Padecimento Abjeto - ficção de Daniel de Campos


(Paula Sampaio)


Elisa corre desesperadamente pela a Avenida Nazaré. 

Seu vestido estava rasgado, as botas pareciam ter adquirido vida própria e suplicavam uma parada; os pulmões se esvaziavam e se preenchiam num ritmo frenético; o coração gritava, porém, ela corria, corria e corria. 

Queria estar o mais distante possível dele. 

Estava ferida, havia um corte circular no seu pescoço, o sangue escorria da sua jugular para os seios, ensopando seu sutiã e o deixando pesado, suas costas doíam, mas ainda assim, galopava ao longo da avenida. 

A avenida estava praticamente deserta, apenas pessoas más estavam fora de suas casas naquele horário, ninguém era vítima às quatro da manhã. 

O seu corpo suava intensamente, expelia o álcool presente em sua corrente sanguínea, seus cabelos haviam sido raspados, os pequenos folículos de pelos arrancados, forçadamente pinicavam sua pele gosmenta, mais tarde se convenceria de que foi apenas um surto de estilo motivado pela embriaguez. 

Tropeça, o chão de Belém podia ser uma armadilha mortal para uma mulher em perigo; as raízes das mangueiras sobressaltavam o concreto formando protuberâncias, às quais ganhavam tamanhos de montanhas ao toque do pé cansado. 

Recompôs a postura e se manteve ainda mais veloz. 

Sua vagina latejava, um líquido viscoso esverdeado como pus era expelido por seu canal vaginal, o seu interior ardia, estava com a sensação de que um cacto havia sido introduzido nela e, seguidamente arrancado, diversas vezes; podia lembrar-se das próprias súplicas, para que aquilo se encerrasse.   

Suas pernas travam por um instante. 

Segura com as duas mãos as grades, percorrendo assim, o muro metálico da Praça Santuário. 

Lança um olhar dúbio para a Basílica. A melancolia e o ódio a invadem. Agora era uma criatura da noite, o sagrado não estava mais presente nela, sua carne apodrecera, sua alma escorreu pelo o ânus, enquanto as fezes saiam fervorosamente por conta do medo. 

Numa partícula de tempo ínfima, a chuva cai fortemente, e também inesperadamente encharcam as folhas das árvores. Lavando o sangue no corpo de Elisa. A água escorre com uma velocidade que a deixa aliviada. Aquela era a trégua do universo perante aquele momento. Suaviza o seu cansaço. Afasta um pouco sua angústia. Purifica a sua pele dos restos de seu desastre. 

Estava a poucos metros do seu apartamento. 

Menos de seiscentos metros separavam Elisa da calmaria. 

Despachar-se agora com a tonalidade de menor ferocidade. O esgotamento fez moradia. 

Desponta na fachada do prédio. O porteiro cochila com sua mandíbula escancarada e, a barba suja da saliva, qual escorre em cascata. 

Percorre dormente o corredor que leva ao elevador. As portas de aço maciço se abrem ao mínimo toque do botão. 

Diante disso, Elisa se encolhe. Seu abdômen parece estar sendo dilacerado. Os órgãos internos rompem-se, cada um tendo níveis de dores diferentes. Ossos estalando, curvam-se. Agora ela era um bolo de carne retorcido na frente de um aparelho que a levaria para o seu lugar seguro. A coisa ficava mais aguda. Ela grita desesperadamente, no entanto, ninguém a ouve. A culpa recente sobre seus tecidos, células e articulações. A certeza estava escancarada. Agora era uma mulher mordida. Estática e sem voz. Sem expressão. Apenas textos existencialistas falidos e mortíferos aos mínimos leitores. Elisa, findou-se como mulher.




Daniel de Campos, 20 anos, é um leitor assíduo desde a infância. Acadêmico de Direito, morador de uma cidade parcialmente pacata no interior do estado do Pará e apaixonado pelo o cinema cult indie. Seus autores favoritos vão de Elena Ferrante, Chimamanda Ngozi Adichie, Charles Dickens a Neil Gaiman.


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