Ensaio inédito de Wladirson Cardoso

Este ensaio o autor submeteu para publicação na Revista e Gigio Ferreira estava fazendo a correção. Com a morte prematura de Wladirson Cardoso, resolvemos agilizar a correção e a edição e trazer para os leitores esse ensaio literário. 



BIOGRAFIAS DOS AUTORES. 

Wladirson Cardoso - doutor em Antropologia Social, mestre em Direitos Humanos e bacharel/licenciado em Filosofia - professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA), professor Permanente do Programa de Pós- Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB/UFPA) e líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia Moderna e Contemporânea – COGITANS.

Marcelo Ribeiro de Mesquita - mestre em Currículo e Gestão da Escola da Escola Básica  (PPEB/UFPA) e licenciado em Pedagogia - professor da Secretaria Estadual de Educação e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia Moderna e Contemporânea – COGITANS.

(Entre a Filosofia, a Antropologia e a Literatura - O Naturalismo e as questões sociais de um Brasil pré-moderno presentes em "O Cortiço" de Aluísio de Azevedo.) 

Resumo:

O presente ensaio enseja uma discussão teórico-sociológica mediante a problemática indivíduo/meio, contida de modo pujante na “Estética Naturalista” da Literatura brasileira e as questões sociais atinentes aos marcadores “raça, classe e cor” de um Brasil de pré-moderno. Para tanto, utilizar-se-á das urdiduras semânticas presentes na obra “O cortiço”, de Aluísio de Azevedo, e alguns conceitos e dispositivos analíticos foucaultianos para tratar, por exemplo, da emergência complexa de afetos e relações sóciossexuais envolvendo a emergência do “dispositivo de feminilidade” que surge, justamente, com a visão romântica de amor que, por sua vez, é desnudada pelo Realismo/Naturalismo. Trata-se de um estudo analítico, de caráter bibliográfico e interpretativo, que busca desvelar máscaras simbólicas de representação das tramas sociais de um país ainda em construção e que, literariamente, procura estabelecer um liame crítico entre realidade e ficção.

Introdução.

Quando, na escola, se estuda Literatura de forma condensada e didática - para se ter, minimamente, um conhecimento geral (superficial) de importantes obras do gênio imaginativo do homem, já se pode intuir a necessidade das letras e das artes na formação e no ethos (caráter) de um determinado povo ou grupo social. E isto não é diferente no caso da Literatura Brasileira que, por exemplo, também nos auxilia a pensar não só questões de estilo, relativamente a cada autor (José de Alencar, Aluísio de Azevedo, Machado de Assis...) e/ou de correntes ou tendências literárias (Romantismo, Naturalismo, Realismo, etc.); mas, também, a relação entre passado e presente, cultura e sociedade, práticas e representações e, consequentemente, política e jogos de força e de relações de poder no contexto de uma sociedade que se estruturou a partir do sistema colonial, do genocídio imposto aos povos indígenas e da escravidão dos corpos e das almas de homens e mulheres de pele/cor negra - que, por sua vez, foram sequestrados e arrancados de suas terras, na grande mãe África, para servirem de mãos e braços de senhores de lavoura ou minas nas colônias de além-mar das coroas e cortes portuguesa e espanhola.

É certo que só entende mesmo de Literatura quem a lê e reflete, pois – regra básica neste campo e, como de resto, em todos os outros em que a leitura é o princípio e o fim do exercício crítico do pensamento (como a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia e a Historiografia) - não é possível apenas supor ou arbitrar sobre o que não se conhece, a não ser... lendo. Isto porque, a despeito dos didatismos, enfrentar, isto é, ler, por exemplo, um texto como o de "O Cortiço" é descobrir no estilo de um Aluísio de Azevedo não somente a pretensão de descrição fidedigna das cenas cotidianas de gente pobre, em sua maioria "mestiços", "mulatos" ou imigrantes (portugueses e italianos que vieram "fazer o Brasil"), todos, enfim, amontoados em uma estalagem improvisada de quartos apertados e contíguos, localizada em uma região de pedreira no bairro de Botafogo em um Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX (dezenove), marcado por tensões políticas, tais como a luta republicana e a abolicionista e pelas questões sociais no tocante às contradições e fraquezas morais e à pobreza e miséria materiais de um povo privado de bens e muito humilde, mas que, ao mesmo tempo, é um povo trabalhador

e festivo, qual seja, um povo que se entrega tanto à labuta diária (tal qual uma pena que impõe uma condenação a trabalhos forçados e repetitivos - como no mito de Sísifo!), do mesmo modo que se deixa arrastar pelo som do violão e do cavaquinho, à bebida, à dança e à algazarra no final do expediente ou num dia quente de um domingo qualquer em pleno mês de abril, em rodas de pagode ou mascaradas em bailes de carnaval...

