ENTREVISTA COM O FILÓSOFO E ANTROPÓLOGO WLADIRSON CARDOSO - Por Gigio Ferreira.

 


Wladirson Cardoso nasceu em Belém do Pará em nove de junho de 1979. É filósofo, mestre em Direitos Humanos, doutor em Antropologia Social, pós-doutor em Educação, professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia Moderna e Contemporânea - COGITANS. Atualmente, orienta mestrandos em formação pelo Programa de pós-graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e, também, milita pela democracia e pelos direitos das minorias - em especial, pelos direitos LGBTQIA+


 

I. Gigio Ferreira - Ao iniciarmos essa entrevista, gostaria que você nos contasse sobre as atividades desenvolvidas pelo COGITANS, do qual você é o grande articulador. Quais foram até agora os grandes desafios enfrentados pela soma? E sobre isso, como você enxerga o futuro das linhas de pesquisa que vocês adotaram como estratégia aos enfrentamentos?

Wladirson Cardoso - A ideia do “Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia Moderna e Contemporânea – COGITANS” emergiu no ano seguinte à defesa de minha tese de doutorado que ocorreu em 25 de setembro de 2014. Isso me habilitou, institucionalmente, a criar um Grupo de Pesquisa em Filosofia nos quadros dos Grupos academicamente reconhecidos e certificados pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) – com o aval do CNPq. Incomodava-me deveras o fato de a licenciatura plena em Filosofia da Universidade onde atuo como docente efetivo desde de 2013 não ter uma independência e identidade própria, estando sempre às expensas de outros cursos de graduação como o de Pedagogia e Ciências da Religião, algo que, de um modo geral, prejudicava o funcionamento de nosso desenho curricular, provocando uma série de questionamentos, tanto por parte de nossos discentes, quanto por parte dos professores do curso de Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA), no que diz respeito à nossa validade, à nossa qualidade e, até mesmo, no tocante à nossa competência para atuar a partir da Filosofia e formar dignamente futuros profissionais da área, habilitados à reflexão teórica e epistemológica, à ação ética e política e à apreciação estética no campo das artes. Então, quando tive condições de criar um grupo que pudesse reunir docentes e discentes de dentro e de fora da UEPA para somar forças e agir no sentido de cortar todos os laços comparativos possíveis que diminuíam nosso curso de licenciatura, em relação à suposta matriz Federal no estado e na própria região Norte. Claro que isso desagradou a muitos; mas, sinceramente, não era a intensão e tal desagrado não me preocupa. O objetivo do Grupo sempre foi e continua sendo discutir aquilo que para a cultura filosófica, desde Descartes aos nossos dias, pode ser qualificado como “res cogitans", isto é, nossa capacidade para o pensamento, para a realização da vontade através da ação e, finalmente, para a compreensão da dimensão simbólico-criativa do homem nas suas mais variadas expressões. Por isso que o “Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia Moderna e Contemporânea- COGITANS” da Universidade do Estado do Pará tem esse diferencial, qual seja, nós procuramos ler a história das ideias com lentes que nos permitam trazer o debate dos clássicos para a atualidade, considerando que nossos discentes, particularmente falando, necessitam se iniciar na pesquisa em Filosofia, no contexto de uma Universidade ainda jovem e, ao mesmo tempo, bastante capilarizada e que atente a um público de alunas e alunos que na capital vem das periferias e que no interior vem de áreas indígenas, ribeirinhas e quilombolas também. Por isso a estratégia de enfrentamento de existência e resistência do COGITANS perpassa pela defesa e promoção da dignidade de nossos discentes, buscando promovê-los de todas as formas na vida acadêmica e, assim, permitindo-lhes sonhar, seja com um trabalho aprovado em algum evento ou congresso, seja publicando artigo em revista ou livro. Em 2018, por exemplo, o COGITANS publicou um livro organizado por mim e pelos professores Ernani Chaves (UFPA) e Emerson Sena da Silveira (UFJF) com os textos de alunos egressos do curso pelo Núcleo de São Miguel do Guamá, dando visibilidade à produção reflexiva de nossos discentes do interior. E, a partir de 2019, passamos a organizar o “Seminário Foucault e as Ciências Humanas” que este ano terá abrangência internacional e discutirá questões de gênero e sexualidade, teoria queer, feminismos e decolonialidades. Ou seja, o COGITANS existe e resiste na contramão dos grupos de pesquisa em Filosofia que são em sua maioria formalistas, elitistas e desligados de interesses materiais reais, organizados muitas vezes para alimentar o ego de pesquisadores; e, claro, o COGITANS existe e resiste na contramão da própria história política nacional, pois é um Grupo assumidamente inclusivo, democrático e antifascista.

II. Gigio Ferreira - Há uma mixórdia intencionalmente bem aceita que confunde o criador de frases espirituosamente bem humoradas e, algumas, até eivadas de potencial crítico- erudito como atividade de Filosofia. Na sua opinião, quem são os responsáveis por essas distorções de competências?  

Wladirson Cardoso - Ainda que a Filosofia Contemporânea também se apresente sob a forma de aforismos, parágrafos, teses e ensaios, o que caracteriza de modo profundo e radical a atividade filosófica é precisamente o rompimento inexorável com relação a dogmas, cânones, modelos, padrões e paradigmas. Neste aspecto, a Filosofia – a que se pode considerar veementemente experimentalista (e aqui já sinalizo um pouco de como penso e vivo a Filosofia que perfaço e pratico) – estará sempre em um movimento interno e externo de mudança e transformação de si mesma e do mundo. Acompanhe: se se evitar animar o pensamento na seara da reflexão com frases ou “notas de razão” que inundam o peito de emoção ou motivação, pode ser que se consiga perscrutar a coerência interna daquilo que foi dito ou expresso - tanto em termos práticos, quanto em termos materiais – constatando-se, enfim, que grande parte das sentenças que se pretendem filosóficas – ou as que foram descontextualizadas – não passam de “palavras de ordem estilizadas", cuja capacidade crítica não saltou para além da reformulação daquilo que já foi verbalizado. Isso é o mais do mesmo, dizendo-se de outro modo. Mas a Filosofia, ela não é isso! E a crítica que a orienta só tem potência construtiva se antes for corrosiva, implosiva e destrutiva – renovando o pensamento com referências principais e marginais daquilo que argumenta e sustenta enquanto uma provável releitura de mundo e da experiência humana no geral [mesmo que o começo de tudo seja o sujeito e suas experiências particulares]. Por isso discordo formal e tecnicamente dos esforços e tentativas de se renovar ou ir além da própria Filosofia que, paradoxalmente, se define como um exercício diverso de reflexão peticionando o mesmo estatuto de validade que tentam confortar (para romper supostamente com a referência primeira ou anterior). Gosto da ideia de “Filosofia Contemporânea”, pois ela já sinaliza justamente aquele movimento de revisão constante de si e do mundo. Porém, me cansa muito os que afirmam, por exemplo, que a Filosofia Latino-Americana ou a Filosofia Africana não são eurocêntricas ou europeizantes, lançando mão do próprio termo qualificativo Filosofia que, por sua vez, é tudo o que negam, quer analiticamente, quer fenomenologicamente. Essas “filosofias” ainda não me surpreenderam, a não ser na crítica ao racismo e à barbárie – crítica que, aliás, a gente já encontra em Sartre, Adorno, Horkheimer, Arendt, Marcuse, Foucault, Habermas, Butler e muitos outros. Estas “filosofias” não me surpreenderam ainda, não vi nada de novo ou revolucionário nelas, porque circunscrever a Filosofia a uma região do globo - ora para afirmar sua origem elitista, classista e imperialista e tentar romper com isso no mesmo plano de linguagem; ora para informar seu potencial crítico que parece estar mais próximo de uma Antropologia ou de uma Etnologia – não demonstra a profundidade do exercício do pensamento filosófico e nem seus desdobramentos e repercussões para uma verdadeira analítica da condição humana. Essas “filosofias" ganhariam mais em criticidade e destrutividade, se operassem uma fratura dolorosa e exposta – mas absurdamente necessária – com a “filosofia europeia", se a deixassem de lado e lhe fossem indiferente, sem descuidar, obviamente que, desde Marx, Nietzsche, Freud e Foucault, estamos licenciados a pensar e refletir pelas beiradas e periferias da razão iluminista ocidental. O que consigo observar nessa ginástica hermenêutica toda é uma fricção de superfícies ou tensão de barras que procura trazer a Filosofia (acusada de eurocêntrica) para um nível em que ela sirva tão somente de referência “perversa e descartável” para outras modalidades de pensamento que não querendo se igualar a ela, se afirmam paradoxalmente “Filosofia" – definindo, categorizando e universalizando, qual seja, realizando operações mentais de predicação do outro, da realidade e do mundo, da mesma forma que Aristóteles nos ensina em seu Órganon, inclusive. Para esquematizar esta minha resposta: a Filosofia não se detém em frases ou sentenças. E a verve crítica de um pensamento numa frase exigirá muito mais que a sua simples expressão da mesma. Ou seja, exigirá um reposicionamento de visão e um recomeço. É necessário se rever por dentro, para que, inclusive, o que se pretende filosófico não seja apenas uma metáfora cristalizada, como num poema que – de tão repetido – acabou perdendo a força criativa. Algumas frases nos enganam em sua pretensão filosófica. Uma parte considerável delas não quer dizer nada. Algumas poucas que restam são muito mais resultado do bom senso do que da reflexão em profundidade. Já sentenças do tipo “Conhece-te a ti mesmo" (Sócrates), “Entre a amizade e a verdade, devemos escolher esta última” (Aristóteles), “Penso, logo existo" (Descartes), “A razão na Filosofia” ou “O céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim" (Kant) e, finalmente, “Deus morreu" (Nietzsche), não fazem muito sentido sem todo o percurso discursivo elaborado por cada um desses filósofos respectivamente.

III. Gigio Ferreira - Afirmam que a Ciência Jurídica foi a que mais aprendeu com os desatinos da Revolução Francesa. Isso ocorreu pelo nascimento de uma consciência nacional burguesa a partir dos iluministas ou isso apenas explica a assimilação em parte das outras ciências nos aparelhos ideológicos do Estado? Por quê?

Wladirson Cardoso - Se a Ciência Jurídica houvesse aprendido algo com os desatinos das revoluções inglesa e francesa, ela jamais teria se permitido chegar a um grau exagerado de positivismo na sequência de seu desenvolvimento enquanto campo de saber. A questão é que os valores democráticos e as noções de liberdade, igualdade e vontade geral foram tomados de assalto ao povo pela classe burguesa que, por sua vez, se utilizou do sistema jurídico como instrumento político em sua ascensão e, consequentemente, como recurso prático na implementação de modos e técnicas de disciplinarização, normalização e controle dos corpos e populações através de ações governamentais dos Estados Nacionais. Tais ações se deram frequentemente por meio de processos de territorialização e/ou de expansão imperialista e, no tocante ao Brasil, por exemplo, observamos que, mesmo nas suas mais recentes experiências democráticas, a Carta Magna que chamamos de Constituição não foi suficiente para resguardar os interesses das minorias, as liberdades de pensamento e expressão, o multiculturalismo e o direito à vida – porquanto, seguindo uma pauta elitista, nossos políticos implementam agendas que são de interesse patrimonialista, relativizando direitos fundamentais. Então a pergunta que devemos fazer é: a quem efetivamente serve a Ciência – de um modo geral – e a quem serve a Ciência Jurídica em particular, cujo objeto é o direito positivo traduzido em normas, leis e regras?

