À SOMBRA DA CHUVA - conto de Edir Augusto Dias Pereira


(Elza Lima)


À SOMBRA DA CHUVA

 

 

“Também nela a verdade era muito protegida, o que não lhe despertava muita curiosidade, assim como nunca precisara da inteligência, nunca precisara de verdade; e qualquer retrato seu era mais claro que ela.”

Clarice Lispector

 

mais um passo, o equilíbrio é raso - no escuro adivinha-se -, é frágil, outro passo, choca-se com o denso vazio das trevas indevassáveis. inúteis são os olhos abertos oprimidos pela escuridão.

o silêncio tornava a escuridão maior, insuportavelmente pesada, dura e imensurável. seus braços nadavam invisíveis no ar escuro, cautelosos, em movimentos lentos. e o silêncio gelatinoso fermentando o escuro... ficou imóvel um instante, sem ousar dar mais um passo. mal se mantinha em pé, como se o chão se dissolvesse ou oscilasse na escuridão. não havia onde se apoiar. estava nesse abandono incontornável de quem se afoga.  a escuridão não tem cabelos. procurou segurar-se em si mesma, mas a escuridão a tornava intangível. era agora parte da escuridão.

 

sobre as pedras... os pássaros longínquos mergulhavam na bruma lilás do crepúsculo. as cores no horizonte ganhavam aquele matiz da noite caindo ou subindo paulatinamente. o tempo da noite que os relógios deixam escapar impotentes.

sobre as pedras seu corpo de barbante. seus pés como se não lhe pertencessem. não reconhecia aqueles pés, parecia-lhe indefiníveis. o vento não se deixou intimidar: cuspiu no seu rosto saliva do mar. seu corpo pesava aflito, mundo kafkiano. ainda não conhecia os cenários e os monstros dessa mente incompreensível, não havia penetrado nessa atmosfera fantástica e fantasmagórica, como o faria febrilmente mais tarde, com um misto indeciso de sensações: perplexidade, euforia, luminosa angústia...

sua inquietude não lhe pertencia, não tinha na sua face à marca inconfundível, disse ou apenas pensou dizer:

- devorar-se com amor e nojo, devo voltar ...

o que o esperava? uma casa? uma mulher? uma cidade que dizia conhecê-lo desde menino? um destino que deixou para traz? era fácil, muito fácil voltar, difícil era saber por quê! e pra quê? mas, era preciso mesmo saber?

sobre as pedras, quis ver tudo que via, e diante dele via apenas os pensamentos desfilando desordenados.

arriscou outro passo, apenas imaginou como seria e desestimulou-se, estava presa: não de pavor, o escuro silencioso a prendia, a visguenta escuridão a colava no chão, escuridão pastosa e viscosa, o medo a arrancaria dali, o medo seria uma potente motivação.

gritou, nada ouviu, havia perdido a voz, quando? onde? não lembra, se aquilo fosse um sonho... se fosse realidade? fez-se aquela personagem mergulhada em profunda escuridão, e não havia ficção, não fazia o enredo...

a única consciência que tinha era que representava ela mesma e já não podia ser ela. imitar-se é cansativo, imitar-se é distanciar-se de si.

por um instante quis de volta a imaginação. sorriu, não há como saber se sorriu realmente, fez um esforço sem esperança de ver ou sentir seu rosto sorrindo. na escuridão tudo se despersonaliza, a escuridão só reflete escuridão. fechou os olhos, sua inércia sem equilíbrio já a atormentava; sentiu-se subitamente submergir numa escuridão maior ainda. ergueu os braços e baixou bruscamente como se estivesse se afogando e quisesse subir pelo ar e simultaneamente abrira os olhos. era-lhe já familiar aquela escuridão toda, voltou a ser estátua. e como cega que era agora girou a cabeça de um lado a outro farejando o escuro imóvel e mudo... o escuro pregara-se nela.

 

a caminho a cabeça lhe doía. há quanto tempo? soam longamente os passos... um dia estava chovendo ele não foi à escola, tomou água da chuva na mão em concha, molhou os cabelos, havia conversa em casa... com uma sombrinha velha ela vinha descalça pela rua encharcada. a chuva havia diminuído o ritmo, ela o viu na janela, entre seus olhos estendeu-se um arco-íris, que combinava com o sorriso de ambos, ela baixou a sombrinha, à chuva bateu-lhe no corpo magro anguloso, correu-lhe pelo meandro do sorriso, encharcou a cor da pele, os cabelos e as flores do vestido.

como doía sua cabeça. e o caminho infindável. ela estendeu os dois braços pra frente, ensaiava outro passo, avançou quatro passos com os braços assim estendidos. se ele a visse andando assim, parecia um zumbi, uma sonâmbula, um robô... ele ria muito, ria... sua risada iluminava essa lembrança no escuro. sua risada luminosa... gesticulava como se tivesse na mão uma espécie de controle remoto: robô faça isso, vai para ali, volta... o robô obedecia e desobedecia, ela vinha pra cima dele e lhe fazia cócegas, eram duas crianças ocupadas em viver. sua risada não a deixaria jamais no escuro. “eu vou cuidar de você e você cuida de mim”, e mesmo sério seus olhos eram dois faróis, e mesmo dormindo seu corpo era um sol... eles deitaram lado a lado na areia, olhavam para o céu, ele disse: olhe o céu, azul inigualável, nos invade completamente, é impossível resistir-lhe... mergulho nele meus olhos e me sinto também azul, é como quando olho pra você, sinto-me cheio de você. aquele azul de céu combateria a escuridão, porque ela estaria protegida nele, mergulhada no azul do céu que o preenchia.