É claro que o autor não foi muito generoso na descrição de algumas de suas personagens, visto serem evidentes os nexos que estabelecem – quase numa relação de obviedade e, portanto, de causa e efeito imediatos – entre raça e imoralidade (ou lascividade!) de caráter e comportamento de mulheres negras tidas como naturalmente sensuais ou de homens negros tidos como naturalmente pernósticos.

Isto significa tanto uma expressão de preconceito de classe e raça (que o autor reproduz obviamente em cores e tons, por vezes, carregados de ironia e desprezo); quanto também, uma tendência apodítica e categórica (da elite intelectual daquela época), de conferir às representações do senso comum, fundamentos teóricos e conceituais com vigores epistemológicos e biologizantes, aproximando-os, por suposta semelhança, da ciência e da "verdade" para, com isso, trazer à ordem do discurso, temas de preocupação e relevância quanto a um projeto de país que ainda se encontrava embrionário e em busca de uma identidade nacional, tendo como modelo, justamente, a Inglaterra e a França.

Aliás, esta é, inequivocamente, a posição de muitos cientistas neste momento. Eles1) inferiorizam e desprezam radicalmente indígenas e negros e 2) procuram estabelecer modelos politicamente orientados de mistura e miscigenação desses elementos com o indivíduo branco com fins de branqueamento ou embranquecimento da população, tal como se pode observar, por exemplo, nos escritos de Nina Rodrigues, em especial, na obra “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, que, na virada do século XIX para o século XX, mais precisamente, em 1894, adjudica a tese da culpa criminal do negro, apenas por razões étnicas e raciais, mobilizando-se os estatutos médicos e jurídicos para legitimar as penas dirigidas à “pessoa de cor”.

A cosmovisão social atravessada pelo cientificismo positivista e a análise dos "fatos sociais" a partir do evolucionismo estão presentes, neste momento, no imaginário de todos, no Ocidente, como pré-condição de uma "Física Social" ou de uma "Sociologia" que, no caso do Brasil, põe em destaque a ideia de uma marcha constante e em linha reta na direção do "progresso", de modo que tudo o que atravancasse esta marcha haveria de ser considerada uma doença ou anomia que exigia resposta "médica" - precisa e cirúrgica. Desta feita, questões como: 1) a integração do negro na sociedade nacional via miscigenação e 2) o tratamento que a sociedade deveria conferir a esse quantitativo da população, criminalizando-a logo de início e tratando-a judicialmente como "questão de polícia" acham-se no alvorecer daquilo que se pode chamar de "pensamento social brasileiro" - do qual o movimento literário naturalista também faz parte - e, ainda, nos quadros e pinturas da época, inquietando, a Literatura e, também, as artes plásticas, como demonstra Tatiana Lotierzo (2017) que, em seu livro “Contornos do (in)visível: racismo e estética na pintura brasileira (1850-1940)”, analisa densa e exaustivamente o quadro “A redenção de Can” (1895), do pintor espanhol Modesto Brocos y Gómez [1852-1936], radicado no Brasil, e cuja pintura, de acordo com a autora, é a figuração imagética do racismo à brasileira, para o qual o declínio do negro enquanto raça é de origem imemorial, remontando ao mito de Can, tornando sua redenção (ontogenética e filogenética) unicamente possível através do cruzamento entre uma mulher negra e um homem europeu, em intercursos sexuais sucessivos - quase experimentais - até se chegar ao depuramento esperado.