Eu não sou tão otimista quanto Habermas que acredita que o Direito é um médium entre os valores supremos da humanidade e os conflitos de interesse que caracterizam as disputas políticas do mundo da vida, tornando o Direito um sistema equilibrado de proteção da vontade de todos, em termos da relação entre correção e verdade no exercício prático de uma ética da ação comunicativa que põe em suspensão as certezas e paradigmas quando estes não apresentam mais tanta eficácia para, com isso, decidir em parlamento e congresso, através de representantes, o que é melhor para o bem comum. Por outro lado, não sou tão foucaultiano a ponto de pensar que o Direito e a Ciência que o estuda constituem unicamente discursos de poder que forçam um enquadramento apodítico e categórico da subjetividade que, assim, terá que se submeter aos imperativos das normas, leis e regras, porquanto, na concepção do próprio Foucault, onde há poder e resistência. Se o sistema cumpre formalmente seu desiderato e materialmente considera com equidade a peculiaridade de cada caso, é possível que nos aproximemos da Justiça (como princípio). Todavia, não vejo como seja possível realizar o Direito e garantir à Ciência que lhe corresponde a independência epistemológica e os procedimentos interpretativos necessários no momento de sua aplicação sem um diálogo com outras Disciplinas e Ciências Humanas e Sociais. Isso pode ampliar a autoconsciência do Direito e, ainda, expandir as áreas de investigação da Ciência Jurídica obviamente. No entanto, o problema está no uso estritamente técnico da norma, porque em si mesmo o direito para ser matéria de Direito tem de ser positivo, o que não significa que ele seja justo. Se se compreender a justiça apenas como o locus onde se aplica o direito positivo, ele estará sempre ideologicamente comprometido, desde a raiz, origem e nascimento com os interesses patrimonialistas de direita e de esquerda e jamais encarnará a Justiça como valor supremo e princípio inegociável. Se bem compreendi sua pergunta, é correto afirmar, como você sugere na proposição da mesma, que a Ciência Jurídica nas formações sociais capitalistas e ocidentais é legatária das Revoluções Burguesas – isso considerando uma relação de antecedência e consequência na qual se obnubila toda a complexidade das lutas e disputas dos inúmeros grupos sociais que demandam Direito e Justiça. Porém, Aristóteles já adverte no começo da Ética a Nicômaco que as disciplinas que são ensinadas em um Estado e – acrescento – a própria maneira como elas são ensinadas vinculam-se aos interesses dos que ocupam a estrutura política. E, claro, isso também vale para a Ciência Jurídica e para o Direito.

IV. Gigio Ferreira - Da segunda fase da Revolução Industrial para cá, diante das demandas de mercado e das crescentes corridas armamentistas, o Estado Liberal-Burguês acabou incluindo em sua agenda econômica o conhecimento científico como Commodity. Você poderia apontar as principais e cruéis contradições que isso acarretou ao ensino da Filosofia nas Universidades?

Wladirson Cardoso - Tão logo a Ciência se tornou a linguagem característica do pensamento teórico e do conhecimento epistemológico, construindo para si um paradigma de certeza e verdade através do qual se avalia, se julga e sentencia a realidade natural e o mundo dos homens, a Teologia e a Filosofia sofreram um duríssimo golpe em seus pressupostos metafísicos e dogmáticos, cedendo espaço à investigação metodologicamente conduzida por instrumentos de observação, a fim de se testar e/ou provar hipóteses e suposições na experiência, que, a partir deste momento, se torna o critério de validade das teorias que reclamam o estatuto de cientificidade. Assim, embora já tivesse indicado que a Metafísica constitui um dos interesses da razão, Kant a inviabiliza enquanto Ciência, na medida em que ela não consegue provar empiricamente aquilo que afirma, deixando a especulação livre para levantar voo no campo da moralidade e da apreciação do gosto e do juízo estético - uma estratégia, talvez, do filósofo para não se indispor com o imperador e com a religião na Prússia da segunda metade do século XXVIII... Uma posição mais radical talvez tenha sido adotada por Nietzsche já no século XIX declara a morte de Deus para demostrar tão somente que valores como certeza e verdade não passam de hábitos reiterados e vicissitudes morais que são naturalizadas, mas que, portanto, não são essenciais e universais. Óbvio que a posição adotada pela cultura acadêmica e investigativa não foi a de Nietzsche predominantemente, e sim do Positivismo Cientificista de Augusto Conte, que invadiu a Filosofia e influenciou pesquisas nos campos da lógica e da linguagem, ensejando uma espécie de novo kantiano, motivando um número considerável de pesquisadores reunindo-se em sociedades especializadas para dizer o que era conhecimento científico e verdadeiro e o que, portanto, deveria ser descartado como misticismo, obscurantismo e crença. Sem dúvida alguma que todo esse histórico possibilitou à Filosofia a emergência de novas disciplinas como a Teoria do Conhecimento, a Filosofia do Conhecimento, a Filosofia da Ciência, a Epistemologia, a Lógica Simbólica (Matemática); porém, limitou consideravelmente seu prestígio nas Universidades que, por sua vez, passaram a associá-la aos Departamentos de Letras e Humanidades. Além disso, com a expansão e consolidação da técnica como uma mediadora da relação homem/mundo, a Filosofia institucionalmente assistiu ao declínio de seu potentado, apesar de permanecer enraizada ao chão tal qual os pilares de um edifício sobre o qual se erguem as ciências como um todo. É correto afirmar, no entanto, que o lugar da Filosofia em Universidades de países da Europa como Inglaterra, França e Alemanha permanece numa posição muito melhor e muito mais confortável do que em outros lugares do mundo como o Brasil, o qual – ao longo da Ditadura Militar a partir de 1964 e, mais recentemente, durante este governo neofacistoide de Jair Messias Bolsonaro – assistiu e ainda assiste à pauperização de nossos cursos de licenciatura enquanto parte integrante de um processo maior de inviabilização do ensino das humanidades que, por sua vez, compõe esse cenário perverso e cruel de sucateamento e desmonte das Universidades e da cultura intelectual em nosso  país. Assim é que, nas Universidades Públicas Federais e Estaduais, os Grupos de Pesquisa em Filosofia trabalham com nenhum ou quase nenhum recurso ou apoio e nas Universidades Privadas, em muitas delas, a graduação em Filosofia encontra-se em quase total extinção, tentando se salvar do completo ocaso migrando para a Educação à distância. O curso de licenciatura plena em Filosofia da Universidade do Estado do Pará é um exemplo de erros e acertos da UEPA em atender a uma demanda que não era atendida com suficiência pela UFPA. Nascemos sob a égide imperiosa da Pedagogia e, na sequência, passamos a caminhar nas dependências das Ciências da Religião, com uma matriz curricular eminentemente voltada para a formação e atuação do “professor de Filosofia" na Educação Escolar Básica. No começo, a maioria de nossos professores era horistas e substitutos, e grande parte deles, incluindo-se aí os efetivos, nem tinham formação e até identificação com o curso. Pouco a pouco isso foi mudando, tanto pela pressão que os discentes fazem, quanto pela minha militância pela Filosofia para que ela não desapareça em nosso estado e, também, não se transforme no reino inerte da arrogância de alguns docentes que acreditam que ler Kant em alemão é o suficiente para suportarmos uma aula ruim, torturante e psicologicamente prejudicial à saúde mental de quem a assiste. Professores de Filosofia – como de resto em qualquer outra disciplina ou curso de graduação – não podem e nem devem praticar nenhum tipo de assédio. Isso é criminoso e não acrescenta em nada à dignidade de nossa área.

V. Gigio Ferreira - A aula propriamente dita é um dispositivo pedagógico do século 19. A formação que temos pertence ao Paradigma da Instrução. Você acha que poderíamos observar mais os Paradigmas de Aprendizagem e os Paradigmas de Comunicação? Você é adepto das Oficinas, Círculos de Estudos e Projetos de Formação? Por quê?

Wladirson Cardoso - A aula clássica do “mestre" proferindo lições e os alunos olhando fixados e anotando freneticamente rápidas, mas importantes observações, me cansam como docente, porque sempre me cansaram como discente. Eu me lembro de ter tido professor que passava metade da aula falando em grego clássico e latim – acabava maravilhoso, mas também não via muita vantagem naquilo... Havia um outro professor que a figura dele amedrontava por si só: ele era muito alto e nos olhava dos pés à cabeça com um ar de total desprezo, e eu tinha que estar ali. Um outro professor era engraçado: ele soprava tanto a língua na hora de pronunciar uma palavra com a letra R/ em alemão que os colegas e eu saíamos dali meio tontos de tanto rir pelas costas dele. Porém, o mais grave e traumático foi quando uma professora, ao feitio que lhe era típico, me chamou de burro na frente da turma ou algo do tipo. Alguns colegas tentaram me defender e foram prejudicados nas notas da avaliação final. A professora não admitiu a contrariedade. Como ela foi interditada em me punir, acabou punindo as colegas e os colegas que advogaram em meu favor... Estes são alguns exemplos do que você chama de “paradigma da instrução”, e ele é o que eu chamo de tortura psicológica, trauma e mortificação. Imagine ter – ainda hoje – que ficar sentado em uma cadeira desconfortável, ouvindo aquelas e aqueles que deveriam ser exemplos de vida e modelo de inspiração para a vida acadêmica. E os mesmos se aborrecendo porque queriam que adivinhássemos a filologia de termos de uma ou duas línguas mortas, dizendo que não sabíamos ler as outras línguas, que nossas traduções eram péssimas, que não possuíamos experiência e maturidade para ler um texto de Filosofia... Esse tipo de formação violenta, que constrange e assedia foi muito comum em minha época. É o tipo de formação pautada numa educação tradicionalista e elitista. Os cursos de Filosofia devem tomar esse cuidado, então, para não se tornarem mais elitistas, classistas e racistas mais do que já são, digo, aprender a reestabelecer o diálogo com sujeitos que ali encontram-se interessados. Não aprendi a dar aula com os meus professores. Eles não me ensinaram isso. Se me ensinaram algo, foi a arrogância, a prepotência, o desprezo pelo outro – tudo o que contrario. O fato de ter ido para a pesquisa em Direitos Humanos no Mestrado e, depois para a Antropologia Social no doutorado, representam sintoma disso. E um sintoma grave, pois me diagnosticaram como incapaz de suportar processos pedagógicos pautados na barbárie em que o professor se coloca acima dos seus alunos. Por isso eu contesto, conflito e confronto com este tipo de formação para a erudição – ou seja, o discente aprende a ler Hegel, Husserl e Heidegger, mas não tem sensibilidade humana, não exercita a alteridade, não olha nos olhos de quem o encara e reconhece nesse olhar um ser humano. Não aprendi a dar aula com meus professores, eu aprendi a dar aula com meus alunos da Pedagogia da Terra em Marabá, lá pelos idos de 2006 e 2007; eu aprendi a dar aula por meio de Oficinas de Leitura e Formação que ministrei para colegas da Educação Escolar Indígena na Aldeia Kyikatêjê Amitatí entre 2008 e 2009 - na época do mestrado; eu aprendi a me comunicar com o povo quando militei em Movimento Universitário de Defesa dos Direitos Humanos e sexuais LGBTQIA+ entre 2009 e 2010; eu aprendi a dar aula com minhas turmas de Filosofia do Campus XI de São Miguel do Guamá de 2011 a 2019, quando ali atuei quase que com exclusividade porque existe uma carência muito grande de professores de Filosofia com formação de base na área de interiorização de nosso ensino superior. Sim, eu sou adepto da troca dialógica e democrática em sala de aula, de oficinas, círculos de leitura e projetos de formação pela simples razão de que essas outras práticas consideradas complementares, são as que mais nos engrandecem como pessoas, tanto quanto ou principalmente exercitar a docência em lugares afastados dos grandes centros urbanos e grandes capitais. Em novembro do ano passado, fui convidada para um Ciclo de Palestras e Formação em Pesquisa organizado por um grupo de professores da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), sediada na cidade de Redenção, distante apenas 72 km de Fortaleza/Ceará. Sem dúvida essa foi para mim uma das experiências mais intensas, pois estar em contato com estudantes do interior do Ceará e, também, com estudantes vindos de outros lugares do mundo na África me mostrou o quanto consigo falar se pensamento, conhecimento, ciência e pesquisa para um público diferente do qual estou habituado seja em Belém, seja no interior do Pará. Ora, o que adianta ser filósofo e assumir o compromisso público de praticar a sabedoria se não se consegue se comunicar com toda e qualquer pessoa?... Ainda no ano passado, uma senhora que faz a limpeza da sala de minha coordenação na UEPA, entrou meio acanhada e me olhou tímida. Eu senti que ela queria me pedir algo. E o que ela me pediu me surpreendeu e me emocionou. Ela pediu que eu explicasse a ela o que era Filosofia. Daí, sem pestanejar, lhe respondi: “Filosofia é o que te faz, nesse momento, querer conhecer e ter coragem de perguntar”. Os olhos daquela mulher saíram de minha sala marejados em gratidão. Já o meu espírito não conseguiu mais caber em mim de tanta alegria, porquanto naquele instante percebi que resgatei um tipo antigo de exposição da sabedoria que o academicismo instituído e a vaidade de muitos docentes fizeram se perder. Comunicar-me desta forma com o outro não me diminui e nem me torna menos pesquisador...

