Liberdade - conto de Ozeias Cotto
Liberdade
Eu estava de costas, fingia lavar as vasilhas
do almoço. Ensaboava, distante, ouvindo a voz atrás de mim dizendo qualquer
coisa que naquele momento não fazia sentido, e se fazia eu estava longe de
captá-lo, tão familiar e ao mesmo tempo estranho aquele som que por anos eu não
ouvia. Era como se tivessem passado séculos, porque as feridas tinham
cicatrizado quase que totalmente, fendas abertas por toda a parte do meu ser, e
meu algoz, meu jovem amigo, como que inocentado pela vida e pelo tempo, estava
ali falando, falando, falando e eu não sabia o que fazer senão fingir que
lavava vasilha enquanto esperava a água para o café ferver. Eu havia ansiado
tanto por aquele dia, fantasiado noites e dias que quando finalmente aconteceu
não sabia, não sabíamos o que fazer senão fingir que tudo estava bem, que todo
o passado não tinha sido nada além de um pesadelo que se tem no meio de um
cochilo de um domingo a tarde. O mesmo sol escaldante, a mesma cidade sem
muitas expectativas além de tornar-se velho e acompanhar as missas e morrer, ou
ir aos mesmos bares e beber com as mesmas pessoas e trocar olhares que nada
dizem, como os dos bichos em zoológico que se olham de suas jaulas,
simplesmente porque aos olhos foi dado o dever de ver, inconscientes de suas
reais naturezas porque nunca estiveram onde deviam estar. Fechei os olhos e
então pude vê-lo falando atrás de mim, e assim podia analisar melhor suas
feições que pouco ou nada mudaram, estava exatamente como eu me lembrava com
exceção dos cabelos, agora curtos, e dos olhos, um pouco tristes, a pele
morena, a boca, a boca que ansiei por tempo demais e agora me causava certa
confusão, embora naquele emaranhado de coisas sabia que ainda sentia desejo, o
desejo crônico como a fome crônica, porque ele nunca me abandonara, o desejo
incurável; já não podia ouvi-lo, surdo pelo sonho barulhento, nós dois rolando
feito selvagens no princípio do mundo, os corpos estranhos se conectando, os
urros e gemidos, o ranger dos dentes, os cabelos e pelos se enroscando, alguma
coisa em mim se acendeu por um breve momento e eu me vi como quem se vê
cambaleante na estrada e então é paralisado por um par de faróis que se
aproximam rápidos, e não há como escapar e a colisão é certa, tal visão me fez
despertar e a água escorrendo e a voz dele e o meu pau duro e os arrepios e o
meu não saber como disfarçar tamanho desconcerto.
Permaneci de costas, apesar do seu aviso
de que a água estava fervendo. Não queria que ele visse a minha ereção, não que
estivesse envergonhado, na verdade eu temia que ele temesse aquele desejo, não
queria espantá-lo de novo, como da última vez, quando palavras e gestos foram
suficientes para fazê-lo fugir. Ofereceu-se para passar o café, mas eu disse
que tudo bem, enquanto pensava em seus dois últimos anos terríveis até que meu
pau finalmente amoleceu e eu pude me virar para desligar o fogo e passar o
café. Ele respirou fundo, Como eu senti falta desse café, e muito discretamente
eu respirei fundo e pensei Como eu senti falta do teu cheiro, e assim ficamos
matando nossas saudades enquanto bebericávamos aquela coisa espessa e fumegante
e forte, ele com seu braço apoiada no parapeito da janela, as pernas
entreabertas num convite que nunca me era endereçado, a mesma pose de tanto
tempo atrás como se absolutamente nada tivesse alterado e por um momento senti
uma alegria estranha, tão estranha quanto o fato de estarmos outra vez ali
naquela cozinha frente a frente, quando bêbado eu pensava que jamais
tornaríamos a nos ver e trocar uma palavra que fosse e então chorava, porque o
mundo era um lugar injusto e como o mundo nós também cometíamos injustiças, a
dele que era não receber o que eu oferecia, a minha que era julgá-lo por suas
desfeitas, Covarde, eu dizia, Você não sabe porra nenhuma das coisas, vive por
aí se achando o tal com essas putinhas, e ele ria um riso complacente e virava
as costas como se eu fosse um menininho tolo dizendo asneiras que não valia a
pena levar a sério nem castigar, mas seu castigo era justamente o seu virar de
costas e seguir seus passos, evitando-me, olhando-me com seus olhos de censura
quando por acaso nos encontrávamos no mesmo ambiente e eu já estava bêbado a
ponto de vexames, Olha o ponto em que chegamos, eu queria dizer e ás vezes ele
balançava a cabeça como se pudesse ler meus pensamentos.