Neste sentido, o Naturalismo, compreendido esteticamente (em nossa Literatura) é um desconcertante produtor e difusor de preconceitos, que, por sua vez, já se encontram nos horizontes simbólicos dos significados que circulam entre os termos da linguagem na produção e elaboração acerca do sentido que o outro (ou o diferente!) - que às vezes se confunde com o desigual, mas que não está necessariamente implicado na desigualdade – tem para os valores de uma determinada sociedade que organiza sua cultura distinguindo, classificando ou escalonando quem é quem e o que se deve representar, sentir e praticar, segundo critérios de normalidade, segurança e ordem.

Assim é que "O Cortiço" pode ser considerado com uma fonte histórico-documental instigante: traz dados etnográficos de pesquisa que ampliam nosso entendimento acerca dos marcadores sociais imbricados numa realidade sócio-histórica de um Brasil que se equilibra entre um modelo político-social arcaico (de um monarquismo imperial) e outro capitalístico, urbano-industrial, que cresce tímido e desordenado, 1) seja pela ambição e usura das pessoas em práticas mercantis ordinárias, 2) seja pela necessidade mesma de modernização que impôs um "processo civilizador" que fora terrível para a população negra e pobre que restou marginal e periférica, submetida a todo tipo de infortúnio como a violência - o que justifica em parte nossas desigualdades sociais e a barbárie traduzida no aumento da criminalidade em geral e da própria corrupção que se capilariza em todos os setores da sociedade (como nos aparelhos de segurança pública!), em que não consegue distinguir, como no adágio popular, a polícia e o bandido.

É um Brasil pré-republicano, pré-moderno, que Aluísio de Azevedo retrata em "O Cortiço". Um Brasil com uma nobreza decadente que só se mantém a base do regime dotal, mas que ainda se arroga ares de respeito e dignidade (veja-se a personagem Miranda!). É um Brasil pré-capitalista com práticas de trocas e comércio regulados pela lógica pessoal da usura e do lucro (veja-se a personagem de nome João Romão, dono de vários empreendimentos, dentre eles o cortiço em torno do qual está sua taverna e sua pedreira!). É um Brasil em que os costumes sustentam-se mais pelas convenções sociais e pela indolência de espírito do que pelas convicções morais. Mas, por fim, é um Brasil de homens e mulheres demasiadamente humanos, que vivem suas vidas na espontaneidade dos desejos e paixões que borram e rasuram a hipocrisia moralística, apontando para arranjos humanos e sociais diversos, no interior uma cultura outra e que, apesar das dificuldades e contradições, 1) organizam o pagode e o carnaval, 2) resolvem seus dramas pessoais e suas divergências de ideias a despeito da polícia ou com práticas de magia ou feitiçaria e que, acima de tudo, 3) convive de maneira próxima e negociada com outras possibilidades de performatização do sexo e do gozo (cito, aqui, as personagens Florinda, Rita Baiana, Paula – a Bruxa, Machona e Albino).

"O Cortiço" é, pois, uma profusão de coisas e de gente de um Brasil vivo! Pode-se mesmo afirmar que se trata de uma obra que põe em relevo a “invenção” de nossa intimidade quanto às relações de gênero e sexualidade entre homens e mulheres - sem, contudo, estabelecer uma narrativa do casal hetero e do tempo/lugar de sua cama e alcova, na perspectiva de um modelo burguês e vitoriano de família, como diria, por exemplo, Foucault (1999), em “História da Sexualidade I - a vontade de saber”. Pelo contrário: no texto literário em questão, Aluísio de Azevedo antecipa de certa forma, tanto a idealização ambígua de um Brasil que se imagina e representa confuso e miscigenado, mas, ao mesmo tempo integral - como em “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre (2003); quanto de um Brasil que negocia hierarquias e performatizações de comportamentos e práticas e lugares de poder, como em “Carnavais, malandros e heróis”, de Roberto da Matta (1997).

As relações étnico-raciais e sóciossexuais entre homem branco e mulher negra no Naturalismo de “O Cortiço” - amor e sensualidade; urbanização e costumes.

O que faz a paixão ao coração de um homem? Que mudanças influem em seu corpo ou em seus hábitos? Que comportamentos lhe dita? Que mudanças e transformações lhe provocam? Que é, afinal, isso – a paixão?...

Em "O Cortiço", Aluísio de Azevedo descreve Rita Baiana como pândega, "doida mesmo", que larga tudo por um pagode, para quem não há obrigação ou dia santo, pois gosta de "dançar e cantar à viola" e que, "tirando o defeito da vadiagem", "não é má criatura".