VI. Gigio Ferreira - A intersubjetividade consegue atingir graus elevados de vivências? Por quê?

Wladirson Cardoso - Às vezes não. Quer dizer, na maioria das vezes não. Eu, particularmente, não sou um entusiasta da vida gregária e da interdependência (afetiva, sexual, econômica, política e existencial). Almoços e jantares familiares não me agradam; datas comemorativas e celebrações públicas – à exceção do Círio talvez (e muito mais por motivos culturais do que propriamente por motivos religiosos) – não me animam; reuniões de trabalho sempre me desgastam. Não se trata de misantropia necessariamente. Penso que é por que na minha história de vida, não tenha crescido próximo a parentes. Fui filho único por muitos anos e, quando meus irmãos, nasceram – com uma significativa diferença de idade em relação a mim – eu já tinha meus pequenos hábitos, uma rotina e algumas manias que arrasto comigo até hoje. Além do mais, no início da adolescência descobri as obras de Machado de Assis que me deram o hábito da leitura e da escrita e que preenchiam minhas tardes monótonas com um exercício saudável de linguagem e imaginação. Não fui um “adolescente problema” – eu vivia de forma intensa minhas fantasias e idiossincrasias. Porém, quando entrei na vida adulta fui construindo uma trajetória existencial na qual primava muito pela minha autonomia de espírito e independência material. E isso é muito forte em mim agora no início dos meus 40 anos. Eu penso que me permito a intersubjetivação – mas com muitas reservas de intimidade – apenas quando estou em sala de aula na companhia de meus alunos e/ou na minha função de coordenador do curso de licenciatura em Filosofia da Universidade do Estado do Pará. Tenho uma relação franca e direta com os discentes do curso que têm acesso a mim – ou presencialmente, quando necessitam que eu resolva alguma demanda urgente; ou remotamente através das redes sociais e ligação telefônica. Eu interajo bastante com muitas pessoas nas redes sociais, mas em meu convívio direto estão o meu companheiro, a nossa cadelinha, a Delina – que organiza minha casa, meus livros e o que mais não consigo fazer -, minha mãe e meu irmão caçula. Eventualmente recebemos alguns amigos próximos ou meus orientandos de mestrado para uns vinhos e vinis. Para uns, minha descrição vai parecer muito liberal/burguesa e para outros muito anarquista. E não é nem uma coisa, nem outra. Sou defensor de um projeto humano socialista, no qual todos possam gozar das mesmas oportunidades de forma igualitária, respeitando-se as necessidades dos grupos mais vulneráveis e setores mais carentes da sociedade, considerando-se, pois, a importância mesma da implementação de políticas públicas para a inclusão e reparação histórica. Mas não me passam o convívio – não! Não me sinto obrigado e detesto me sentir assim: forçado, compelido, escravizado pelas normas do trato social – quer seja no registro da etiqueta europeia; quer seja no registro da cordialidade brasileira. Eu fujo para as montanhas e serras literalmente quando a cidade urbanizada e conturbada com todos os seus problemas e dilemas me inquietam e exasperam. Mas admito que gosto do vai e vem dos grandes centros apenas para observar o comportamento das gentes e aprender com a diferença e o contraste. No entanto, se pensarmos num projeto grandioso de humanidade, a intersubjetivação é fundamental e urgente, mas sob a égide e orientação da Justiça, dos Direitos Humanos, do reconhecimento da alteridade e do respeito à diversidade e acolhimento sincero das escolhas individuais e das diferenças. O que nos impede de chegar a isso é não só o modelo viciado de sociedade que temos conflagrado através de um Estado classista, patrimonialista e massificador que planifica e burocratiza a vida; mas, também, o egoísmo e a vaidade. E esses desvios de caráter estão presentes nas práticas populistas de muitos políticos e seus asseclas. Por isso não bajulo quem quer que seja, evito intrigas departamentais e não me vitimo – um tipo de ceticismo público que me afasta de gente controladora e manipuladora, uma figura muito comum nas Universidades. Eu procuro transmitir isso aos meus alunos e orientandos, como uma forma potente de resistência. Todavia, na minha vida privada – quem me conhece mais de perto pode confirmar – sou um cínico, ou melhor, um sátiro, adepto do deus Dionísio...

VII. Gigio Ferreira - O modo como o professor aprende refletirá no modo como ele ensinará? Por quê?

Wladirson Cardoso - Estamos falando de uma aprendizagem pautada num processo de formação em nível superior? Porque se for isso, mais uma vez, prefiro me isolar nas montanhas a ser aluno novamente da maioria absoluta dos professores que tive no doutorado, no mestrado, e principalmente na graduação em Filosofia. Não se trata de “cuspir no prato em que se comeu"; trata-se, isto sim, de se fazer jus aos meus esforços de não parecer em nada com muitos dos “exemplos” (entre aspas aqui, porque há um sentido pejorativo) que tive ao longo de todos esses anos de formação. Por exemplo, um avaliador interno de minha tese de doutorado – não tendo nada mais a “criticar” – resolveu debochar da minha escrita que, em muitos aspectos é leve e metafórica, perguntando-me se aquilo era pesquisa e se tinha validade científica. Bem, se aquilo era pesquisa? com toda certeza que sim. Daí se era Ciência, vamos ter que descer aos manuais de metodologia científica, aos manuais de Teoria do Conhecimento, aos próprios textos históricos se fundação/ inauguração do pensamento científico, aos textos de etnografia que discutem autoria e à toda e qualquer problemática que é fazer pesquisa e ciência no campo da História, da Sociologia, da Ciência Política, da Antropologia e da Psicologia, em que os objetos não são dados em si e nem fatos ou casos monolíticos e isolados, mas sim eivados de complexidade e instabilidade. Essa fixação que tangencia à neurose de muitos professores que tive no doutorado e no mestrado – em especial desse meu avaliador – me mostrou a duras penas que, no âmbito das humanidades, uma parte considerável dos pesquisadores querem por força que a complexidade do mundo se restrinja às categorias e conceitos de autores de sua preferência e cabeceira – tal qual criança mimada que se atira ao chão esperneando porque a mãe não comprou o brinquedinho que logo se vai descartar ou o chocolate que nem se vai comer. Na graduação eu tive que me dividir entre os partidos kantiano e nietzscheano – sem, contudo, escolher nenhum. Pela necessidade da Bolsa, eu me envolvi com os kantianos, mas sempre de olho atento e muito interessado no outro grupo que me olhava com desprezo. Conclusão: eu leio e discuto Nietzsche e Kant com muita tranquilidade com meus alunos em sala, ainda que não seja especialista. Aliás, por que exigem que sejamos especialistas nisso ou naquilo? Por que temos que nos especializar nesse ou naquele autor, nesse ou naquele filósofo, nessa ou aquela abordagem, se podemos borrar fronteiras, se podemos transversalizar o pensamento e os argumentos? Penso que essa minha postura iconoclasta e libertária no modo como faço pesquisa e ensino eu não aprendi com meus professores, mas sim na minha experiência de militância social, junto a professores da Educação Escolar Indígena, junto aos discentes de Filosofia de São Miguel do Guamá. Ou seja, aqueles que para mim verdadeiramente importam. Os meus professores da formação em Filosofia foram muito importantes, porque de grande parte deles só me resta esperar que jamais eu os ature como aluno novamente e que jamais venha a reproduzi-los em sala com meus estudantes – à exceção do professor Ernani Chaves, obviamente. Portanto, a resposta à pergunta que você me fez é: 1) Sim, se o professor desde sua formação tiver talento apenas para copiar modelos. 2) Não, se ele quiser ousar fazer um trabalho diferente em todos os seus aspectos, o que talvez lhe custe amizades e relações influentes na academia – mas quanto a isso, eu realmente sou indiferente. Hoje posso dizer que eu rompi com os cânones, modelos e mestres. Então, sigamos!

VIII. Gigio Ferreira - Em recente artigo ao Jornal O Estado de São Paulo, o antropólogo Antônio Risério afirmou que o Brasil nunca foi e não é um espaço multicultural. Ao contrário, disse que o Brasil é sim um país sincrético. E prosseguiu afirmando que (LUGAR DE FALA) circunscreve legitimidades discursivas só para oprimidos. E não obstante a tudo isso, concluiu seu artigo afirmando que a história cultural da humanidade é toda ela feita de imposições, apropriações, empréstimos, trocas e mesclas... E que a ideologia multiculturalista se opõe às interpenetrações culturais, defendendo o desenvolvimento apartado de cada comunidade étnica. Como antropólogo, como você discute essas questões com a comunidade científica e os mestrandos que você orienta?

