivista e
cientificista. O dionisíaco como um sátiro da verdade, um irreverente moral e
um iconoclasta de cânones e modelos estéticos dificilmente terá nesse contexto
um lugar que não seja o da fricção com os sabres-podres constituídos e
estabelecidos, principalmente se se localizar no interior de um Estado ignorante,
avesso às liberdades e que joga – playing the game – o jogo do fascismo.
XVI. Gigio Ferreira - O eixo de muitas pesquisas de Foucault está no
problema do poder e não no problema do saber. De certa forma alguns libertários
marxistas acabaram invariavelmente nos braços do trotskismo. Das próprias
discussões acerca dessas pesquisas em diversos campos podemos inferir que a
Filosofia Moderna é uma (Tour de Force) foucaultiana?
Wladirson Cardoso - Eu temo em frustrar os revolucionários
internacionalistas, mas não saberei estabelecer uma relação entre Trotsky e
Foucault. Não consigo vislumbrar nem zonas próximas e, tampouco, divergências
radicais que colocariam ambos em um campo heurístico de disputas e tensões. O
que posso dizer, em primeiro lugar, é que, para alguns marxistas ortodoxos a
expressão “marxismo libertário” soa como uma contradição em termos, porque,
conceitualmente, a noção de “libertário” está associada a uma outra corrente de
pensamento e ação que, por sua vez, diverge doutrinariamente do programa
revolucionário planificador, burocrático e estatal de uma possível revolução
socialista que seria conduzida por lideranças populares e dirigentes de uma
esquerda partidária “esclarecida" e comprometida com a transformação ampla
e geral das estruturas de poder e de produção do mundo capitalista. Em seguida,
de acordo com alguns intérpretes, Foucault penderia para o Liberalismo
Político, na medida em que critica duramente o poder centralizador do Estado –
ora, Foucault se afastou do Partido Comunista Francês já na década de 1950; mas
também não sei em que medida isso realmente importa para avaliar se sua
Filosofia está mais à direita, ou mais próxima do anarquismo (não no sentido
vulgar, mas no sentido potencialmente antidisciplinador). O que Foucault
realiza, de fato (e nos ensina a fazer) – desde “História da Loucura na Idade
Clássica” até os volumes de “História da Sexualidade” – é uma analítica das
estratégias do discurso e das tecnologias do poder disseminadas em nossas
relações cotidianas e codificada em linguagem que implica saberes disciplinares
específicos que são aplicados no controle dos corpos e das populações. Neste
aspecto, tenho a compreensão de que Foucault opera metodologicamente uma (arqueo-genealogia)
de saberes e práticas, em termos de uma crítica do valor de certeza e verdade e
do valor moral da correção e normalidade, os quais orientam tanto a ciência
moderna, quanto os comportamentos e ações naturalizados, que se acham
implicados dos jogos de poder. Eu peço licença, então, para lhe corrigir: não
existe saber que não esteja nas raias de influência do poder e, também, não
existe poder que não esteja em relação com o saber. Pelas minhas leituras,
acredito que para Foucault importa muito mais implodir a máquina dos regimes
políticos que restringem as liberdades a que necessariamente idealizar uma
sociedade futura dentro ou fora do registro do Estado. Acredito que se
quisermos definir o pensamento político de Michel Foucault em poucas palavras,
devemos considerá-lo como a possibilidade de um exercício experimental e
artistificado de um certo tipo de vida não - fascista – lembrando, portanto,
que os regimes totalitários existem à direita e à esquerda e que o apego pelo
poder e a barbárie habitam em nós...
XVII. Gigio Ferreira - Em 1952 o
brilhante hegeliano Georg Lukács afirmou que Nietzsche fora o fundador do
irracionalismo do período imperialista. Anos depois, em 1961, num extenso e
profundo estudo, Heidegger publicou (Sein und Zeite), traduzido aqui como O ser
e o Tempo. Nessa obra, Heidegger optou por examinar o pensamento nietzscheano
sob o prisma da (Ontologia Existencial). E assim foi possível acomodar a
expressão (Racionalização do Irracional). E isso acabou adentrando na
perspectiva da (Lebensphilosophie), ou seja, Filosofia de Vida. Pergunto, as
construções ideológicas de um texto encontram-se na base da análise do
discurso? Por quê?