a chuva umedeceu o sorriso e ela o chamou para chuva e os dois correram pelas ruas, e a chuva era benção do céu... o caminho acabava ali adiante, vencera grande distância. sentaram numa calçada, ainda chovia, chuviscava preguiçosamente, estavam batendo os dentes de frio, trêmulos. entre o soar dos dentes batendo suas palavras vinham cantantes: gosto da chuva. gosto que você esteja aqui comigo...

as luzes apagadas, a casa no escuro, não adiantou voltar? a casa está vazia, ela foi embora, no escuro ela chora uma lágrima grossa e pesada que se espedaça no chão invisível carregando todo sal de sua dor, mas essa lágrima não ilumina a casa. ela foi embora, as luzes estão apagadas, ou será que dorme? vou bater. e soam perto de seus ouvidos dois baques surdos. é a porta, alguém bate, ela estava com a cara quase encostada na porta, deu mais um passo com as mãos estendidas. achou a porta, deveria abri-la? a dúvida: quem estará batendo? o que quer? e se quiser lhe fazer mal? não deveria abrir, esperou mais duas batidas de leve. intervalo. outra batida rápida, intervalo, mais três batidas ritmadas, é um código, o código deles! só ele sabia, ninguém mais. será? não! ele está longe. não voltará, ela o fez sofrer, lhe amargou o coração, lhe humilhou terrivelmente, é um truque, é um fantasma a lhe perturbar, fantasma vingador... e começou a sentir seu coração a bater naquele código, naquelas batidas deles dois...

não há ninguém... a espera fazia-o atravessar cada segundo como se o tempo fosse uma massa espessa, densa, uma espécie de lama a segurar seus passos... seu pensamento também ficava pesado, pastoso, lento, se arrastava dificultosamente sobre seu próprio peso. ela não estar. inútil ter voltado... talvez durma... tão cedo? a estátua do seu corpo pregada no ar, naquele chão...

abriu-se subitamente a porta, o vulto ficou estático. não dava para saber quem era, mal o via. talvez apenas sentisse sua presença, ele também congelou. será ela? será ele? no escuro os dois vultos imóveis se contemplavam sem se reconhecer.

- é você?

- sim, é você?

- sim, também.

- você voltou...

- é... eu voltei. por que está escuro assim?

- não sei... de repente faltou luz!

- você está sozinha? com medo?

- não. sim. quer dizer, não sei...

- como consegue andar nesse breu?

- tateando, é dificultoso. entra. acendemos uma vela, não sei onde tem fogo.

- eu tenho um isqueiro.

acendeu. o rosto dele. o rosto dela. levemente iluminados. os dois naquela pequena ilha de luz no meio do mar da escuridão.

- você envelheceu um pouco.

- você também.

- faz muito tempo, não é?

- é.

acederam uma vela, e ficaram em silêncio olhando um para outro. uma mulher, um homem. e estavam sozinhos. começou a chover, um relâmpago riscou a escuridão, pela janela seu clarão recortou rapidamente a silhueta dos dois.

- chove...

- é, faz tempo que não chovia.

- eu trouxe a chuva pra você. você gostava da chuva.

- ainda gosto, você carrega a chuva com você?

- por todos os lugares por onde ando.

novo silêncio. fitaram a vela oscilando, queimando seu pavio, identificaram as cores da chama. fitaram-se novamente quase ao mesmo instante. seus olhos brilhavam. a chuva silenciosa lá fora, o vento silencioso. seus olhos calados.

- porque você voltou?

- não sei.

- imaginou que eu ainda estava aqui?

- é, mas também não esperava encontra-la.

- você me odeia?

- não, não agora.

- e ainda me ama?

- não faça essa pergunta. deixe-me dormi aqui essa noite.

- está bem, durma comigo, sinto frio...

e dormiu lá... uma noite, mais uma noite, mais uma noite... por todas as noites restantes de sua vida. e sentiu antes de morrer que a amava. e ela sentiu um gosto de azul de céu na boca quando ele a beijou, e ficou azul como céu. e morreu um ano depois dele, muito velha. morreu descalça, de braços abertos e a chuva a bater-lhe no corpo, a molhar seu sorriso...




Edir Augusto Dias Pereira, nasceu no município de Mocajuba (1977), no estado do Pará; graduado e bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), e também mestre e doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (Niterói-RJ). Desde 2009 atua como docente do Campus Universitário do Tocantins/Cametá da UFPA. Tem publicado livro de poemas Livro Zero (Editora Scortecci, 2014), o livro acadêmico Ensaios de Amazônia (Eduff, 2016) e o livro de poemas Gris (Editora Scortecci, 2020).


Variações: revista de literatura contempôranea 

IV Edição
Edição de Marcos Samuel Costa
Março de Vozes Amazônicas 
2021



Comentários

  1. UAU! Leitura tensa, aprofundada em suspenses, sensações. Muito Bom ! 👏👏👏

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas