Paraquedistas - prosa poética de Magno Catão

 

(Walter Andrés Caicedo Mosquera)


Mainha, todos os dias você diz-me para fechar as portas, irrito-me nessa rotina de ferrolhos e chaves, paredes e interruptores pela casa de que ainda me esqueço a disposição. Mainha, você sempre me disse para fechar a casa, proteger-nos, imagine se algo acontece com as suas irmãs, diz-me, e essa é a minha função de filho, como os porteiros dos prédios de cidades verticais, como os guardas de castelos que só vemos em filmes ou em viagens planejadas de acordo com o nosso ritmo financeiro. Mainha, é estranho que me diga para fechar as portas, que tal lógica emparedada exista em nossos dias, que me ordene o trancar de madeiras e metais; não posso escusar-me de falar, desculpe este filho desnaturado. Porque me ponho dividido, arrebentado nesta casa que também construímos e levantamos. Porque foi você quem me abriu todas as portas e as janelas, e os telhados, e as portinhas da despensa no quintal, e a casinha do cachorro, e as tocas dos nossos sete coelhos. Porque foi você quem me abriu os livros, O menino do dedo verde, lembra, Tistu tocava o mundo, suas mãos eram de seiva, seu corpinho de menino era mágico, ele inventava florestas, as árvores destruíam as casas, rompiam os prédios e, veja você, ruíam as portas, portas, eram as portas que ele explodia. Foi você quem me deu esse livro, Mainha, no meu aniversário de oito anos, eu fiquei tão feliz, já sentia os objetos que me fariam voar pela casa encostado na cama. Você também me presenteou com um Atlas grande, branco e retangular, eu decorei todas as capitais da América do Sul, quis habitá-las todas e infelizmente conheci duas, mas quero acreditar que as outras são cidades abertas, de pátios grandes e praças com árvores bonitas, desculpe este filho que reclama, mas não desejo ver as portas. Feche, Magno, o portão, não sabe o que tem fora, quem está fora, o mundo é perigoso. E, no entanto, Mainha, como esquecer que foi você a primeira a me ensinar como ler as pessoas, seus andares; e que a nossa intuição abre mares, assim como as pessoas, e vice-versa, e sem nenhum cajado. Não portas que nos fechem, lembra, porque foi com você meu primeiro banho de mar, talvez por isso eu me sinta de água e ame a poeta Sophia de Mello, escute Bethânia cantando o Mar de Sophia, talvez por isso eu me derrame pelos cantos do quarto e deseje tanto conhecer o Oceano Índico e os mares coloridos da Ásia. Lembra, lembra que não existia nada mais que o azul de Camurupim, seu corpo flutuando enquanto me dizia: não há nada como banho de água salgada, meu filho. Como fechar as portas se nós dois escorregamos marítimos, se você, mais que eu, é uma força líquida na linha tênue entre o mar e o céu, se você rompe dores imensas apenas afastando um fio de cabelo atrás da orelha. Como cerrar a casa se as águas escorrem pelas frestas e os outros haverão de encontrar-nos de qualquer modo, os dois escoando pelas ruas, evaporando pelos becos, chovendo até o chão densa e belamente. Como esquecer, Mainha, as suas portas abertas, sempre abertas, seu jeito de peixe livre, quero dizer que o Atlântico não tem fechaduras, na esquina do continente o litoral é grande, vamos deixar as nossas travas abertas, jogar as chaves fora, mãe e filho, nadando num tempo em que não anoitece, a meia-noite não existe mais e não preciso fechar as portas. Elas estão abertas, Mainha, para nós dois, as portas sempre estarão abertas.


 


Paraquedistas

 

 

Mana, se a gente pegar na mão de Mena e voar sobre o serrote como a gente fazia com os bonecos atados às sacolas de plástico, paraquedas sonháticos, ornados de imensidão, adentrando nos arcos das estrelas, caminhos de libra, virgem e escorpião, Mana, se a gente pegar na mão de Mena e adejar as cascas das carambolas da calçada, na ladeira-montanha da nossa rua, Mena, se a gente pegar nos cachos de Mana e os paralelepípedos virarem espaçonaves e as casas dos vizinhos tornarem-se fábricas de picolés azuis-cor-do-céu e as bicicletas contornarem as parábolas do espaço como no filme ET, Mana e Mena, se a gente pular do ponto mais alto da curva mais alta do monte mais alto do sertão mais alto da nossa infância, Mana e Mena, se a gente esquecer os pontos que cegam hoje com a ausência do sol a pino e os açudes preencherem as nossas partes ocas, vazias de banhos de bica e chuvas brilhantes de mangueira, fogos de artifício aquáticos, Mana e Mena, se nossos rostos virarem um só, rostos tricolores, cores da diferença mais insólita e fraterna, Mana e Mena, se as nossas mãos escavarem os bonequinhos enterrados em baús e os seus paraquedas de tecnologia de ponta, se nossos dedos migrarem seus poros sobre nossos tesouros de caixinhas amadeiradas-Jumanji, se nossos sentidos perceberem os frascos de perfume de lavanda cor de limão, se a gente encher nossas lancheiras de doces, embarés e flores de jambo, Mana e Mena, se a gente ousar, eu aqui um jambeiro, você aí uma meia-noite, você ali uma roseira, ser crianças nos tempos das plantas, quintais, pedras, arranhões, vertigens, rios emergindo, açudes maiores que o Lago Ness, Mana e Mena, se a gente aceita as verdades bonitas do tempo: as vozes mais agudas e límpidas gritando “é hora de voltar pra casa, é a hora das cobras, entardeceu, Mainha chama”, Mana e Mena, se tudo for assim, se nós somos assim, os anos vão passar, mas a gente continuará voando?