Wladirson Cardoso - O ponto de vista dele é claramente anti-relativista e elitista. O que ele esqueceu de dizer é que as imposições culturais se dão sempre a partir de uma política expansionista e imperialista; que os empréstimos culturais se dão frequentemente partir da necessidade de soluções práticas e materiais convenientes aos grupos dominadores que, geralmente, obliteram a origem de onde se realiza o empréstimo ou, melhor dizendo, o saque – porque à sombra de cada empréstimo haverá sempre um saque ou uma pilhagem – e que trocas e mesclagens culturais se dão comumente de forma lenta, complexa e variada como uma estratégia negociada de equilíbrio, sobrevivência ou resistência dos sujeitos em suas formações sociais. O fenômeno cultural humano não cabe em teorias abstratas e muito menos em um artigo para confrontar ou detonar os movimentos sociais que demandam atenção, respeito e proteção, ensejando e afirmando a narrativa de uma outra história, de uma história contada a partir de baixo, a partir do ponto de vista dos vencidos ou dos oprimidos. Por isso, em termos políticos e de garantia de direitos constitucionais e de Direitos Humanos e Fundamentais, fala-se em identidade, etnicidade e raça – não para separar, segregar ou apartar; mas sim para reparar e superar os preconceitos, as discriminações e suas múltiplas derivações específicas (classismo, racismo, sexismo e LGBTQIA+fobia). Por isso, em termos governamentais, digo, em termos de políticas públicas, fala-se em inclusão e cotas – e, com isso, não está se falando em premiar incompetências e/ou incapacidades; mas sim de oferecer condições objetivas e materiais palpáveis a pessoas, grupos ou populações inteiras que estão longe do sistema de ensino ou do mercado de trabalho porque se encontram em situação de fragilidade, vulnerabilidade ou marginalidade. A sociedade brasileira se estruturou e se organizou a partir da lógica do racismo e da discriminação. Me diga, pois: quem habita as periferias dos grandes centros urbanos? Quem frequenta a Educação Escolar Básica da rede pública de ensino municipal e estadual, mas está caracteristicamente ausente das Universidades Públicas e das cátedras universitárias? Quem sofre nas filas das Unidades de Pronto Atendimento, nos Postos e Emergências e demais Hospitais do Sistema Único? Quem é pego e revistado nas batidas policiais nas esquinas dos bairros pobres das cidades? Quem constitui a maior população encarcerada do país?... A resposta é a mesma em todos estas questões. Não sejamos hipócritas! A coisa se agrava se a pessoa negra e pobre recaem outros marcadores sociais da diferença: mulher e/ou LGBTQIA+. Por isso que é importante falar de racismo estrutural e pobreza em nosso país. Por isso é importante discutir o feminicídio, os crimes de LGBTQIA+fobia. Por isso é importante esfregar na cara de nossa sociedade as desigualdades, injustiças, violências e mazelas que nos atingem porque não é uma questão de vitimismo ou vitimização; é uma questão ética de respeito pelo outro e, também, é uma questão política de justiça e reparação. Nesse sentido, não se pode confundir ideologia, diversidade, multiculturalidade e diferença. Em termos gerais, ideologia é o mascaramento da realidade – intencionalmente por um ato de vontade ou desvio de caráter (aqui, então, posso afirmar que as fake news são ideológicas) ou inconscientemente por naturalização e essencialização da realidade. Diversidade significa contraste e alteridade, isto é, tudo o que no plano simbólico e material das culturas não se pode igualar entre si. Multiculturalidade é a pluralidade na diversidade ou a multiplicidade do que é diverso – como afirmar que o Brasil não é um país multicultural e que o multiculturalismo, enquanto abordagem antropológica, é “Ideologia”? Ao que tudo indica, subscrever o multiculturalismo uma expressão ideológica, para além de ignorância evidente, é, de fato, uma inflexão perversa e canalha para reafirmar a “mistura de tudo e de todos" sob os agouros implicados no termo “sincretismo” que se presta, por exemplo, ao discurso nacionalista e autoritário que, no seu fundamento obscuro, propaga a ilusão de que o país é um “espetáculo democrático de raças” vivendo supostamente na mais plena harmonia. Não é o multiculturalismo que é ideológico, mas sim a adjudicação do sincretismo que, por sua vez, mascara, tendenciosamente, a realidade. De posse dessas primeiras noções, posso dizer agora que a diversidade comporta a diferença. Elas não são a mesma coisa, teoricamente falando; mas estão em relação, inclusive de tensão – porque é mais fácil ou conveniente admitir a diversidade e a multiculturalidade, confundindo-as tacanhamente com o “sincretismo”, como fazem na maioria das vezes os ideólogos da direita e do Estado totalitário no Brasil desde a Ditadura Militar praticamente, a que, por exemplo, compreender que existem graus de vivência e experiência do racismo, da pobreza, da performatividade do gênero e da sexualidade e, ainda, da prática religiosa de matrizes africanas e não cristãs que podem expor os sujeitos a toda sorte de violência e extermínio quanto mais afastados estejam dos ideais de branquitude, juventude, masculinidade, trabalho, emprego, renda, sucesso e religiosidade. Não existe “cristofobia" no Brasil! O termo é ridículo; a expressão é risível! E, só para frisar, questões de gênero e sexualidade não são “ideologia”, tanto quanto o multiculturalismo não o é. Quando pesquisadores e militantes da diferença mobilizam a partir dos movimentos sociais e de suas reivindicações identitárias próprias – sim, identidade e diferença se relacionam – a expressão “lugar de fala", querem nos chamar a atenção para quem tem mais legitimidade para abordar essas questões, porquanto um homem branco, hetero, cis, classe média e cristão não pode falar ou se posicionar em lugar de uma mulher negra, trans, lésbica, pobre e não cristã. Quem de ambos carrega em si mais marcadores da diferença que surge em barreiras na vida? Ora, para um homem branco, hetero, cis, classe média e cristão, o mérito já está previamente legado como dispositivo discursivo a ser acionado. Todavia, para quem carrega em si as marcas da diferença, a primeira resposta ao mundo, à realidade e à vida é, justamente, a garantia da sobrevivência. Não há mérito, há residência! Por exemplo: nosso país registra índices altíssimos de violência policial contra jovens negros nas comunidades pobres e distantes dos grandes centros; os crimes de violência contra mulher e feminicídio são alarmantes; o assassinato de LGBTQUIA+ por aqui é o maior do mundo quando comparamos Brasil e alguns países eslavos onde o a LGBTQIA+fobia é quase uma política de Estado. A expressão “lugar de fala" não pode se constituir, porém, em uma camisa de força no discurso e na ação dos filósofos e antropólogos da diferença. Para vencer e superar as injúrias, calúnias, difamações e os preconceitos e discriminações em nosso país, devemos intercessionar as pautas, reunir as lutas, juntar forças e ir para o enfrentamento. Isso exige uma postura de receptividade ao novo, de reconhecimento do potencial transformador da contracultura inaugurada por uma política cotidiana das múltiplas e variadas existências que não se enquadram nos modelos compulsórios da produção dos corpos e desejos moralmente úteis. Então, o cuidado que se deve ter para não subsumir o identitarismo da diferença ao liberalismo político é não esquecer que os direitos individuais ou civis são parte importante no ciclo da geração dos Direitos Humanos e que a defesa dos direitos sexuais sempre perturbará a hipocrisia de “pais de família e cidadãos de bem” que, a despeito de suas esposas e filho(s) e/ou filha(s), descarregam – catarticamente – as obrigações apodíticas (mas frágeis) de sua masculinidade nos banheiros de shoppings e rodoviárias; em saunas ou através de aplicativos de relacionamento, buscando sexo casual – “apenas para curtição, na broderagem e sem frescura"; porque, afinal de contas, são heteros... É deste jeito, neste grau de profusão teórica e de densidade analítica que discuto tais questões com meus orientandos de mestrado no programa de pós-graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Procuro mostrar-lhes que a escola, que deveria ser um espaço de acolhimento e promoção da diferença (na diversidade), é o primeiro a excluir ou, o que é mais perverso ainda, o primeiro a invisibilizar ou marginalizar jovens que estão mais próximos da exclusão social do que dos critérios de humanidade que a própria instituição escola preconiza. Já orientei trabalho sobre a implementação de projeto de aceleração do tempo de formação na Educação Básica para alunos considerados em idade/série “em distorção”. E o que isso significa? Quem está distorcido? O aluno? Pois se assim for, a culpa do “fracasso escolar” é dele, que, assim, confirmará sua incapacidade – leia-se: anormalidade – para o estudo. Absolve-se a instituição que, objetivamente, está estruturada e organizada, desde o espaço físico até o Projeto Político Pedagógico para promover o aluno disciplinado e funcional... Outro trabalho que orientei mostrava como as pastorais da juventude da/na Igreja Católica - em uma cidade do interior do estado – instaurava um currículo paralelo e complementar ao da Escola Básica para subjetivar meninos e meninas para a heterossexualidade, o casamento, a reprodução biológica e para a vida religiosa, condenando como pecado outras possibilidades de viver os imperativos do corpo. Eu poderia citar aqui mais um trabalho cuja orientação iniciei este ano e que diz respeito ao modo como uma dada instituição escolar em outro município do interior paraense silenciou diante de um crime de assassinato por homofobia. Observe algo: todos os meus orientandos de mestrado são em sua maioria absoluta LGBTQUIA+ ou heteros cis sensíveis à causa e grande parte deles são de outros municípios ou de áreas afastadas do centro de Belém. Nas minhas orientações, procuro destacar a importância de se realizar uma etnografia pós-estruturalista com os aporte teóricos de Michel Foucault, desesperando e decepcionando filósofos e antropólogos – os primeiros porque consideraram o pensador francês apenas a partir de um ponto de vista teórico e porque não entendem nada de Antropologia Cultural e os outros porque não leem Foucault em profundidade e não encetam uma compreensão relativista do mesmo. Porém, acredito que o maior incômodo vem da parte de alguns colegas do Programa, que adotam uma abordagem crítico-marxista e que, já ouvi dizer, afirmam que não sei orientar e que o que oriento não é Ciência. Mas isso, se não for fofoca, é despeito...

IX. Gigio Ferreira - O idealismo cristão foi responsável pelas Cruzadas e a Inquisição. E por isso mesmo até hoje não conseguiu sair e nem retirar da cama de Procusto os políticos que a igreja sediada em Roma gerou e criou para se defender, ironicamente, das ideologias fascistas e nazistas. Na sua opinião os sonhadores são todos idealistas ou poderíamos acomodá-los razoavelmente bem e sem prejuízos líricos em recantos de uma utopia útil?