Após uma longa ausência da estalagem de "São Romão", onde deixou seu quarto vazio, mas sem descuidar do aluguel, para meter-se em Jacarepaguá com seu novo amante, o Firmo, um "mulato" violeiro, muito bem composto e com um bigodinho sacana na cara, Rita voltou para o cortiço e logo foi recebida com entusiasmo e festa por todos os seus vizinhos e amigos.

Já havia se mudado para lá o português Jerônimo e sua esposa Piedade. Ele, um galego alto, branco, forte, hercúleo – empregara-se como cavoucador na pedreira de João Romão por setenta mil réis. Ela, uma mulher simples, proba, resignada. Ambos eram muito discretos, circunspectos e trabalhadores.

Quem diria que aquele português iria declinar de sua sobriedade e relaxar de suas obrigações, cumpridas com obstinado senso de valor moral, quando conhecesse a Rita?... Mulher de cabelo crespo, farto e reluzente, trazia no corpo "o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas". Rita era uma "mulata" com quadris rijos e atrevidos. Tinha o homem que queria e quando queria – fora as paixões miúdas. Avessa ao casamento, ela era uma mulher a frente de seu tempo, livre, libertária: "- Casar? protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar? Livra! Pra quê? Pra arranjar cativeiro? um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! qual! Deus te livre! Não há como viver cada um senhor e dono do que é seu!"...

Pois foi o corpo, a cor, o cheiro, o quadril e o gingado de Rita que seduziu e encantou aquele português – tão duro e robusto como a imponente e inquebrantável pedreira que cavoucava e tão estóico quanto qualquer outro que se acostuma às adversidades e imperativos de uma vida cheia de privações.

Quando ele a viu dançar e cantar à noite, após o jantar, naquela roda de pagode, organizada por ela no dia em que retornou para a estalagem, algo o tomou por dentro: ficou encantado! Não conseguia desgrudar os olhos daquela entidade, cheia "de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher"!

Que impressões Rita Baiana causou em Jerônimo? Aluísio de Azevedo é, neste sentido, generoso na descrição:

Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda, era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara na matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha de caju, que abre feridas com seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do copo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita com gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno de Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca. (Azevedo, 87:1998)

Assim como na obra “O cortiço”, outra obra, mas desta feita da estética Romântica, Iracema, de José de Alencar, permite fazer essa analogia com a relação entre a selvageria brasileira e a civilidade europeia.

Iracema representa a natureza virgem, a inocência, enquanto que Martim representa a cultura europeia e desta união temos a origem da formação da miscigenação do povo brasileiro.

No capítulo 3, por exemplo, Alencar idealiza o encontro entre o nativo selvagem das matas brasileiras e o conquistador europeu. Martim , aqui representando o europeu, assusta-se com a forma bruta que é recebido por Iracema, com uma flecha que lhe corta o rosto. Iracema, por sua vez, demonstra total arrependimento com tal ato de selvageria. Leva, então, o forasteiro para sua tribo que é recebido com láureas pelo chefe da tribo que afirma: “- Bem-vindo sejas. O estrangeiro é senhor na taba de Araquém. Os tabajaras têm mil guerreiros para defendê-lo e mulheres sem conta para servi-lo. Dize, e todos te obedecerão”. (Alencar, 97:1990).

No que diz respeito à obra “O Cortiço”, observamos também a presença de uma mulher brasileira que se envolve com um europeu, no caso Rita Baiana e Jerônimo. Veremos mais à frente essa diferença entre os personagens destes romances

Temo a impressão, com base em nossa leitura sobre os excertos apresentados, que a obra Iracema do grande José de Alencar é uma das maiores obras do romantismo brasileiro, em que traz inúmeros traços, para não dizer os mínimos traços, da estética romântica. Ainda que idealizando, e mesmo tangenciando uma imagem europeia, Alencar trouxe inúmeros elementos que permitem ensaiar uma tentativa de construção de uma identidade regional. Suas descrições acerca das belezas de nossas terras permitiram um olhar para nossas riquezas cotejando com as belezas europeias. Adentrando n’O Cortiço com as ferramentas de Foucault.. Em O Governo dos vivos, Foucault (2009) remonta à história do imperador Romano Sétimo Severo argumentando como o poder opera de forma imperceptível, quase microscopicamente. No palácio no qual construiu uma sala de justiça: “E na cúpula [plafond] da sala de seu palácio, Sétimo Severo mandou pintar uma representação do céu estrelado.” (p.4).