 

***

 

 

Minha avó herdou do seu pai do Seridó modos diferentes de usar a cabeça. Órbitas distintas. Luzes de frequência desconhecida. Durante muito tempo, pensei que nunca poderia perceber as cores da minha avó, ora imaginava que eram de um laranja vibrante, capazes de estremecer as estruturas geológicas, e nenhum geólogo seria capaz de decifrar esse segredo, ora fantasiava um cinza sorumbático, que vinha mais amiúde e deitava-se profundamente nos seus olhos. Olhos que se balançavam numa rede gasta, às vezes puída. E, no entanto, nalguns lugares da casa surgiam olhos muito arqueados, transparecendo a força magnética das rochas desmesuradas e diziam “eu estou aqui e permaneço”. Eu vi a minha avó em diferentes figurinos, vestes, pompas variadas e palcos enfeitados. Um dia ela me disse que era a Rainha Elizabeth, e eu acreditei. Fiz-me seu par. Dançamos uma valsa no chão de cimento da sua casa e cantamos em coro. Outra vez me confessou, entre cochichos, seu novo nome: Maria não sei se uma santa, a virgem, não sei se uma amiga ou uma Maria nem cinza nem laranja. Talvez Maria, além de um nome, fosse também uma cor da minha avó. Mas não, não. Eu sempre estive enganado, embalado numa infância distante das verdadeiras nuances das órbitas e luzes desse universo desconhecido. Nem laranjas de epifania, nem cinzas melancólicos, nem a alcunha Maria trajando as ondas magnéticas de uma cor. Sua cor era seu próprio nome: Rosa, a cor que nem sempre podíamos tocar e experimentar. Por vezes tolhida, por vezes engalfinhada em disfarces injustos impossíveis de serem esmorecidos pela ciência médica. Quando olho o horizonte, este albergue de não apenas utopias, mas também de verdades antes escondidas, modificadas pelas incertezas dos homens, vem o arrebol, tons de rosa arrebatam as abóbadas do mundo e percebo: lá está, e sempre esteve, a cor da minha avó. Imponente. A cor que, embora em sestas exaustas, preparava todos os dias um café forte em xícaras de vidro bem dispostas. O café questionador das coisas que não foram para ser, mas que se rompem pelas beiradas, renegam lógicas de abandono e mantras de vazios. Este café, apenas uma parte do arrebol-rosa da minha avó. O reluzente das nuvens da minha avó. Os pássaros cônicos neste espaço do céu, o espaço da minha avó e de mais ninguém. A Rainha Elizabeth, a valsa no chão de cimento, o nome Maria e, no entanto, a cor Rosa da mãe de minha mãe flutuando sobre tudo e luzindo: eu estou aqui, dessa vez estou aqui. E o mundo todo, inteiriço e fatal, agora eu sei, sempre estará em doce e majestoso crepúsculo.

 

 



Magno Catão nasceu em 10 de novembro de 1993 em Natal (RN). É advogado e poeta. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Venceu em 2019 o Prêmio Othoniel Menezes de Poesia, realizado pelo Município do Natal; em 2020, foi segundo colocado no Prêmio Edgar “Blackout” Borges de ensaios acadêmicos com temática de igualdade racial. É apaixonado pela poesia potiguar, por Sophia de Mello Breyner Andresen e Toni Morrison. É autor do livro de poemas Convalescente (2017).

Walter Andrés Caicedo Mosqueranasce na Colômbia, no município do Puerto Tejada; departamento do Cauca. Faz estudos profissionais no instituto Departamental de Bellas Artes, Cali.

 



 Variações: revista de literatura contempôranea 

III Edição
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Edição de Marcos Samuel Costa
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2021

 

 

 


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