Wladirson Cardoso - O idealismo – no singular – pressupõe que as ideias antecedem à realidade. Se elas não são legadas pela razão – como naquele esforço meditativo que Descartes enseja para provar sua origem inata; as mesmas decorreriam de um “Ser Supremo" que Platão chamou de “Sumo Bem" e que o cristianismo chama de Deus. Ora, quer seja o idealismo racional ou racionalismo idealista; quer seja o idealismo religioso de um Plotino ou até mesmo o idealismo cristão de um Santo Agostinho, estamos diante daquilo que Heidegger chama de “constituição onto-teológica da metafísica”. E o que isso quer dizer? Em linhas gerais, isso significa que o grau máximo – em termos absolutos – do exercício do pensamento atinge um nível tão elevado na busca de uma fundamentação única para todas as coisas que a Filosofia arrasta para dentro de si aquilo que é objeto da Teologia. Depois da Patrística na transição do Helenismo para a Idade Média e da Escolástica Europeia para a Idade Moderna. Filosofia e Teologia caminharam juntas e inseparáveis a ponto de se “cristianizar” filósofos pagãos, de se defender a proeminência da fé sobre a razão, de se desenvolver exercícios de lógica apenas para se reafirmar o mais do mesmo nos jogos teóricos e dialéticos das provas e contraprovas da existência cosmológica e ontológica de Deus, para se discutir a origem do mal e o livre-arbítrio. É possível afirmar, junto com Ernest Cassirer, em “Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento", que as reiteradas discussões acerca dos mesmos temas de reflexão na Escolástica Medieval – todas elas fundadas em argumentos de autoridade, retirados da Bíblia, da física aristotélica e do sistema-mundo ptolomaico – exauriram a imaginação e a criatividade do homem com espírito de ciência que, então, passou a vislumbrar outros esquemas explicativos não conformes ao Teocentrismo da Igreja. Filósofos como Giordano Bruno na Itália e Francis Bacon na Inglaterra ensaiaram novas possibilidades se compreensão e entendimento da vida, do homem, da natureza e de Deus. Porém, a Revolução Científica que foi, ipso facto, uma revolução metodológica, qual seja, uma mudança de perspectiva na maneira de se pensar o conhecimento, a relação sujeito-objeto, a elaboração de leis físico-naturais elaboradas pela razão que foi à natureza para tentar decodificar sua linguagem matematicamente somente ocorreria com Copérnico, Kepler e, finalmente, Galileu. A utilização de instrumentos para a aplicação do método, como demonstra Alexander Koiré, nas obras “Do Mundo Fechado ao Universo Infinito" e “Estudos de História do Pensamento Científico”, abalaram o idealismo especulativo que sempre afirmara de forma peremptória aquilo que não consegue provar na experiência possível. Não se deve esquecer que, paralelamente a esse movimento interno de questionamento das verdades impostas pela Santa Sé Romana, ocorria um outro movimento de questionamento e confrontação quanto a práticas clericais abusivas que resultaram na Reforma Protestante de Martinho Lutero, Calvino e Henrique VIII. Todavia, a reação da Igreja na defesa de seus preceitos filosóficos e dogmas de fé foi implacável, resultando, consequentemente, na Contra Reforma, cujos instrumentos de apoio e sustentação foram basicamente o Tribunal da Santa Inquisição e a Companhia de Jesus. A história é longa e cheia de complexidade e nuances. No entanto, o que se tem que entender é que quando o idealismo se torna política de Estado, a guerra, o extermínio e a barbárie são a decorrência perversa e cruel de um discurso que impõe a universalidade de uma certa verdade que se pretende inquestionável e irrefutável. Não quero dizer com isso que todo idealismo é ideológico – do contrário, pareceria simplista demais e perderia em consistência e densidade argumentativa. Posso dizer, seguramente, que toda ideologia é idealista – já que se procura estabelecer como visão de mundo inquebrantável. Neste sentido, como alega Karl Popper, se nosso conhecimento é pouco e limitado e nossa ignorância é infinita, o senso comum (da fé, da Religião e da Filosofia) nos serviriam para o avanço da Ciência e a desmistificação da vida. Porém, de acordo com Adorno e Horkheimer – na “Dialética do Esclarecimento” – não foi o que aconteceu, uma vez que a razão se instrumentalizou e se tornou meio para destruição em massa de povos e grupos. Logo, a crença nos poderes e capacidades da razão para a perceptibilidade humana - uma expressão linda retirada da Filosofia Iluminista – não lograram verdadeiramente seu propósito emancipador e humanitário, na medida em que o Estado capturou a Ciência e a utilizou como recurso prático na ideologização, alienação e, finalmente, nos processos de disciplinarização, normalização, judicialização, medicalização, governamentalização, traduzidos naquilo que Michel Foucault define como Biopolítica ou Biopoder, a qual se caracteriza justamente pelo controle dos corpos – moldados preferencialmente nos enquadres de uma dietética da utilidade e funcionalidade – e das populações – treinadas à obediência e reprodução do sistema. O ponto crucial neste debate não é, portanto, a substituição do idealismo (em uma de suas múltiplas definições) pelo intelectualismo, pelo realismo, pelo criticismo, pelo niilismo, pelo anarquismo, pelo materialismo mecanicista ou pelo materialismo dialético. E sim por uma espécie de política de artificialização da vida – inventada, testada e re-feita no cotidiano –, na qual se consiga ampliar nossa opção pelos pobres, excluídos, marginalizados e pelos “loucos" – como naquela música do Vitor Ramil [“Loucos de Cara"] que nos conclama percorrer o planeta e... Sumir nos descaminhos da liberdade. Esta opção, no entanto, seria uma opção sem definições prévias, em constante reelaboração para que nenhuma categoria ou conceito nos roube a possibilidade de nos experimentarmos em nossas diferenças específicas e desejos particulares. Neste sentido, o exercício da imaginação e a reabilitação da dimensão lúdica e onírica do homem é fundamental para não enrijecer a ideia de uma possível transformação da intimidade e das estruturas sociais numa perspectiva antimoralista e nenhum pouco previsível em suas conclusões e programas de ação. As utopias individuais e/ou coletivas deveriam resgatar a potência e vivacidade da imagem distante daquilo que ainda não existe, mas que um dia – em algum tempo e lugar – pode “vir-a-ser" (não para além deste mundo ou para além das estrelas; e sim no presente, quando se legitima o sonho de dias melhores como resistência à decadência do sistema de mercado e das relações humanas que dele emergem). Penso que assim, retiramos os que os comitês do partido comunista espalhados pelo mundo apoiassem líderes sonhando de olhos abertos, na metáfora do idealismo e da sombra do racionalismo.

X. Gigio Ferreira - No pós-guerra de 1945, Moscou enviou uma ordem para que os comitês do partido comunista espalhados pelo mundo apoiassem líderes nacionalistas com algum lastro social-democrata. Era um evidente estratagema de combate à hegemonia cultural, política e econômica das forças representadas pela atuação direta do novo bloco nomeado (OTAN) em vários países e em muitos continentes. Com isso, vimos aqui o grande líder Luiz Carlos Prestes apoiando o caudilho Getúlio Vargas, mormente na campanha (O Petróleo é Nosso!). Após a programada queda do Muro de Berlim, as mesmas forças hegemônicas do ocidente declararam e, posteriormente impuseram, uma nova ordem mundial. Pergunto, mesmo com os insurretos (BRICS), por que ainda há uma boa parcela de comunistas brasileiros ainda se dizendo nacionalista? Isso não é um paradoxo ou o socialismo moreno de Leonel Brizola tinha razão?

Wladirson Cardoso - Quem são esses comunistas? Os mesmos que aparecem ladeados a políticos de direita em escândalos de corrupção? Pois se forem os mesmos, me parece que não há muita diferença aparente entre os que se elegem defendendo uma agenda fascista resumida no lema “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos" e o oportunismo de quem vai escalando uma carreira no legislativo e no executivo com um programa supostamente democrático e humanista. As leituras que fiz até hoje, quer na Filosofia, quer na Antropologia, me ensinaram a lançar um olhar distanciado e de suspeita sobre a vida, o conhecimento e a moral. E o que define e sustenta essa tríade, senão a política? Os gregos já nos ensinaram isso. Mas Maquiavel – que talvez tenha se tornado clichê por habitar a cabeceira das comidas de alcova daqueles que acreditam extrair dele alguma lição de sucesso – também advertia que a política não é o reino dos céus e que não existe inocência nessa seara. Eu diria, ingenuidade talvez (e de principiantes com “boa vontade"); mas inocência jamais. Porque política, numa definição clássica, é a ordenação do “bem comum" e a condição da “vontade de todos". De fato, o Estado seria uma entidade metafísica vazia sem a política (que conduz – mediante interesses de partidos ou grupos – a dinâmica e o funcionamento das instituições) e sem o Direito (que assegura a ordem e garante estabilidade do sistema político). Não se que tipo de teste ou prova deveríamos aplicar aos candidatos a cargos eletivos na política, a fim de que demonstrem competência e habilidade no exercício da representação pública dos interesses daqueles que os elegeram. Só sei dizer que o projeto da direita sempre foi capitalístico e de garantia do status quo das elites; e, por outro lado, o projeto da esquerda, neste aspecto, jamais deveria se aproximar, se assemelhar ou se confundir com o projeto de seus antípodas – até porque, quando isso ocorre, dilui-se o valor da alteridade e o princípio da humanidade que devem orientar o sonho de um Brasil mais justo e mais igualitário. Mais uma vez, aqui, nos deparamos com o inconveniente de um idealismo que requer um estatuto de cientificidade, positividade, diretividade e controle, em oposição à utopia. Porque esta, se permite rever e refazer, mas o anterior não. E é neste instante que o sonho corre o risco de se transformar em ideologia – e nós, feito os bichos iludidos da fazendo, corremos o risco de nos surpreendemos estupefatos com os “líderes” de nossa tão sonhada revolução, comendo, bebendo, rindo, celebrando e andando sob duas patas, à semelhança dos humanos exploradores e opressores (só para ficarmos aqui com a metáfora que encerra o conto “The Animal Farm", traduzido aqui sob o título A Revolução dos Bichos. De George Orwell). Conheço de perto um certo número de pessoas ligadas a partidos políticos de esquerda que se utilizam da boa-fé dos outros. Pior, ainda, conheço de perto gente que se vale do “nome de família” – como se fizessem parte de uma casta superior ou como se fossem a própria realeza –, que é tão elitista quanto qualquer pseudoaristocrata de família tradicional decadente que sempre revive os tempos passados de uma suposta Belle Époque que é quase uma narrativa idílica e saudosista... Nos tempos da Guerra Fria, Moscou representava para os militantes do socialismo /comunismo ao redor do mundo uma linha de fuga ao imperialismo americano e à dependência econômica . Devemos muito a eles na resistência ao autoritarismo e ao militarismo. A salvaguarda dos interesses nacionais se apresentava como uma alternativa coerente ao entreguismo de nossas riquezas naturais que deveriam ser mantidas entre nós e, assim, promover o desenvolvimento do país. Ora, defender o nosso patrimônio (histórico, cultural) e/ou nosso potencial hídrico, energético, enfim, sempre foi o projeto político de nação de nossa esquerda (às vezes em tons mais brandos, às vezes em tons mais aguerridos, se se considera a maior ou menor proximidade em relação à direita do país). E aqui tenho que dizer que deve haver uma distinção entre o nacionalismo de direita – que é neoliberal e, portanto, alinhado ao capital estrangeiro – e o “Projeto Brasil" – que recentemente foi vítima de um golpe jurídico-midiático e civil-militar também por parte de nossa elite que – na expressão do título do livro de Jessé Sousa – é “A Elite do Atraso", pois frequentemente se vale dos interesses patrimonialistas da classe média para se perpetuar no poder através de expedientes políticos canalhas que põem em risco a nossa democracia. Não me incomoda que a esquerda brasileira pense e elabore um projeto de nação que faça frente ao entreguismo de uma direita que é nacionalista na medida injusta de seus interesses perversos. Aliás, repensar o Brasil numa perspectiva da redistribuição da renda, da reforma agrária, do incentivo à agricultura familiar, da criação de parques industriais com a participação dos trabalhadores no lucro e geração de novos empregos, no fortalecimento do comércio, na ampliação do terceiro setor e do turismo, considerando as políticas de inclusão das minorias e grupos sociais em situação de vulnerabilidades, a necessidade de se implementar instrumentos jurídicos de reparação histórica dos direitos fundamentais de povos e populações tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos), ofertando-se saúde pública universal e educação escolar básica de qualidade e Universidade para todos e todas que precisam ter sua dignidade garantida e sua cidadania restituída, tudo isso, é obrigação da esquerda; pois, somente assim, se garantirá um país politicamente democrático, institucionalmente republicano, culturalmente diverso e verdadeiramente justo e inclusivo. Logo, não é isso que me incomoda na esquerda. Para mim, o mal-estar e o paradoxo estão nos acordos para se chegar ao poder e ali se manter – acordos com uma direita gatuna e velhaca que não se constrange em mudar de lado; acordos com setores moralistas e conservadores que sempre negociam benesses e que não se importam verdadeiramente com o outro e que odeiam e perseguem as minorias e a diferença; acordos com uma esquerda também elitista e que persegue cargos e com toda sorte de gente dessa “estirpe" que não lê, não estuda, não se qualifica, não tem experiência de militância e, tampouco, contato direto com o povo e a população para, realmente, tomar ciência das demandas e necessidades dos que passam necessidade, dos que moram de aluguel em áreas distantes dos centros urbanos, dos que não têm saneamento, transporte, segurança pública e lazer.

