três poemas de Felipe Sanna
(caribé, reprodução)
orla de santos
ao meu lado
um sorriso criança
desponta em seu rosto
mesmo quando o tempo exige dureza
contrariar o que se espera
é próprio de quem vê
nos tempos de folia
no canto, à sombra
emergir a ruína
nas entrelinhas do cotidiano
no desespero de todos os náufragos
afogados em meu peito
o cigarro aceso
o disfarce ao falar sobre o tempo
sobre o sol escaldante
enquanto anoiteço
vendo comboios de olhares pesados
e mórbidos
invadirem a cidade
homens e mulheres kamikazes
reagem como crianças órfãs
aos feriados
na orla de santos
recém-libertos de orfanatos esquecidos no tempo
este é o nosso mundo
o que nos escapa tem mais valor
escorre pelos vãos
de grandes mãos molengas
lentas e podres
alguma vida?
ninguém tem nada a se orgulhar
não há mais nada a perder
o esclarecimento do todo
o que se apropria
é o que definha
isso é próprio de quem vê
além
na orla, flashes vem e vão
anos, acúmulos
memórias... lembranças...
pareço antever tsunamis
enquanto trago o sonho
ainda aceso na ponta do cigarro
queimo mais rápido com o vento
comporto-me mal por trás dos óculos
escuros
bundas delirantes balançam
para lá, para cá
eu sou um hipócrita em conflito...
ao meu lado, ela mira o horizonte
assiste à movimentação;
o mar imenso, o sol a pino rasgando olhares
derretendo o tempo
lentamente
o caminhar lisérgico entre guarda-sóis
o reconhecer-se em outros corpos
a menina que se joga na areia
é ela
a decifrar enigmas de outros tempos
pois tudo é tão cinza e concreto
na cidade
sabe-se bem...
jogue-se na areia
depois, no mar
mostre a que veio
você pode...
pequenos barquinhos parecem afundar no horizonte
silenciosa abstração no cachimbo de um marujo
a vida no navio pesqueiro
é como viver num buraco
epifanias e caricaturas
nos quiosques
comemoram absurdos
bêbados e seus filhotes
enterram-se na areia
de herança
ficou um modo peculiar de ver o mundo
simbólico até
enterram-se pais e filhos
antes mesmo do fim...
...
eis a dor que me parte ao meio
num grito primal que evoca ancestrais explorados nas lavouras
de café
roucos de antigos janeiros
moendo café e remoendo injúrias...
ver a pureza soterrada
por mãos brutas
e bestiais
num ímpeto sádico
e calculado
mãos que cumprem metas macabras
durante a semana
e me dizem
na hora do almoço
que a malícia é necessária
para existir pureza
qualquer relato de vida
virou pastiche, tempo perdido...
eis a nossa podridão escarrada
e agora?
continuar?
sair pela porta dos fundos?
"Temos que seguir adiante!"
é o que me dizem...
aos trancos e barrancos?
o que nos reduzia
virou nostalgia
saudosismo absurdo
reverência a um tempo hostil
fragmento de tempo
em que éramos outros...
nossos corpos estão exaustos
nossos pedaços
desprendem-se
esfolam-se
no asfalto ardente
derretendo solas de sapatos e sonhos juvenis
mas ainda é primavera
e ouço alguns cantos esparsos
de passarinhos isolados
nas gaiolas do mundo
o que criamos?
eis as sobras do que fomos...
é o que somos?
este amontoado de estranhezas
embrutecidas
que não enxergam as nuances
e nem sentem
a tempestade que se aproxima
ah, opróbrio destino...
...
os esquimós deixaram o alasca
para derreterem no sol de porto rico
rancores de antepassados canibais
abraçados em quartos de hotel de beira de estrada
abraços de cumplicidade servil
fecho o zíper e saio para o mundo
antes de partir
ouço antigos sonhos de consumo
na boca tola de um vizinho benquisto
que faz escambo de almas nas ruas do bairro
a infância escorre dos telhados
de antigos casarões
ainda fazem algum contraponto...
palhaços calados
selam
com os olhos
acordos de dívidas sem preço
no ponto de ônibus
elaboram novos enredos
explodem conhaques fluorescentes no estômago
punks carregam um sósia de adoniran barbosa
na av. são joão
corro de trombadinhas
entro numa viela, disfarço
cantores de tango
murmuram numa rua sem saída
em outras vidas
eu fui o rei do bixiga
bocejo para os doutos e suas mesas vazias
cheias de enfado num bar decadente
onde putas amontoadas de corpos passageiros
choram ao celular
depois do culto
e partem com pastores para o sex shop
índios correm do fogo
nalgum lugar
no coração da amazônia
eu sou um leopardo selvagem
eu sou aquele que nunca se entregou
é pela primeira sensação que ainda me rendo
e me perco
os gafanhotos nas lavouras
são protegidos por fazendeiros apocalípticos
pescoço vermelho e olhar rancoroso
continuam mais psicóticos do que nunca
armam seus netinhos ranhentos com pistolas automáticas
são os párias que estão redefinindo a vida
comprando novos laranjas
abrindo contas com cpfs de
semianalfabetos
lavando dinheiro sujo
em pomposas agências bancárias
na av. paulista
eu sou o funcionário do ano
posso chegar atrasado ao trabalho
abro centenas de contas fantasmas
e quer saber, tudo bem...
Felipe Sanna: paulistano. Graduado em História e pós-graduado em Gestão de
Negócios. Participou de antologias pelas editoras Patuá, Matarazzo e Futurama. Teve
poemas, crônicas e contos publicados em revistas literárias como Mallarmargens,
Variações, Ruído Manifesto, entre outras. Gosta de ouvir Sonic Youth enquanto lê os
contos de Gógol no metrô.
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