Foucault continua o texto afirmando que Severo não pintou qualquer céu. “ele mandou representar exatamente seu céu de nascimento, a conjunção das estrelas que tinham presidido esse nascimento e, por consequência, também o seu destino”. (p. 5). O que Foucault esclarece é que se trata da relação de poder através da manifestação da verdade. Relação esta que se manifesta de diversas formas. O filósofo enfatiza que

É a natureza da relação entre o ritual da manifestação da verdade e o exercício do poder. Eu disse ritual de manifestação da verdade, porém não se trata, puramente e simplesmente, disso que se chamaria uma atividade mais ou menos racional de conhecimento. Parece-me que o exercício do poder, tal como se pode encontrar um exemplo na história de Sétimo Severo, se acompanha de um conjunto de procedimentos verbais ou não verbais que podem ser, por consequência, da ordem da informação recolhida, da ordem do conhecimento, da ordem de tabelas, fichas, notas etc., que podem ser um certo número de conselhos; mas que podem ser igualmente rituais, cerimônias; podem ser operações diversas como magias, consultas aos oráculos, aos deuses etc. (Foucault, 11:2011)

Uma das ferramentas utilizadas por Foucault para analisar as questões relacionadas aos regimes de verdade e as manifestações de verdade-saber-poder foi através do conceito de dispositivo, que utilizaremos aqui no que concerne ao dispositivo da feminilidade

Como vimos anteriormente, o Romantismo buscou o endeusamento da figura feminina, nota-se que até a selvagem-donzela Iracema é mostrada como uma figura fraternal. É válido ressaltar que tal escola literária é intrinsecamente ligada à burguesia, inclusive alguns autores, como Massud Moisés (1976), por exemplo, afirmam que o Romance é a epopeia

burguesa. Neste sentido, a deificação da mulher não se dá ao acaso, mas trata-se de um imperativo histórico: o surgimento do dispositivo da feminilidade.

Marcello (2009) afirma que o dispositivo é um conceito importante para Foucault e é composto de três características fundamentais, 1) responder a uma urgência histórica, 2) constituir-se como um conceito multilinear e 3) estar apoiado em outros dispositivos que lhe são contemporâneos.

Na primeira característica, a urgência histórica que permite emergir o dispositivo da feminilidade foi à constituição dos Estados-Nação na Europa com a consolidação da burguesia como classe hegemônica e o surgimento do problema da população com necessidade de vigilância.

Essa vigilância é algo que emana da necessidade de controle das hordas que estavam migrando para as áreas urbanas no contexto de surgimento dos Estados-nação.

Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos, o nível da saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. (Foucault, 131:1988)

Esse poder sobre a vida que Foucault vai chamar de biopoder. Para este autor, foi esse controle sobre a vida que propiciou o desenvolvimento do capitalismo e das instituições que garantiram a sua manutenção, pois “O investimento sobre o corpo vivo, na sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento. (Ibidem, 133)”.

Nestes termos, até este momento, segundo a autora, não existia uma diferenciação sexual, havia somente o sexo único ou sexo rei que era o masculino. Somente a partir da

Revolução Francesa e seus ideais de igualdade que permitiram o surgimento na ordem do discurso de uma teia de saberes, principalmente biologizante, acerca da mulher. Por suas características biológicas, a mulher foi condenada ao espaço privado do lar, garantindo seu governo e, claro, a reprodução da espécie. Essa constituição de redes discursivas, envolvendo saberes e poderes acerca da feminilidade constitui a segunda característica do dispositivo, de um conceito multilinear, no qual comporta ainda as linhas de fuga que, por sua vez, causam rupturas no dispositivo, como demonstraremos mais adiante ao discutir a feminilidade Romântica e a Naturalista.