XI. Gigio Ferreira - Por que o determinismo de uma certa forma acaba gerando ou promovendo preconceitos?

Wladirson Cardoso - Acompanhe meu pensamento: se uma opinião – a despeito de qualquer compromisso com a verdade, com a realidade e com os fatos – se estabelece como proposição explicativa supostamente eficaz quanto ao resultado de sua constatação no que respeita à ocorrência dos fenômenos naturais e sociais, ela certamente não constitui um erro, mas sim uma mentira. O erro é um engano no juízo; ao passo que a mentira é uma falha intencionalmente elaborada para iludir e enganar. Geralmente as opiniões são enganosas, justamente porque prescindem de fundamento e se ressentem com questionamentos. Por isso os gregos antigos nos primórdios da Filosofia estabeleciam uma distinção entre dóxa (opinião) e episteme (conhecimento). A primeira é subjetiva e idiossincrática; a segunda problematizadora e analítica. A opinião, então, sempre esteve no des-nível do preconceito, mas a episteme não, pois sempre perquiriu o verdadeiro. Entre a dóxa e a episteme, me diga qual tem mais poder de seduzir como canto de sereia e por que?... Com toda certeza é a opinião (dóxa), pois ela mobiliza hábitos, costumes, tradições e sentimentos de identificação e pertencimento com um certo “estado natural" das coisas – isso porque os esquemas de apreensão e repetição das sentenças na opinião são esquemas deterministas arraigados em pré-juízos e pré-noções. Portanto, o determinismo não gera preconceitos; ele os reitera e reproduz. É possível dizer que o determinismo está em oposição e confronto com a liberdade de pensamento, a liberdade de ação e a liberdade de criação. Quando alguém preconiza sua liberdade de opinião como um direito, não espera a dialética, a tensão e a superação, pois a defesa que faz da liberdade é tão somente para se impor de maneira a não sofrer contrariedades e permanecer preso à sua convicção. Já as Artes, a Justiça e a Ciência só avançam provocadas e provocando. Por isso me assusta a figura de sujeitos que se dizem livre pensadores, ou de humanistas e artistas autoproclamando-se conservadores. O conservadorismo frequentemente está pari passu com o determinismo, seja ele cosmológico, natural, biológico, genético ou geográfico. Ademais, o determinismo, enquanto crença de opinião segundo a qual as coisas ocorrem mediante uma relação de origem irrefutável e se manifestam em decorrência disso, está na raiz do positivismo e do evolucionismo sociológico que justificou de modo pseudocientífico as práticas geopolíticas do imperialismo e do neocolonialismo europeu a partir do século XIX, cujo produto mais criminoso foi, sem dúvida alguma, os regimes totalitários nazifascistas e suas muitas versões entre diversos países do mundo. Em termos epistemológicos, o determinismo é esquematicamente limitado e estruturalmente mecanicista; em termos ético-políticos o determinismo é um obstáculo ao humanismo e à realização dos ideais dos Direitos Humanos e da Civilização e, finalmente, em termos existenciais ele é um impedimento ao exercício pleno da liberdade. Expressões preconceituosas como: “todo brasileiro é malandro", “índio é preguiçoso”, “negro é bom de trabalho", “menino veste azul e menina veste rosa", “bandido bom é bandido morto" e “professores e artistas são dogradictos" – são todas expressões abusivas, agressivas e discriminatória que carregam em si um apanágio determinístico simplório de pensamento rasteiro, violento e fascista. Por meio de ato falho, o determinismo requer um valor de conhecimento, que não possui e nem pode possuir. O determinismo não se orienta pelos critérios da razão e da verdade. E, lamentavelmente, tenho observado que, no Brasil, ele tem reforçado a ignorância e a própria dissolução de nossa sociedade.

XII. Gigio Ferreira - Até que ponto o contexto urbano é a centelha das indignações e do cogito concomitantemente falando?

Wladirson Cardoso - Não necessitamos exclusivamente da Pólos urbana para intuirmos as contradições e mazelas da vida humana e/ou para elevarmos o pensamento acima da imediaticidade das sentenças determinísticas do senso comum. A relação entre capital e interior, entre cidade e campo, centro e periferia ou zonas de circulação e áreas de restrição é relativa, complexa e contraditória. O dispositivo de análise aqui não pode ser a vida urbana em si – o que seria uma superestimação da “figura do citadino” que, por sua vez, é uma ficção burguesa presente em tratados políticos, análises sociológicas e até em romances da Literatura. O ponto chave da análise neste aspecto é a problematização dos graus de liberdade e a possibilidade de exercício individual e coletivo da mesma em espaços públicos. Existem grandes centros urbanos no Brasil e no mundo que são desenvolvidos e que, porém, estão fechados à emergência e expressão de novas ideias, novas formas de performatização dos desejos e dos corpos e de criação artística de uma forma potente e impactante. Em sociedades e grupos tradicionais ou fechados, talvez os meios e recursos para a indignação e o confronto encontrem formas de resistência e reação no anonimato e na clandestinidade. Ao contrário do que se passa em contextos sociais abertos e pós-tradicionais, nos quais talvez a crítica e a individualidade se percam no movimento frenético do ir e vir do cotidiano moderno, cadenciado pelo tempo do relógio e atravessado pelo imperativo da produtividade. Tanto em uma formação social, quanto em outra, a indignação é possível e a mobilização coletiva o termômetro que medirá o grau de empatia quanto ao outro e à mobilização em torno de uma causa que abrirá perspectivas para algumas mudanças. Foi isso que assistimos àqueles movimentos de contestação aos arbítrios das ditaduras e práticas de corrupção e tortura ocorridos no ano de 2010 em países do Norte da África e Oriente Médio que ficaram conhecidos como “Primavera Árabe”. Um simulacro de revolta midiaticamente manipulada e conduzida por jovens paulistanos de classe média se utilizou da indignação latente quanto à situação política do Brasil, resultando nas passeatas de 2013, que, embora pretensamente pacíficas e apartidárias, provocaram o Impeachment da Presidente Dilma em 2016 – eu contesto aqui o movimento; no entanto, apesar de manipulado e instrumentalizado, o sentimento de indignação esteve lá e não deixará de ser legítimo. Algo de indignação e revolta tomou conta da França, quando os Gilet Jaune marcharam sobre as ruas de Paris, quebrando vitrines, agências bancárias e monumentos históricos, interditando grandes e famosas avenidas e interrompendo a circulação dos trens de uma das maiores linhas de metrô do mundo, em razão do aumento de impostos e da carga tributária propostos pelas reformas de Macron. A reação indignada ao racismo estrutural das sociedades americana e brasileira, traduzido em violência policial, cujo critério de atuação e repressão parece estar na dependência da tonalidade da cor da pele de um indivíduo, é a origem do movimento Black Lives Metter... Para mim, então, não é o lugar em que se está no espaço que definirá a minha indignação e revolta, mas aquele sentimento de alteridade quando sou confrontado pela dor e pelo sofrimento do outro. Com as redes sociais, tenho na palma da minha mão a imagem das atrocidades cometidas por soldados americanos em países mulçumanos, a imagem da fome das crianças africanas, a imagem dos assassinatos de jovens em comunidades e favelas do Rio de Janeiro, as imagens chocantes do extermínio transfóbico de Dandara no bairro Bom Jardim em Fortaleza/Ceará e os incêndios das casas de madeira dos moradores carentes de bairros pobres de Belém do Pará. Imagens de dor, sofrimento e morte ao alcance das mãos – se eu não me indignar e revoltar, terei me habituado à crueldade e à barbárie, como quando, por exemplo, o presidente deste país zomba do luto das pessoas que perderam parentes e amigos próximos por conta do COVID-19 nesse ano de 2020...

XIII. Gigio Ferreira - Estética vem de estesia... Que quer dizer: sensibilidade. Ela é a aptidão para compreender as sensações causadas pela percepção do belo. Na sua opinião, a beleza precisa ter ética para alcançar a plenitude da práxis e da retórica no humus? Por quê?