Wladirson Cardoso - Existem diversas maneiras de se ler e interpretar um
texto. Em minhas aulas de Filosofia da Linguagem e Introdução à Hermenêutica,
sempre advirto que o estilo e a elegância são importantes; no entanto,
isolados, não nos bastam para mergulhar na cadeia de argumentos e na potência
viva do registro. Por certo que as análises morfológicas e sintáticas conferem
suporte interpretativo; mas por si só também não são suficientes para se
compreender um texto; assim como a análise da métrica de um poema remeteria à forma
e não ao sentido em geral. O que um escritor considera relevante em sua obra em
prefácios, posfácios e introduções é digno de atenção, tanto quanto o que ele
afirma de si em cartas, declarações e entrevistas. Porém, os diálogos que
estabelece com autores contemporâneos e/ou clássicos direta ou indiretamente, a
maneira como os mobiliza, como os reafirma ou nega e, principalmente, como os
supera é o que, de fato, assegura um ingresso no reino da autoria – pois, o
óbvio ou o mais do mesmo não nos torna nem filósofos e nem poetas. É claro que
é importante investigar os fundamentos dos argumentos de um texto. E isso
deverá ser buscado na intenção e propósito do autor, na resposta que oferece às
questões de forma e conteúdo e às que também oferece às questões teórica e
conceituais – já que quem interpreta um texto filosófico, de certa forma faz
Filosofia; do mesmo modo que quem faz poema está no seio da Poesia. Dito isto,
para interpretar um texto e conhecer seus meandros, entrelinhas e
comprometimentos políticos, deve-se colocar o autor na sua relação com a
História e jamais deixar de contextualizá-lo, a fim de que se evitem leituras
fraturadas e interpretações parciais e limitadas – porque, efetivamente
falando, a interpretação é pessoal, mas ela ganha em consistência e qualidade
quanto mais leitura de mundo e de texto se tem e quanto mais experiência de
vida se adquire.
VIII. Gigio Ferreira - Agora uma pergunta sobre nossas líricas levezas.
Belém do Pará com esse clima quente e úmido torna quase indispensável o uso do
ar-condicionado. Isso ajuda um filósofo a pensar suas zonas de conforto e imunidade...
Ou a ambiência na Ágoras é uma espécie de (Pièce de Résistance) do contexto
Pólis ressignificada em evolução convergente?
Wladirson Cardoso - Não tenho problema algum em habitar em uma cidade
amazônica que fica a alguns quilômetros da Linha do Equador. Belém é quente e
úmida – tal qual um corpo excitado que se banha em rio e se perfuma de mata
para uma cópula sensual – aliás, nós somos sensuais: misteriosos, enigmáticos,
lascivos e devotos; gostamos do sagrado, na mesma medida que gostamos do
profano. E está tudo bem! Ainda somos uma cidade com espírito colonial – prova
disso é que nos referimos a nós mesmos como se fossemos uma fortaleza ou Cidade-Estado;
pois nos sentimos no centro do mundo. Em termos de Weltauschauungen estamos
entre o “Drama Barroco" e os ares de modernidade do “Neoclassissismo”.
Isto talvez seja interessante na arquitetura dos lugares antigos, mas na
política é um desastre e, de certa forma, contribui para uma visão romantizada
de uma “Belém da Memória”, de uma “Belém do Já Teve" que não consegue se
encarar de frente nas suas desgraças cotidianas... Belém tem, desta feita,
exatamente o que necessito para elevar meu pensamento dos costumes nativos a
uma hipostasia de intuições e suposições que me permitem o filosofar. Há em
nossa capital, portanto, um vasto campo de pesquisa e investigação etnológica a
se observar e que, para mim, serve de material empírico não somente para uma
Antropologia Cultural, mas também para uma crítica sincera e uma reflexão
potente no sentido da superação de nosso bairrismo e falso moralismo,
traduzidos em clichês insuportáveis que desconhecem outras referências
nacionais e estrangeiras e que acredita ser “Paris n'América". Falo assim,
com um tom explosivo, porque conheço Belém – dos galpões às “janelas para o rio",
da pista no asfalto às “torres", do Tapanã até a Domingos Marreiros, ou
seja, conheço Belém a partir do ponto de vista de quem está dentro e se
importa. No entanto, eu também me permito estranhar nossa “urbanidade",
nossa “municipalidade”, nossa suposta centralidade – principalmente quando
estou fora, ou no meu apartamento em Fortaleza, ou nos períodos que eu viajo
para a Europa para estudar, analisar e comparar o que somos e poderíamos ser,
caso nos dispuséssemos a entender que Cultura implica em Educação, Saúde, Bem-Estar,
Lazer e garantia e proteção de direitos. Todavia, uma parte significativa de
nossa pseudoelite não está interessada nisso e se divide entre Salinas e Miami
– sem nenhum tipo de “glamour"... O ar-condicionado me serve para tentar
deitar a cabeça no travesseiro e dormir nas noites quentes de nosso verão.