Mas ali estávamos frente a frente,
tontos, de calor e qualquer outra coisa que pairava sobre nós, soldados que
lutaram em lados opostos mas que ao acaso, passada a guerra, se encontram por
acaso e se envergonham e tremem só de pensar que um poderia ter ferido mortalmente
o outro, porque sim, nós nos ferimos, ás vezes conscientes, ás vezes não, mas
guerras são guerras e não há muita lógica, apenas instintos. Ele me falou sobre
as condições na cadeia, como se eu já não soubesse, e em cada gole do café
estalava a língua e fechava os olhos e pendia um pouco a cabeça para trás, seu
queixo perfeito, os traços tão fortes e delicados ao mesmo tempo, caramba, os
anjos ás vezes tem que conhecer o inferno mas eu não era anjo nem coisa nenhuma
e havia conhecido coisas semelhantes, angústias de dias e noites e semanas e
até meses, mas eu sabia que nada se comparava aqueles dois anos no xadrez
tampouco ele teria diminuído os meus problemas se acaso eu tivesse contado, mas
não estávamos ali para comparar nossas feridas, pelo contrário, estávamos ali
para curá-las, se ainda houvesse alguma (visível).
Conversamos sem dizer coisa nenhuma.
Estávamos perplexos, incrédulos de que aquilo era real, e por duas ou três
vezes pensei que ele fosse desabar em lágrimas, porque sua voz embargava e os
olhos brilhavam, e nessa hora eu me desarmava e sentia vontade de abraça-lo e
explicitar o que nas inúmeras cartas eu deixava implícito, mas era perigoso
demais, e eu me perguntava o que fazer, então mudava de assunto e dava notícias
de velhos amigos, pelo menos os que haviam sobrevivido aos tempos terríveis e incertos, e falava de músicas,
filmes, qualquer coisa que fizesse parecer uma conversa fiada de dois amigos
que se viam sempre e estavam apenas matando o tempo. Eu ainda não consigo
acreditar que tô aqui fora, cara, ele repetia ás vezes, e os olhos tornavam a
brilhar e eu abria a garrafa térmica e tornava a encher seu copo, então
continuávamos nosso papo furado porque não estávamos preparados para qualquer
outro assunto que exigisse mais de nós, porque ali estávamos no limite dos
nossos controles. O tempo passava e ele dizia que precisava ir, mas não ia. Era
como se temesse nunca mais voltar. Eu me perguntava o que seria da gente dali
em diante e ele fazia planos para sairmos por aí qualquer hora dessas e pescar,
porque ele amava pescar e eu amei a ideia de fazer isso com ele, porque isso
significava estarmos sós em algum lugar cercados de árvores e bichos que não
poderiam julgar quaisquer uma de nossas ações ou palavras, achando estranha
demais aquela aproximação entre dois sujeitos, talvez um gesto menos bruto
quase afetuoso embora contido. Apenas as folhas se roçando, o vento, o som dos
peixes pulando n’água formando um círculo concêntrico... Mas ele precisava ir,
então nos despedimos e ele disse que qualquer hora dessas estaria de volta,
Vamos mascar o lance da pescada, beleza? E nos abraçamos meio sem jeito por que
o pessoal de casa estava em volta, éramos novamente suspeitos, e eu o
acompanhei até a porta e na calçada mais uma vez nos abraçamos e dissemos
qualquer coisa e reafirmamos o compromisso de irmos pescar. Antes de ir olhei
nos seus olhos e eles pareciam dizer qualquer coisa, seu corpo vibrava e eu
podia sentir, mas os outros ao redor o inibiam. Abriu a boca como se... mas então tornou a fechá-la, agora apertando
a minha mão disse Até logo e eu disse o mesmo, dando meia volta e entrando em
casa, que agora me parecia tão menor e vazia e insuportável, como um cárcere.
Fechei os olhos e respirei fundo e pedi a deus que aquilo não fosse um sonho.
Quando tornei a abri-los, vi que tudo era real, e até a sua ausência na cadeira
onde estivera há poucos minutos era boa, me fez sorrir. Porque sabia que era
algo temporário. Ele estava livre, e não fazia a menor ideia de quantas
prisões. Sorri outra vez e por dentro.
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