Wladirson Cardoso - Eu posso avaliar a arte pela produção da forma com objetivo de atingir um determinado efeito de beleza; porém, a arte para ser o que é, isto é, a arte para ser arte – em si, por si, para si e para os outros – não precisa, necessariamente, reproduzir a realidade, corresponder aos propósitos do Estado, servir às leis do mercado e agradar a religiosos e moralistas. Pelo contrário, se a arte estiver circunscrita privativamente a uma dessas determinações, ela perde sua força criativa, sua verossimilhança, sua autenticidade e seu poder catártico e mobilizador. Poetas e filósofos se comunicam e dialogam em um mesmo nível de compreensão e expressão da linguagem e da vida. No entanto, o filósofo torna sua atividade reflexiva uma experiência universal; ao passo que o poeta – mediante seu ofício – "penetra surdamente no reino das palavras" e “sofre, lima, teima e rima". Veja bem: as referências que fiz aqui a Drummond e a Bilac não significam apenas que eu os conheço e que tenho seus poemas decorados pelo uso de minha memória – eu nem sequer os declamei! As referências a um e outro significam que ambos – elidindo-se, aqui, os cânones e pressupostos do Parnasianismo e do Modernismo – nos ensinam que o poeta nos abre horizontes de percepção antes não imaginados e que nem precisam ter sido vivenciadas pelo mesmo propriamente – afinal, o poeta “é um fingidor"!... Uma edificação ou um prédio podem ser mais do que uma construção de pedra e cal, se aludirem a uma concepção de moradia ou sociabilidade de um determinado tempo. Um passeio público ou uma praça certamente remetem a uma percepção estética, tão logo permitam uma relação não usual dos passantes da cidade com o espaço do entorno. Uma escultura sempre será mais que uma estátua, quando fundamentalmente romper com os limites do corpo – seja na representação e apresentação do esculpido; seja na relação de criatividade do escultor. Os autorretratos de artistas como, por exemplo, Rembrandt e Van Gogh, são próximos quanto ao cenho fechado e circunspecto de seus modelos e, respectivamente, diferentes, não só quanto às suas fisionomias; pois, são fundamentalmente quanto à paleta de cores e ao jogo de claro/escuro que nos dão o plano de fundo e o plano frontal. Em ambos os casos, apreciamos a imagem de homens visivelmente angustiados pela busca da melhor expressão de suas percepções de si mesmos – percepção de si e do mundo que tocam de maneira semelhante, acredito eu, aos grandes compositores de música, quer sejam elas clássicas, quer sejam elas populares. A tônica desta reflexão é, portanto, antes de mais nada, um alerta para a importância da educação artística e, primordialmente, para a educação dos sentidos. Não estou demandando que se ensine apenas história da arte – isso já se faz [e de modo precário, alienado, descontextualizado e sem tangenciar a vida dos sujeitos naquilo que lhes importa de maneira mais imediata quando o que importa é a sobrevivência. Estou falando de acesso livre e democrático a prédios históricos, a museus e suas coleções, a teatros e a livros de contos, romances e poesias. Porque sim, a arte pode servir ao Estado – como os retratos de Luís XIV e de Napoleão III no Musée du Louvre em Paris – e, ainda assim ser arte. Da mesma maneira Andy Warhol, os grafites do Kobra e as fotografias e instalações de Vik Muniz que, por sua vez, são consumidas de diversas maneiras, digo, pela moda, pelos transeuntes ou motoristas de veículos em grandes metrópoles ou em salões de exposição da UNESCO na França por ocasião de encontros internacionais de Filosofia e Direitos Humanos. Na medida em que a arte nos auxilia a perceber, sentir e interpretar o mundo, ela nos transforma e transforma o mundo. Quem há de permanecer o mesmo diante da exposição das obras de Da Vinci reunidas por ocasião do aniversário de 500 anos da morte do pintor? Ou, ainda, quem há de permanecer o mesmo diante dos quadros de um Tiago Martins de Melo? Ou das xilogravuras de um J. Borges, das cenas pintadas por uma Maria Auxiliadora ou de uma tela fantástica e vibrante de um Francisco Graciano? Ora, como não deixar crescer a chama da utopia revolucionária ao assistir ao “Encouraçado Potemkin", de Serguei Eisenstein ou mergulhar nos processos de reação e residência comunitária e popular do interior do Nordeste brasileiro como em “Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles?... Todavia, é ao artista que devemos ir para lhe perguntar acerca de seu processo criativo, para não supormos intenções e situações que não correspondem àquilo que se quis expressar. Porém, é justamente aqui que se observa o poder e a independência da arte: quando, portanto, a obra toma a criação e alça um voo livre para além do papel, do material utilizado, do quadro, etc. Por isso, é importante que a arte tenha engajamento, mas é imprescindível que ela permita sonhar e realizar em um outro plano de relação do homem com o mundo aquilo que os imperativos sociais reprimem e não permitem – daí a nudez e a nossa dimensão erótica encontraram solo fértil neste campo, possibilitando-nos até outras discussões para além da arte, precisamente como deve ser, no que importa às questões de gênero e sexualidade.

XIV. Gigio Ferreira - No livro 18 do Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx, Herbert Marcuse diz em seu prólogo: “A análise que Marx faz do processo de evolução da Revolução de 1848 para o domínio autoritário de Luís Bonaparte antecipa a dinâmica da sociedade burguesa tardia: a liquidação do seu período liberal que se consuma em razão da sua própria estrutura. A República Parlamentarista se transforma num aparato político-militar encabeçado por um líder “carismático” que tira das mãos da burguesia as decisões que essa classe não consegue mais tomar e executar por suas próprias forças. E nessa fase, o movimento socialista, o proletariado, sai de cena.”.

Estamos verificando a mesma transição no Brasil. Na sua opinião a farsa é mais terrível do que a tragédia? Por quê?

Wladirson Cardoso - E olha que o governo popular do Partido dos Trabalhadores, com seus erros e acertos, nem foi uma Comuna à semelhança daquela de Paris. O que me espanta no Brasil é o “cada um por si" e o “salve-se quem puder" das relações que têm um aspecto superficialmente cordial mas que encobre profundos interesses egoísticos, quer dos que querem se dar bem, quer os que querem manter seu status quo. Se se considerar que o elemento característico da farsa é o absurdo inesperado e risível e o da tragédia, no final das contas, é a morte, o que está ocorrendo neste país é um verdadeiro desmonte das instituições democráticas, dos valores republicanos, da segurança jurídica e dos direitos fundamentais, principalmente o direito à vida, tudo isso orquestrado pelos verdadeiros dono do poder, que, como sempre, se utilizam da fraqueza de caráter da classe média, da credulidade dos pobres e da ignorância generalizada. Os comuns que riram com o Golpe de 2016 não são os que estão rindo por último, porque no cálculo de quem se deve deixar viver e de quem se deve deixar morrer – assim se faz política de Estado hoje em dia e sempre! –, eles não estão na vantagem. Temos um protótipo maldito de ditador que é politicamente acéfalo e governa para uma turba cujo perfil psicológico deveria ser melhor estudado, porque, se se avaliar a maneira como os asseclas defendem seu modelo, não é possível que não haja espelhamento nisso. O que consigo dizer com um pouco mais de segurança quanto à essa tragicomédia perversa que se nos abateu é que a maneira como o governo dos ricos tratou a população durante a pandemia de COVID-19 e o descaso do mesmo com relação às queimadas na Amazônia, no Pantanal e no Serrado evidenciam um altíssimo grau de crueldade que está no mesmo nível do sadismo da criança que tortura e mata seu bicho de estimação. Nós nos tornamos uma vergonha para nós mesmos – não nos percebemos, negamos, culpamos sempre os outros, transferimos responsabilidades e sublimamos da pior maneira nossos sonhos. Qualquer semelhança com o fim da Comuna de Paris ou com a emergência do nazismo no entre guerras (observando-se as devidas proporções), auxilia-nos a pensar no quanto não devemos descuidar da análise crítica e da suspeita quanto ao otimismo das conquistas do povo.

XV. Gigio Ferreira - Platão como idealista não quis a presença dos poetas em sua Res-Pública. Até que ponto o Éthos dos poetas dionisíacos consegue através de efeito e causa, um certo estado de embriaguez e torpor como ameaça real aos projetos políticos de nação? Por quê?

Wladirson Cardoso - Há uma questão de fundo nessa pergunta que deve ser posta em debate: quem chama Platão de idealista somos nós. Ele mesmo não se pensa e nem se define como tal. Está claro, porém, que – dos escritos da juventude até o texto de As Leis – ele pressupõe a verdade ontológica das ideias como sendo a realidade mesma das coisas. E, na concepção dele, como quem conhece a verdade não erra, o mundo sensível, isto é, o mundo das coisas passageiras e transitórias – fundado na sensação que, equivocadamente conduziria a imaginação e ludibriaria a razão – jamais pode servir de critério para conhecer epistemologicamente, agir eticamente e avaliar esteticamente o mundo natural e a vida na pólis, visto que não deve ser a sensação a orientar o conhecimento, as noções de Bem e Mal, a Justiça e a Beleza. É, portanto, supondo um Estado filosoficamente consolidado que Platão opera a passagem do homem comum para o sábio governante, cuja formação e educação deveriam transigir do corpo às abstrações ou empírico/imediato ao necessário e universal. Para tanto, seria preciso disciplinar a imaginação pelos critérios de identidade e não contradição da razão e tornar o poeta inspirado em um poeta consciente (de seu papel político neste contexto) – convidando-se o “fazedor de mitos" a se retirar da República. O projeto político de Platão está de pleno acordo com a ideia de uma Cidade-Estado perfeita, equilibrada, harmônica, justa e bela; mas a custa da estratificação das classe sociais, da supressão dos desejos individuais e da instauração de uma ordem moral correta e inquebrantável – não à toa serviu de modelo para a “Cidade de Deus", de Santo Agostinho, que, com muita maestria e retórica, instrumentalizou e “converteu" o sábio grego, no sentido de adequá-lo, conceitualmente, à Teologia Católica no alvorecer da cristandade. Ora, se o projeto de Platão é moralista e se tornou, através da Patrística, uma espécie de arauto da doutrina da Igreja antes mesmo de Cristo – porque assim o Catolicismo encontraria uma fundamentação digna para si; conclui-se, destarte, à esteira de Nietzsche, que o filósofo antigo, na metáfora histórica de seu mestre Sócrates, acha-se na origem da decadência do espírito helênico que, por sua vez, tinha na Tragédia uma forma prática de expressão da vida como uma tensão cósmica quase absolutamente irreconciliável entre natureza e cultura, determinismo e liberdade. A cisão entre corpo e alma (espírito, razão) perpetrada por Platão e sequenciada ao longo dos sistemas de pensamento Medieval e Moderno chega até nós como um produto discursivo de um saber-poder fincado na noção de verdade cuja dupla dimensão epistemológica e moral deve se exprimir em todos os campos da existência e experiência humana de forma apolínea, positivista e cientificista. O dionisíaco como um sátiro da verdade, um irreverente moral e um iconoclasta de cânones e modelos estéticos dificilmente terá nesse contexto um lugar que não seja o da fricção com os sabres-podres constituídos e estabelecidos, principalmente se se localizar no interior de um Estado ignorante, avesso às liberdades e que joga – playing the game – o jogo do fascismo.

XVI. Gigio Ferreira - O eixo de muitas pesquisas de Foucault está no problema do poder e não no problema do saber. De certa forma alguns libertários marxistas acabaram invariavelmente nos braços do trotskismo. Das próprias discussões acerca dessas pesquisas em diversos campos podemos inferir que a Filosofia Moderna é uma (Tour de Force) foucaultiana?

