Paraquedistas - prosa poética de Magno Catão
Mainha, todos os dias você diz-me para fechar as portas, irrito-me nessa rotina de ferrolhos e chaves, paredes e interruptores pela casa de que ainda me esqueço a disposição. Mainha, você sempre me disse para fechar a casa, proteger-nos, imagine se algo acontece com as suas irmãs, diz-me, e essa é a minha função de filho, como os porteiros dos prédios de cidades verticais, como os guardas de castelos que só vemos em filmes ou em viagens planejadas de acordo com o nosso ritmo financeiro. Mainha, é estranho que me diga para fechar as portas, que tal lógica emparedada exista em nossos dias, que me ordene o trancar de madeiras e metais; não posso escusar-me de falar, desculpe este filho desnaturado. Porque me ponho dividido, arrebentado nesta casa que também construímos e levantamos. Porque foi você quem me abriu todas as portas e as janelas, e os telhados, e as portinhas da despensa no quintal, e a casinha do cachorro, e as tocas dos nossos sete coelhos. Porque foi você quem me abriu os livros, O menino do dedo verde, lembra, Tistu tocava o mundo, suas mãos eram de seiva, seu corpinho de menino era mágico, ele inventava florestas, as árvores destruíam as casas, rompiam os prédios e, veja só você, ruíam as portas, portas, eram as portas que ele explodia. Foi você quem me deu esse livro, Mainha, no meu aniversário de oito anos, eu fiquei tão feliz, já sentia os objetos que me fariam voar pela casa encostado na cama. Você também me presenteou com um Atlas grande, branco e retangular, eu decorei todas as capitais da América do Sul, quis habitá-las todas e infelizmente só conheci duas, mas quero acreditar que as outras são cidades abertas, de pátios grandes e praças com árvores bonitas, desculpe este filho que reclama, mas não desejo ver as portas. Feche, Magno, o portão, não sabe o que tem lá fora, quem está lá fora, o mundo é perigoso. E, no entanto, Mainha, como esquecer que foi você a primeira a me ensinar como ler as pessoas, seus andares; e que a nossa intuição abre mares, assim como as pessoas, e vice-versa, e sem nenhum cajado. Não há portas que nos fechem, lembra, porque foi com você meu primeiro banho de mar, talvez por isso eu me sinta de água e ame a poeta Sophia de Mello, escute Bethânia cantando o Mar de Sophia, talvez por isso eu me derrame pelos cantos do quarto e deseje tanto conhecer o Oceano Índico e os mares coloridos da Ásia. Lembra, lembra que não existia nada mais que o azul de Camurupim, seu corpo flutuando enquanto me dizia: não há nada como banho de água salgada, meu filho. Como fechar as portas se nós dois escorregamos marítimos, se você, mais que eu, é uma força líquida na linha tênue entre o mar e o céu, se você rompe dores imensas apenas afastando um fio de cabelo atrás da orelha. Como cerrar a casa se as águas escorrem pelas frestas e os outros haverão de encontrar-nos de qualquer modo, os dois escoando pelas ruas, evaporando pelos becos, chovendo até o chão densa e belamente. Como esquecer, Mainha, as suas portas abertas, sempre abertas, seu jeito de peixe livre, quero dizer que o Atlântico não tem fechaduras, na esquina do continente o litoral é grande, vamos deixar as nossas travas abertas, jogar as chaves fora, mãe e filho, nadando num tempo em que não anoitece, a meia-noite não existe mais e não preciso fechar as portas. Elas estão abertas, Mainha, para nós dois, as portas sempre estarão abertas.
Paraquedistas
Mana, se a gente pegar na mão de Mena e voar sobre o serrote
como a gente fazia com os
bonecos atados às sacolas de plástico, paraquedas sonháticos, ornados de
imensidão, adentrando nos arcos
das estrelas, caminhos
de libra, virgem
e escorpião, Mana, se a gente
pegar na mão de Mena e adejar as cascas
das carambolas da calçada, na ladeira-montanha
da nossa rua, Mena, se a gente pegar nos cachos de Mana e os paralelepípedos
virarem espaçonaves e as casas dos vizinhos tornarem-se fábricas de picolés
azuis-cor-do-céu e as bicicletas contornarem as parábolas do espaço como no
filme ET, Mana e Mena, se a gente pular do ponto mais alto da curva mais alta
do monte mais alto do sertão mais alto da nossa infância, Mana e Mena, se a
gente esquecer os pontos que cegam hoje com a ausência do sol a pino e os
açudes preencherem as nossas partes ocas, vazias de banhos de bica e chuvas brilhantes
de mangueira, fogos de artifício aquáticos, Mana e Mena, se nossos rostos
virarem um só, rostos tricolores, cores da diferença
mais insólita e fraterna,
Mana e Mena, se as nossas mãos escavarem os bonequinhos enterrados em baús e os seus paraquedas de tecnologia de ponta, se
nossos dedos migrarem seus poros sobre nossos tesouros de caixinhas
amadeiradas-Jumanji, se nossos sentidos perceberem os frascos de perfume de
lavanda cor de limão, se a gente encher nossas lancheiras de doces, embarés e
flores de jambo, Mana e Mena, se a gente ousar, eu aqui um jambeiro, você aí
uma meia-noite, você ali uma roseira, ser crianças nos tempos das plantas,
quintais, pedras, arranhões, vertigens, rios emergindo, açudes maiores que o
Lago Ness, Mana e Mena, se a gente aceita as verdades bonitas
do tempo: as vozes mais agudas e límpidas gritando
“é hora de voltar pra casa, é a hora das cobras, entardeceu, Mainha
chama”, Mana e Mena, se tudo for assim, se nós somos
assim, os anos vão passar,
mas a gente continuará voando?
