A LITERATURA DO FIM DO MUNDO EM VARGAS LLOSA - por Nathan Sousa


A LITERATURA DO FIM DO MUNDO EM VARGAS LLOSA


Certo dia, o monumental Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, caiu nas mãos de outro gigante das letras da América Latina: Mario Vargas Llosa. O escritor peruano, figura fundamental do chamado boom da literatura latino-americana, empreendeu uma jornada pelo caminho trilhado por Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, na Guerra de Canudos. Figura central da obra de Euclides, Antônio Conselheiro percorre o sertão da Bahia. Desta empreitada nasceu a obra La Guerra del Fin del Mundo (1981). É sabido que a ficção tem a função de ajudar o real a se revelar, ao contrário do que pensam aqueles que relegam a função da literatura a mero agente secundário. Não me acanho diante das palavras, essas bailarinas que revelam a “alma” da realidade.

A Guerra de Canudos aconteceu entre os anos de 1896 e 1897. O evento se deu no começo da Primeira República. Tratava-se de um regime incompreendido pela população brasileira. A Guerra de Canudos, uma contra resposta ao Regime, acontecia em um Brasil que o Brasil não conhecia. Foi o próprio Vargas Llosa, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2010, quem usou de fina ironia na dedicatória de seu livro: “A Euclides da Cunha no outro mundo”. A figura messiânica de Conselheiro era tida por seus seguidores e ainda concebida por muita gente que habita aquela região, como uma espécie de santo e profeta. Um anti-herói a serviço do povo, contra os ideais de uma República incompreendida pelas massas. O romance de Varga Llosa se passa entre Salvador e Canudos. O Conselheiro trabalha como restaurador de templos católicos e de cemitérios pelo interior da Bahia.

Mario Vargas Llosa nasceu em Arequipa, Peru, no ano de 1936. O autor de La ciudad y los perros (1963) e de Conversación en La Catedral (1969), dois dos seus livros mais conhecidos, faz uma releitura crítica da História em La Guerra del Fin del Mundo (1981), ampliando o campo de ação da ficção através do traço dos personagens e do uso excessivo da intertextualidade. A República era a simbolização de uma utopia: o desejo de se ter um país sem desigualdades sociais, provenientes da fortuna monárquica que marcava o Brasil. Euclides traçou um perfil ensaístico, sistemático, científico, físico e psicológico de Canudos. Vargas Llosa explorou os meandros da Guerra através da ficção com seu lado subversivo, obscuro, radical. Admirado e odiando em várias partes do mundo (características típicas dos grandes escritores), Vargas Llosa apresenta o caráter subjetivo de um momento tão importante e tão esquecido da realidade brasileira, onde as contradições políticas, sociais e econômicas se acentuavam cada vez mais. Era a vez do trabalhador campesino, vitimado pela fome, pelo descaso e pela penúria de sua condição de vida, ser visto com olhos que, até então, ninguém viu. A resistência, em Canudos, dava voz e vez aos que eram considerados como bandidos a favor da “desordem” nacional. Uma afronta ao latifúndio. Antônio Conselheiro, restaurador de igrejas, teve na Igreja Católica seu principal denunciador. A adesão às seitas religiosas foi inevitável. Ele, que nunca pregou contra a Igreja Católica, mas que a defendeu como poucos em seu tempo.

Curiosamente, não há, na obra de Euclides, nenhum relato acerca do cordelismo, expressão popular iletrada, típica da região de Canudos, local marcado por dois elementos: o misticismo e o cangaço. Com esses subsídios, tem-se a esperança em um “salvador” à maneira de D. Sebastião, esvanecido na batalha de Alcácer-Quibir. E uma implícita louvação ao sertão, tal a Terra Prometida. Diante deste cenário, o caminho era o da rebeldia violenta. Ou melhor, pegando de empréstimo as palavras de Euclides da Cunha: da ação “no fio da espada”.

Como uma das figuras de destaque em La Guerra del Fin del Mundo tem-se o “Jornalista Míope”. Descrito apenas desta maneira, trata-se de um personagem que trabalhava para o periódico de propriedade do Barão de Canabrava. Um representante político com fortes ligações às oligarquias rurais. Deste matutino, passou a trabalhar para o Jornal de Notícias, que tinha como figura central o senhor Epaminondas Gonçalves, um representante republicano. Observa-se que Vargas Llosa desvia o enfoque da concepção local para uma ampliação de interesses ideológicos nacionais com o amparo da mídia formadora de opinião. A narrativa se dá em terceira pessoa, donde tem-se um agente que usa de fina ironia, emitindo juízos de valor em várias passagens do livro.

O Jornalista Míope segue Jurema, esposa de Rufino, e o Anão, um ex-integrante do Circo do Cigano e também exímio contador de histórias trovadorescas, dos tempos da Idade Média. Tais episódios transformam o ponto de vista do Jornalista Míope a respeito de Canudos. Ao perder seus óculos, ele passa a depender de Jurema e do Anão. Acontece a ligação entre a sua mente (analítica e perquiridora) e sua visão do mundo e do imaginário do homem do sertão, além do altruísmo e do sentimento de humanidade do mesmo. Canudos passa a ser apenas uma amostra do retrocesso do sertão. Ultrapassando as barreiras impostas pelo cientificismo de sua concepção da Guerra de Canudos, suas certezas começaram a desmoronar. Até o amor lhe flechou o peito na pessoa de Jurema. O tempo narrado oscila entre o anacronismo e o avanço acelerado.

Outro personagem aparece no livro como representante, digamos assim, da ciência: Galileo Gall, o frenólogo escocês. Este muda seu nome para tentar escapar das autoridades de várias partes do mundo, por ter cometido crimes em prol da revolução. Obcecado pelos ideais de liberdade, Gall acaba chegando a Canudos. É ele quem dá notícias do “fim do mundo” para o mundo. Suas ideias e suas ações fazem com que Epaminondas Gonçalves encomende sua morte. O mesmo Epaminondas Gonçalves, com quem Gall (o homem dos cabelos vermelhos, rebeldes, símbolo do socialismo e do comunismo) faz um acordo de transporte de armas para Canudos. 

Temos aí dois elementos defensores da bandeira da ruptura: Antônio Conselheiro (o barbudo de camisolão azul) e Galileu Gall. O primeiro, representante do medievalismo impregnado no Nordeste do país. O segundo, o mundo intelectualizado da costa marítima.

Quem conhece a rota até Canudos é Rufino, esposo de Jurema. Os dotes de Jurema violentam os desejos sexuais de Gall, que a estupra. Rufino sente sua honra também violentada e resolve matar o escocês (também a mulher). Antes, precisa dar uma surra na cara do frenólogo, símbolo máximo da falta de respeito para o sertanejo. Para legitimar a morte de sua mulher, Rufino recebe a autorização do Barão de Canabrava, em uma clara manifestação dos ideais feudais. O embate entre esses dois personagens demostra uma nítida relação entre o velho e o moderno; entre jagunços e republicanos. Ambos morrem. Não há vencedores. Morrem como muitos em Canudos e do mesmo motivo: a incompreensão.

Já o ponto de vista político fica ao encargo do Barão de Canabrava. Defensor fervoroso da República, o coronel Moreira César é outro personagem de destaque dentre tantos. O Barão era um fiel representante da elite agrária da Bahia. O que estava em jogo era a defesa da riqueza até então conquista pela elite. Mas Canudos adveio. Um de seus aliados era exatamente Moreira César. Gravemente ferido em um conflito contra Canudos, Moreira é levado para Calumbi, propriedade do Barão. No diálogo entre os dois fica claro um choque de opiniões. O radicalismo e a lucidez de Moreira afrontam o conservadorismo do Barão. Passado algum tempo, o Barão depara-se com sua esposa em estado de loucura. Neste momento, ele recebe a visita do Jornalista Míope que lhe pede emprego em seu jornal e uma ajuda para o tratamento da tuberculose que acometeu o Anão. A conversa entre os dois é longa e indutiva. Ao contrário de Euclides da Cunha, sob a tutela da ficção, Vargas Llosa busca outras vozes que não apenas a dos vencedores, e estas vozes manifestam uma reavaliação dos conceitos, principalmente da nossa condição humana. Trata-se de um período onde as tensões em volta da utopia da América, criada pelo colonizador europeu com as investidas ultramarinas, tomava corpo no interior da Bahia, o que demarca, claramente, uma herança do feudalismo.


O ideal de justiça e a esperança por um mundo melhor, tinham, nas pregações do Conselheiro, um viés apocalíptico. Deve-se destacar ainda dois nomes que exerceram forte liderança em Canudos: o ex-cangaceiro João Abade e o índio Pajeú. Canudos assemelha-se, em certos aspectos, a Macondo, de Cem Anos de Solidão, obra máxima de outro ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, o colombiano Gabriel García Márquez, no que diz respeito ao caráter missionário fantástico: passavam por lá curandeiros, mascates, romeiros, cartomantes e gente de todas as estirpes. O cenário era propício para ampliar o leque de incertezas a respeito do futuro de suas vidas: a proximidade da virada do século. Outros personagens de destaque são Maria Quadrado, que foi estuprada quatro vezes até tornar-se “Mãe dos homens” em Belo Monte, nome dado a Canudos, e Beatinho, o imitador de Antônio Conselheiro. Com a iminência da morte de Antônio Conselheiro, seus seguidores temiam a possibilidade de ficarem órfãos. Nota-se como sua figura mística conseguiu dar uma nova roupagem à concepção de pobreza. Pode-se dizer, a grosso modo, que ele “dignificou” as mazelas pelas quais os sertanejos passavam com frequência. A rebeldia de Conselho, ao queimar os editais, decretou sua guerra contra o poder opressor. Daí nasce sua utopia e a de seu povo. E a utopia nasce onde a realidade fracassa, ainda que a busca não seja por outro lugar para se viver, mas pelo mesmo, modificado, ainda que seja no fim do mundo.



Nathan Sousa

Poeta, ficcionista, ensaísta e dramaturgo

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