Wladirson Cardoso - Eu temo em frustrar os revolucionários internacionalistas, mas não saberei estabelecer uma relação entre Trotsky e Foucault. Não consigo vislumbrar nem zonas próximas e, tampouco, divergências radicais que colocariam ambos em um campo heurístico de disputas e tensões. O que posso dizer, em primeiro lugar, é que, para alguns marxistas ortodoxos a expressão “marxismo libertário” soa como uma contradição em termos, porque, conceitualmente, a noção de “libertário” está associada a uma outra corrente de pensamento e ação que, por sua vez, diverge doutrinariamente do programa revolucionário planificador, burocrático e estatal de uma possível revolução socialista que seria conduzida por lideranças populares e dirigentes de uma esquerda partidária “esclarecida" e comprometida com a transformação ampla e geral das estruturas de poder e de produção do mundo capitalista. Em seguida, de acordo com alguns intérpretes, Foucault penderia para o Liberalismo Político, na medida em que critica duramente o poder centralizador do Estado – ora, Foucault se afastou do Partido Comunista Francês já na década de 1950; mas também não sei em que medida isso realmente importa para avaliar se sua Filosofia está mais à direita, ou mais próxima do anarquismo (não no sentido vulgar, mas no sentido potencialmente antidisciplinador). O que Foucault realiza, de fato (e nos ensina a fazer) – desde “História da Loucura na Idade Clássica” até os volumes de “História da Sexualidade” – é uma analítica das estratégias do discurso e das tecnologias do poder disseminadas em nossas relações cotidianas e codificada em linguagem que implica saberes disciplinares específicos que são aplicados no controle dos corpos e das populações. Neste aspecto, tenho a compreensão de que Foucault opera metodologicamente uma (arqueo-genealogia) de saberes e práticas, em termos de uma crítica do valor de certeza e verdade e do valor moral da correção e normalidade, os quais orientam tanto a ciência moderna, quanto os comportamentos e ações naturalizados, que se acham implicados dos jogos de poder. Eu peço licença, então, para lhe corrigir: não existe saber que não esteja nas raias de influência do poder e, também, não existe poder que não esteja em relação com o saber. Pelas minhas leituras, acredito que para Foucault importa muito mais implodir a máquina dos regimes políticos que restringem as liberdades a que necessariamente idealizar uma sociedade futura dentro ou fora do registro do Estado. Acredito que se quisermos definir o pensamento político de Michel Foucault em poucas palavras, devemos considerá-lo como a possibilidade de um exercício experimental e artistificado de um certo tipo de vida não - fascista – lembrando, portanto, que os regimes totalitários existem à direita e à esquerda e que o apego pelo poder e a barbárie habitam em nós...

XVII.  Gigio Ferreira - Em 1952 o brilhante hegeliano Georg Lukács afirmou que Nietzsche fora o fundador do irracionalismo do período imperialista. Anos depois, em 1961, num extenso e profundo estudo, Heidegger publicou (Sein und Zeite), traduzido aqui como O ser e o Tempo. Nessa obra, Heidegger optou por examinar o pensamento nietzscheano sob o prisma da (Ontologia Existencial). E assim foi possível acomodar a expressão (Racionalização do Irracional). E isso acabou adentrando na perspectiva da (Lebensphilosophie), ou seja, Filosofia de Vida. Pergunto, as construções ideológicas de um texto encontram-se na base da análise do discurso? Por quê?

Wladirson Cardoso - Existem diversas maneiras de se ler e interpretar um texto. Em minhas aulas de Filosofia da Linguagem e Introdução à Hermenêutica, sempre advirto que o estilo e a elegância são importantes; no entanto, isolados, não nos bastam para mergulhar na cadeia de argumentos e na potência viva do registro. Por certo que as análises morfológicas e sintáticas conferem suporte interpretativo; mas por si só também não são suficientes para se compreender um texto; assim como a análise da métrica de um poema remeteria à forma e não ao sentido em geral. O que um escritor considera relevante em sua obra em prefácios, posfácios e introduções é digno de atenção, tanto quanto o que ele afirma de si em cartas, declarações e entrevistas. Porém, os diálogos que estabelece com autores contemporâneos e/ou clássicos direta ou indiretamente, a maneira como os mobiliza, como os reafirma ou nega e, principalmente, como os supera é o que, de fato, assegura um ingresso no reino da autoria – pois, o óbvio ou o mais do mesmo não nos torna nem filósofos e nem poetas. É claro que é importante investigar os fundamentos dos argumentos de um texto. E isso deverá ser buscado na intenção e propósito do autor, na resposta que oferece às questões de forma e conteúdo e às que também oferece às questões teórica e conceituais – já que quem interpreta um texto filosófico, de certa forma faz Filosofia; do mesmo modo que quem faz poema está no seio da Poesia. Dito isto, para interpretar um texto e conhecer seus meandros, entrelinhas e comprometimentos políticos, deve-se colocar o autor na sua relação com a História e jamais deixar de contextualizá-lo, a fim de que se evitem leituras fraturadas e interpretações parciais e limitadas – porque, efetivamente falando, a interpretação é pessoal, mas ela ganha em consistência e qualidade quanto mais leitura de mundo e de texto se tem e quanto mais experiência de vida se adquire.

VIII. Gigio Ferreira - Agora uma pergunta sobre nossas líricas levezas. Belém do Pará com esse clima quente e úmido torna quase indispensável o uso do ar-condicionado. Isso ajuda um filósofo a pensar suas zonas de conforto e imunidade... Ou a ambiência na Ágoras é uma espécie de (Pièce de Résistance) do contexto Pólis ressignificada em evolução convergente?  

Wladirson Cardoso - Não tenho problema algum em habitar em uma cidade amazônica que fica a alguns quilômetros da Linha do Equador. Belém é quente e úmida – tal qual um corpo excitado que se banha em rio e se perfuma de mata para uma cópula sensual – aliás, nós somos sensuais: misteriosos, enigmáticos, lascivos e devotos; gostamos do sagrado, na mesma medida que gostamos do profano. E está tudo bem! Ainda somos uma cidade com espírito colonial – prova disso é que nos referimos a nós mesmos como se fossemos uma fortaleza ou Cidade-Estado; pois nos sentimos no centro do mundo. Em termos de Weltauschauungen estamos entre o “Drama Barroco" e os ares de modernidade do “Neoclassissismo”. Isto talvez seja interessante na arquitetura dos lugares antigos, mas na política é um desastre e, de certa forma, contribui para uma visão romantizada de uma “Belém da Memória”, de uma “Belém do Já Teve" que não consegue se encarar de frente nas suas desgraças cotidianas... Belém tem, desta feita, exatamente o que necessito para elevar meu pensamento dos costumes nativos a uma hipostasia de intuições e suposições que me permitem o filosofar. Há em nossa capital, portanto, um vasto campo de pesquisa e investigação etnológica a se observar e que, para mim, serve de material empírico não somente para uma Antropologia Cultural, mas também para uma crítica sincera e uma reflexão potente no sentido da superação de nosso bairrismo e falso moralismo, traduzidos em clichês insuportáveis que desconhecem outras referências nacionais e estrangeiras e que acredita ser “Paris n'América". Falo assim, com um tom explosivo, porque conheço Belém – dos galpões às “janelas para o rio", da pista no asfalto às “torres", do Tapanã até a Domingos Marreiros, ou seja, conheço Belém a partir do ponto de vista de quem está dentro e se importa. No entanto, eu também me permito estranhar nossa “urbanidade", nossa “municipalidade”, nossa suposta centralidade – principalmente quando estou fora, ou no meu apartamento em Fortaleza, ou nos períodos que eu viajo para a Europa para estudar, analisar e comparar o que somos e poderíamos ser, caso nos dispuséssemos a entender que Cultura implica em Educação, Saúde, Bem-Estar, Lazer e garantia e proteção de direitos. Todavia, uma parte significativa de nossa pseudoelite não está interessada nisso e se divide entre Salinas e Miami – sem nenhum tipo de “glamour"... O ar-condicionado me serve para tentar deitar a cabeça no travesseiro e dormir nas noites quentes de nosso verão. Entretanto, eu percebo Belém, eu observo Belém, eu sinto Belém, eu represento e reflito Belém. Quer dizer, eu percebo, observo, sinto, represento e reflito o próprio estado do Pará, o qual conheço de ponta a ponta – do Marajó a Oriximiná, de Marabá a Conceição do Araguaia. Lembro com emoção e orgulho de haver ministrado uma aula sobre “pesquisa, conhecimento e liberdade" ao lado do túmulo da Irmã Dorothy Stang em Anapú. Então, como não ser cosmopolita e, ao mesmo tempo, eticamente comprometido com a Educação, a Justiça e os Direitos Humanos em uma realidade tão diversa e multicultural e, paradoxalmente, tão carente à semelhança da nossa?

XIX. Gigio Ferreira – Ao finalizarmos essa entrevista, gostaria de ouvir suas considerações finais. E que você também nos dissesse o que achou dessa iniciativa do Jornal Crescendo em parceria com a Revista Variações?

Wladirson Cardoso - Eu sei que tenho algo a dizer para o mundo a partir da Amazônia. Trilhando, retrospectivamente, minha formação e carreira acadêmica, posso afirmar, com muita gratidão, que esta foi a primeira vez que me deram a oportunidade de exprimir e discutir, de forma livre, minhas cismas e tensões. Foi um exercício sincero de um eu antimetafísico e não-transcendental para fora de um cano de metralhadora que lança seus projéteis com força e determinação. Ensaiei minhas respostas muito pouco preocupado com meu ex-professor de História da Filosofia e nenhum pouco interessado no que meus mestres cartesianos, kantianos, hegelianos e popperianos vão pensar – e quem são eles para me julgar? Apenas repetidores de frases... Hoje, tenho uma amizade e uma identificação declarada com o também filósofo e professor Ernani Chaves, que plantou em mim o interesse por Nietzsche e Foucault – desde a graduação até o doutorado –, mas que nunca me exigiu camisa de força e sempre respeitou o modo como movimento minhas aferições e inferições. Aqui consegui expor os traços principais de teoria e ação, de linguagem e experimentação, que me fazem requerer o título de filósofo que, certamente, não é apenas um título acadêmico para mim; e sim uma forma de vida que me impulsiona para dentro das questões do conhecimento, da ação e da apreciação estética da forma e do belo no interior de uma procura constante – não pela verdade em si (que nos escapa e só é atingida com um esforço conjunto e colaborativo ao longo da história dos sistemas de pensamento); e sim pela sabedoria, inclusive ou principalmente de mim mesmo, como na música de Milton Nascimento reconhecendo um “eu" que se encontra longe do próprio lugar: um “eu" caçador de caçador de mim... Em palavras conclusivas, isso significa que o procedimento metodológico que adoro vai da relação direta com a realidade à suspeita (do que é aparentemente óbvio); e, assim, transito da Filosofia às Ciências Humanas e nestas da Antropologia ao interesse pelo que inquieta e retira o espírito humano de sua letargia dogmática. Não sou necessariamente um otimista. Eu sou um sátiro viandante – que incomoda, desconcerta e confunde. Sou um estrangeiro em meus domínios: para filósofos eu sou “antropólogo"; para antropólogos, eu sou “filósofo". E, para mim... “Eu não sou eu, nem sou o outro, sou qualquer coisa se intermédio: pilar da ponte do tédio, que vai de mim para o outro.”.



Gigio Ferreira nasceu no dia 22 de junho de 1967, em Belém do Pará. Cursou Letras. Sua estreia se deu com a publicação da dramaturgia infantojuvenil, O gringo da Matinta (2014), em parceria com a escritora Miriam Daher, pela Editora Giostri-SP. Com exceção do livro O Palhaço de Arame Farpado (2016), poesia, pela Editora Penalux, as suas oito obras publicadas, foram pela Editora Giostri. Atualmente possui dezoito livros inéditos aguardando publicação.


curadoria e edição de marcos samuel costa
Variações revista de literatura contemponea
2020

II edição

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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