No que se refere à terceira característica, que é estar apoiado em outros que lhe são contemporâneos, o dispositivo da infantilidade (Corazza, 2000) foi fundamental. De acordo com a autora, até meados do século XVIII não existia a noção de infância como a conhecemos hoje. Tanto que as crianças da aristocracia eram entregues as amas de leite, que eram funções destinadas às escravas, e as crianças dos escravos ou bastardos entregues as Rodas dos expostos, lugares, geralmente hospitais ligados a entidades religiosos. Devido à precariedade da época, a mortalidade infantil era avassaladora. As condições históricas já descritas propiciaram a emergência do conceito de infância e, por conseguinte, a noção de família que passa, então a adquirir “uma figura material, organiza-se como o meio mais próximo da criança; tende a se tornar para ela, um espaço imediato de sobrevivência e evolução”. (Foucault, 1999:200)

São estas características que permitiram emergir o dispositivo da feminilidade. No que concerne ao Romantismo, os discursos em torno da fragilidade feminina, das suas belezas, dos seus dons maternais, a figura da mulher inacessível, apaixonada pelo esposo e cuidadora do lar, lendo romances com finais felizes ou a espera do amor eterno além do exagero nas descrições das paisagens como sempre belas são temas frequentes dessa estética. A descrição da selvagem – donzela Iracema nos permite pensar desta maneira.

Todavia, o Realismo/Naturalismo surge como contraposição a todo esse ideário. É esta escola que descortina o falso véu do moralismo cristão burguês. A figura feminina, agora, não é mais vista como uma deusa inacessível, mas como um ser humano dotado de desejos e também sujeito às fraquezas morais. Nestes termos, o tema do adultério torna-se frequente, mostrando a fragilidade moral da família burguesa. Mais especificamente ao naturalismo, as belas paisagens Românticas dão lugar às moradias miseráveis e as mazelas sociais decorrentes de ocupações sem as menores condições dignas de existência, como nos demonstra Aluísio de Azevedo.

No Naturalismo vemos as linhas de fugas que causam as rupturas do dispositivo da feminilidade, cujo expoente seria a personagem espevitada Rita Baiana.

De doce e meiga, a mulher passa a ser a personificação da decadência moral da sociedade, senão vejamos. Jerônimo, um português, portanto, europeu, é descrito na trama como um sujeito honesto, trabalhador e dedicado a sua esposa Piedade. Contudo, ao ser seduzido pelos encantamentos da envolvente Rita Baiana cai em declínio físico e moral e sua esposa, Piedade, termina alcoólatra. De uma só vez, Rita “destruiu” um homem íntegro e trabalhador e sua família.

É importante destacar nesta ordem discursiva, a visão da mulher negra brasileira como sinônimo da vida desregrada, sem moral, persuasiva na busca de seus objetivos, destruidora dos bons costumes da sociedade, enquanto que o homem europeu, e todo seu modo de vida, é colocado como representante da alta civilidade e exemplo a ser seguido que, porém, ao “abrasileirar-se” decai moralmente. Desta forma, semioticamente, está implícito ainda na obra de Aluísio de Azevedo a ideia da cultura europeia como exemplo de uma cultura maior, enquanto que a brasileira é descrita como representante da decadência moral.

Considerações finais.

O desfecho d’O Cortiço é bem característico da Estética Naturalista: um incêndio o destrói e permite a reconstrução de uma nova vila e, consequentemente, um novo modo de vida, que, em termos hermenêutico-interpretativos conduz a duas hipóteses: uma de caráter sociológico e outra de caráter antropológico.

Na primeira, estamos diante da passagem de um modelo social pré-urbano ao modelo de organização urbano - central, capitalístico, no qual a estruturação das vias está para uma arquitetura funcional, assim como a relação capital/trabalho.

Quanto à segunda hipótese, deparamo-nos com uma mudança física do espaço, a despeito mesmo de qualquer possibilidade de nos livrarmos dos imperativos preconcebidos que o Naturalismo, particularmente na Literatura brasileira, impunha enquanto visão de mundo, homem e sociedade, delimitando e, portanto, definindo nosso ethos como resultado de algumas determinações biofisiológicas e geográficas - muito embora o incêndio dos barracos da favela, represente aí, metaforicamente, a possibilidade “pedagógica” de transformação de nossa moralidade, no sentido daquilo que na Filosofia Iluminista, Jean-Jacques Rousseau chamou de perfectibilidade...

