Liberdade - conto de Ozeias Cotto

(Henry Scott, reprodução)


Liberdade 


 Eu estava de costas, fingia lavar as vasilhas do almoço. Ensaboava, distante, ouvindo a voz atrás de mim dizendo qualquer coisa que naquele momento não fazia sentido, e se fazia eu estava longe de captá-lo, tão familiar e ao mesmo tempo estranho aquele som que por anos eu não ouvia. Era como se tivessem passado séculos, porque as feridas tinham cicatrizado quase que totalmente, fendas abertas por toda a parte do meu ser, e meu algoz, meu jovem amigo, como que inocentado pela vida e pelo tempo, estava ali falando, falando, falando e eu não sabia o que fazer senão fingir que lavava vasilha enquanto esperava a água para o café ferver. Eu havia ansiado tanto por aquele dia, fantasiado noites e dias que quando finalmente aconteceu não sabia, não sabíamos o que fazer senão fingir que tudo estava bem, que todo o passado não tinha sido nada além de um pesadelo que se tem no meio de um cochilo de um domingo a tarde. O mesmo sol escaldante, a mesma cidade sem muitas expectativas além de tornar-se velho e acompanhar as missas e morrer, ou ir aos mesmos bares e beber com as mesmas pessoas e trocar olhares que nada dizem, como os dos bichos em zoológico que se olham de suas jaulas, simplesmente porque aos olhos foi dado o dever de ver, inconscientes de suas reais naturezas porque nunca estiveram onde deviam estar. Fechei os olhos e então pude vê-lo falando atrás de mim, e assim podia analisar melhor suas feições que pouco ou nada mudaram, estava exatamente como eu me lembrava com exceção dos cabelos, agora curtos, e dos olhos, um pouco tristes, a pele morena, a boca, a boca que ansiei por tempo demais e agora me causava certa confusão, embora naquele emaranhado de coisas sabia que ainda sentia desejo, o desejo crônico como a fome crônica, porque ele nunca me abandonara, o desejo incurável; já não podia ouvi-lo, surdo pelo sonho barulhento, nós dois rolando feito selvagens no princípio do mundo, os corpos estranhos se conectando, os urros e gemidos, o ranger dos dentes, os cabelos e pelos se enroscando, alguma coisa em mim se acendeu por um breve momento e eu me vi como quem se vê cambaleante na estrada e então é paralisado por um par de faróis que se aproximam rápidos, e não há como escapar e a colisão é certa, tal visão me fez despertar e a água escorrendo e a voz dele e o meu pau duro e os arrepios e o meu não saber como disfarçar tamanho desconcerto.
 Permaneci de costas, apesar do seu aviso de que a água estava fervendo. Não queria que ele visse a minha ereção, não que estivesse envergonhado, na verdade eu temia que ele temesse aquele desejo, não queria espantá-lo de novo, como da última vez, quando palavras e gestos foram suficientes para fazê-lo fugir. Ofereceu-se para passar o café, mas eu disse que tudo bem, enquanto pensava em seus dois últimos anos terríveis até que meu pau finalmente amoleceu e eu pude me virar para desligar o fogo e passar o café. Ele respirou fundo, Como eu senti falta desse café, e muito discretamente eu respirei fundo e pensei Como eu senti falta do teu cheiro, e assim ficamos matando nossas saudades enquanto bebericávamos aquela coisa espessa e fumegante e forte, ele com seu braço apoiada no parapeito da janela, as pernas entreabertas num convite que nunca me era endereçado, a mesma pose de tanto tempo atrás como se absolutamente nada tivesse alterado e por um momento senti uma alegria estranha, tão estranha quanto o fato de estarmos outra vez ali naquela cozinha frente a frente, quando bêbado eu pensava que jamais tornaríamos a nos ver e trocar uma palavra que fosse e então chorava, porque o mundo era um lugar injusto e como o mundo nós também cometíamos injustiças, a dele que era não receber o que eu oferecia, a minha que era julgá-lo por suas desfeitas, Covarde, eu dizia, Você não sabe porra nenhuma das coisas, vive por aí se achando o tal com essas putinhas, e ele ria um riso complacente e virava as costas como se eu fosse um menininho tolo dizendo asneiras que não valia a pena levar a sério nem castigar, mas seu castigo era justamente o seu virar de costas e seguir seus passos, evitando-me, olhando-me com seus olhos de censura quando por acaso nos encontrávamos no mesmo ambiente e eu já estava bêbado a ponto de vexames, Olha o ponto em que chegamos, eu queria dizer e ás vezes ele balançava a cabeça como se pudesse ler meus pensamentos.
 Mas ali estávamos frente a frente, tontos, de calor e qualquer outra coisa que pairava sobre nós, soldados que lutaram em lados opostos mas que ao acaso, passada a guerra, se encontram por acaso e se envergonham e tremem só de pensar que um poderia ter ferido mortalmente o outro, porque sim, nós nos ferimos, ás vezes conscientes, ás vezes não, mas guerras são guerras e não há muita lógica, apenas instintos. Ele me falou sobre as condições na cadeia, como se eu já não soubesse, e em cada gole do café estalava a língua e fechava os olhos e pendia um pouco a cabeça para trás, seu queixo perfeito, os traços tão fortes e delicados ao mesmo tempo, caramba, os anjos ás vezes tem que conhecer o inferno mas eu não era anjo nem coisa nenhuma e havia conhecido coisas semelhantes, angústias de dias e noites e semanas e até meses, mas eu sabia que nada se comparava aqueles dois anos no xadrez tampouco ele teria diminuído os meus problemas se acaso eu tivesse contado, mas não estávamos ali para comparar nossas feridas, pelo contrário, estávamos ali para curá-las, se ainda houvesse alguma (visível).
 Conversamos sem dizer coisa nenhuma. Estávamos perplexos, incrédulos de que aquilo era real, e por duas ou três vezes pensei que ele fosse desabar em lágrimas, porque sua voz embargava e os olhos brilhavam, e nessa hora eu me desarmava e sentia vontade de abraça-lo e explicitar o que nas inúmeras cartas eu deixava implícito, mas era perigoso demais, e eu me perguntava o que fazer, então mudava de assunto e dava notícias de velhos amigos, pelo menos os que haviam sobrevivido aos tempos  terríveis e incertos, e falava de músicas, filmes, qualquer coisa que fizesse parecer uma conversa fiada de dois amigos que se viam sempre e estavam apenas matando o tempo. Eu ainda não consigo acreditar que tô aqui fora, cara, ele repetia ás vezes, e os olhos tornavam a brilhar e eu abria a garrafa térmica e tornava a encher seu copo, então continuávamos nosso papo furado porque não estávamos preparados para qualquer outro assunto que exigisse mais de nós, porque ali estávamos no limite dos nossos controles. O tempo passava e ele dizia que precisava ir, mas não ia. Era como se temesse nunca mais voltar. Eu me perguntava o que seria da gente dali em diante e ele fazia planos para sairmos por aí qualquer hora dessas e pescar, porque ele amava pescar e eu amei a ideia de fazer isso com ele, porque isso significava estarmos sós em algum lugar cercados de árvores e bichos que não poderiam julgar quaisquer uma de nossas ações ou palavras, achando estranha demais aquela aproximação entre dois sujeitos, talvez um gesto menos bruto quase afetuoso embora contido. Apenas as folhas se roçando, o vento, o som dos peixes pulando n’água formando um círculo concêntrico... Mas ele precisava ir, então nos despedimos e ele disse que qualquer hora dessas estaria de volta, Vamos mascar o lance da pescada, beleza? E nos abraçamos meio sem jeito por que o pessoal de casa estava em volta, éramos novamente suspeitos, e eu o acompanhei até a porta e na calçada mais uma vez nos abraçamos e dissemos qualquer coisa e reafirmamos o compromisso de irmos pescar. Antes de ir olhei nos seus olhos e eles pareciam dizer qualquer coisa, seu corpo vibrava e eu podia sentir, mas os outros ao redor o inibiam. Abriu a boca como se...  mas então tornou a fechá-la, agora apertando a minha mão disse Até logo e eu disse o mesmo, dando meia volta e entrando em casa, que agora me parecia tão menor e vazia e insuportável, como um cárcere. Fechei os olhos e respirei fundo e pedi a deus que aquilo não fosse um sonho. Quando tornei a abri-los, vi que tudo era real, e até a sua ausência na cadeira onde estivera há poucos minutos era boa, me fez sorrir. Porque sabia que era algo temporário. Ele estava livre, e não fazia a menor ideia de quantas prisões. Sorri outra vez e por dentro.



Ozeias Cotto


 Variações: revista de literatura contempôranea 

III Edição
Curadoria de Franck Santos
Edição de Marcos Samuel Costa
fevereiro LGBTQIA+ 
2021


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