Entretanto, eu percebo Belém, eu observo Belém, eu sinto Belém, eu represento e
reflito Belém. Quer dizer, eu percebo, observo, sinto, represento e reflito o
próprio estado do Pará, o qual conheço de ponta a ponta – do Marajó a
Oriximiná, de Marabá a Conceição do Araguaia. Lembro com emoção e orgulho de
haver ministrado uma aula sobre “pesquisa, conhecimento e liberdade" ao
lado do túmulo da Irmã Dorothy Stang em Anapú. Então, como não ser cosmopolita
e, ao mesmo tempo, eticamente comprometido com a Educação, a Justiça e os
Direitos Humanos em uma realidade tão diversa e multicultural e,
paradoxalmente, tão carente à semelhança da nossa?
XIX. Gigio Ferreira – Ao finalizarmos essa entrevista, gostaria de ouvir
suas considerações finais. E que você também nos dissesse o que achou dessa iniciativa
do Jornal Crescendo em parceria com a Revista Variações?
Wladirson Cardoso - Eu sei que tenho algo a dizer para o mundo a partir
da Amazônia. Trilhando, retrospectivamente, minha formação e carreira
acadêmica, posso afirmar, com muita gratidão, que esta foi a primeira vez que
me deram a oportunidade de exprimir e discutir, de forma livre, minhas cismas e
tensões. Foi um exercício sincero de um eu antimetafísico e não-transcendental
para fora de um cano de metralhadora que lança seus projéteis com força e
determinação. Ensaiei minhas respostas muito pouco preocupado com meu ex-professor
de História da Filosofia e nenhum pouco interessado no que meus mestres
cartesianos, kantianos, hegelianos e popperianos vão pensar – e quem são eles
para me julgar? Apenas repetidores de frases... Hoje, tenho uma amizade e uma
identificação declarada com o também filósofo e professor Ernani Chaves, que
plantou em mim o interesse por Nietzsche e Foucault – desde a graduação até o doutorado
–, mas que nunca me exigiu camisa de força e sempre respeitou o modo como
movimento minhas aferições e inferições. Aqui consegui expor os traços
principais de teoria e ação, de linguagem e experimentação, que me fazem
requerer o título de filósofo que, certamente, não é apenas um título acadêmico
para mim; e sim uma forma de vida que me impulsiona para dentro das questões do
conhecimento, da ação e da apreciação estética da forma e do belo no interior
de uma procura constante – não pela verdade em si (que nos escapa e só é
atingida com um esforço conjunto e colaborativo ao longo da história dos
sistemas de pensamento); e sim pela sabedoria, inclusive ou principalmente de
mim mesmo, como na música de Milton Nascimento reconhecendo um “eu" que se
encontra longe do próprio lugar: um “eu" caçador de caçador de mim... Em
palavras conclusivas, isso significa que o procedimento metodológico que adoro
vai da relação direta com a realidade à suspeita (do que é aparentemente
óbvio); e, assim, transito da Filosofia às Ciências Humanas e nestas da
Antropologia ao interesse pelo que inquieta e retira o espírito humano de sua
letargia dogmática. Não sou necessariamente um otimista. Eu sou um sátiro
viandante – que incomoda, desconcerta e confunde. Sou um estrangeiro em meus
domínios: para filósofos eu sou “antropólogo"; para antropólogos, eu sou “filósofo".
E, para mim... “Eu não sou eu, nem sou o outro, sou qualquer coisa se
intermédio: pilar da ponte do tédio, que vai de mim para o outro.”.
Gigio Ferreira nasceu no dia 22 de junho de 1967, em Belém do Pará. Cursou Letras. Sua estreia se deu com a publicação da dramaturgia infantojuvenil, O gringo da Matinta (2014), em parceria com a escritora Miriam Daher, pela Editora Giostri-SP. Com exceção do livro O Palhaço de Arame Farpado (2016), poesia, pela Editora Penalux, as suas oito obras publicadas, foram pela Editora Giostri. Atualmente possui dezoito livros inéditos aguardando publicação.
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