Ora, de acordo com o Naturalismo, as pessoas são produtos do meio social em que vivem: a típica mulata brasileira retratada em Rita Baiana expõe uma visão estereotipada de ser pobre no Brasil, no qual a degradação, o jeito festeiro, a sedução, a vadiagem são (des)adjetivos que marcam esta visão.

Já o modo de vida europeu é, nos interstícios desta Estética, superestimado e valorizado como modelo, por se tratar de outro meio social e de uma “Civilização” supostamente melhor. Há certa visão determinista - e, obviamente, eurocêntrica - que vislumbra que as pessoas são o reflexo de seu meio, escalonado os grupos humanos, as culturas e as sociedades. Isto justificou tanto o Imperialismo/Neocolonialismo e os processos de territorialização de Estados-Nação contra incontáveis populações nativas desde a primeira metade do século XIX; assim como forjou uma “ciência humana” que durante muito tempo colaborou ideológica e geopolítica mente com a dominação da Europa sobre terras na África, Ásia e Américas.

No Brasil, o Naturalismo e sua Estética também colaboraram para uma autointerpretação histórica de povo e nação adstritas a uma concepção que condena o brasileiro a uma pusilanimidade que se capilarizaria nas microrrelações privadas (de amor e sexo), mas também em relações de vizinhança e de contratos comerciais.

No entanto, a obra de Aluísio de Azevedo, pela verossimilhança que a Literatura tem com o real, permite pensar acerca da formação das paisagens urbanas brasileiras com o processo de industrialização e o projeto de modernização do país que estava em curso na virada dos oitocentos para os novecentos.

No entanto, a pauperização da maioria da população, em especial a que até então era escravizada, qual seja, os negros, que não possuíam a mesma qualificação que os trabalhadores vindos da Europa para trabalhar nas grandes indústrias - o que provocou a periferização e a favelização dos excluídos e indesejados do Brasil, demonstrada na obra através da descrição de amontoados humanos vivendo em moradias precárias - sinaliza a gênese (e a persistência!) de problemas e questões sociais que ainda hoje atravessam a vida de homens e mulheres colocados à margem de um modelo de vida imposto por um sistema econômico e de poder que nos obriga a buscar no famoso jeitinho brasileiro estratégias de burlar normas e regras higienizadoras e eugênicas que não refletem a vulnerabilidade social e, também, a plasticidade moral de quem está em constante tensão e negociação com condições adversas de existência.

Referências Bibliográficas:

ALENCAR, J. Iracema. São Paulo: Ática, 1990.

AZEVEDO, A. O Cortiço. São Paulo: Coleção LP&M Pocket, 1998.

CORAZZA, S. M. A História da Infância Sem Fim. Ijuí: Ed. Unijuí, 2000.

Da MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6° ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FOUCAULT, M. A política da saúde no século XVIII. In __________. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, p. 193-208, 2000.

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__________. História da Sexualidade I - A vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: edições Graal, 1998.

__________. Os Anormais: curso no College de France (1974-1975) I Michel Foucault: tradução Eduardo Brandão - São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal / Gilberto Freyre; apresentação de Fernando Henrique Cardoso. — 48 ed. rev. — São Paulo : Global, 2003. — (Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil.

LOTIERZO, Tatiana. Contornos do (in)visível: racismo e estética na pintura brasileira (1850-1940). São Paulo: Edusp, 2017.

MARCELLO, F.A. Sobre os modos de produzir sujeitos e práticas na cultura: o conceito de dispositivo em questão. Currículo sem fronteira. V.9, n 2, pp 226-241, jul/dez, 2009.

MOISES, M. História da Literatura Brasileira v.1: Das origens ao Romantismo. São Paulo: Cutrix, 1976. 



Gigio Ferreira nasceu no dia 22 de junho de 1967, em Belém do Pará. Cursou Letras. Sua estreia se deu com a publicação da dramaturgia infantojuvenil, O gringo da Matinta (2014), em parceria com a escritora Miriam Daher, pela Editora Giostri-SP. Com exceção do livro O Palhaço de Arame Farpado (2016), poesia, pela Editora Penalux, as suas oito obras publicadas, foram pela Editora Giostri. Atualmente possui dezoito livros inéditos aguardando publicação.


Variações: revista de literatura contempôranea 

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2021




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