Minha avó herdou do seu pai do
Seridó modos diferentes de usar a cabeça. Órbitas distintas. Luzes de
frequência desconhecida. Durante muito tempo, pensei que nunca poderia perceber
as cores da minha avó, ora imaginava que eram de um laranja vibrante, capazes de estremecer as estruturas geológicas, e nenhum geólogo
seria capaz de decifrar
esse segredo, ora fantasiava um cinza sorumbático, que vinha mais amiúde e
deitava-se profundamente nos seus olhos. Olhos que se balançavam numa rede gasta,
às vezes puída. E, no entanto, nalguns lugares da
casa surgiam olhos muito arqueados, transparecendo a força magnética das rochas desmesuradas e diziam “eu estou
aqui e permaneço”. Eu vi a minha avó em diferentes figurinos, vestes, pompas
variadas e palcos enfeitados. Um dia ela me disse que era a Rainha Elizabeth, e
eu acreditei. Fiz-me seu par. Dançamos uma valsa no chão de cimento da sua casa e cantamos
em coro. Outra vez me confessou, entre cochichos, seu novo nome:
Maria – não sei se uma santa, a virgem,
não sei se uma amiga ou uma Maria nem cinza nem laranja.
Talvez Maria, além de um nome, fosse também uma cor da minha avó. Mas não, não.
Eu sempre estive enganado, embalado numa infância distante das verdadeiras nuances das órbitas
e luzes desse universo desconhecido. Nem laranjas de epifania,
nem cinzas melancólicos, nem a alcunha Maria trajando as ondas magnéticas de uma cor. Sua cor era seu próprio nome: Rosa, a cor que nem sempre podíamos tocar e experimentar. Por
vezes tolhida, por vezes engalfinhada em disfarces injustos impossíveis de serem esmorecidos pela ciência médica.
Quando olho o horizonte,
este albergue de não apenas utopias, mas também de verdades antes escondidas,
modificadas pelas incertezas dos homens, vem o arrebol, tons de rosa arrebatam
as abóbadas do mundo e percebo: lá está, e sempre esteve, a cor da minha avó.
Imponente. A cor que, embora em sestas exaustas, preparava todos os dias um
café forte em xícaras de vidro bem dispostas. O café questionador das coisas
que não foram para ser, mas que se rompem pelas beiradas, renegam lógicas de
abandono e mantras de vazios. Este café, apenas uma parte do arrebol-rosa da
minha avó. O reluzente das nuvens da minha avó. Os pássaros cônicos neste
espaço do céu, o espaço da minha avó e de mais ninguém. A Rainha Elizabeth, a valsa no chão de cimento, o nome Maria e, no entanto, a cor Rosa da
mãe de minha mãe flutuando sobre tudo e luzindo: eu estou aqui, dessa vez estou
aqui. E o mundo todo, inteiriço e
fatal, agora eu sei, sempre estará em doce e majestoso crepúsculo.
Magno Catão nasceu em 10 de novembro de 1993 em Natal
(RN). É advogado e poeta. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN) e mestre em Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Venceu em 2019 o Prêmio Othoniel Menezes de Poesia,
realizado pelo Município do Natal; em 2020, foi segundo colocado no Prêmio
Edgar “Blackout” Borges de ensaios acadêmicos com temática de igualdade racial.
É apaixonado pela poesia potiguar, por Sophia de Mello Breyner Andresen e Toni
Morrison. É autor do livro de poemas Convalescente (2017).
Walter Andrés Caicedo Mosquera: nasce na Colômbia, no município do Puerto Tejada; departamento do Cauca. Faz estudos profissionais no instituto Departamental de Bellas Artes, Cali.
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