TARDÍGRADOS NA LUA - conto de Isadora Salazar

(criancas-soltando-pipa-djanira-da-motta)

TARDÍGRADOS NA LUA


À Octavia , Hanna Duarte  e Sandro Rodrigues

(E também para talvez dialogar com Luis Eduardo Sousa e  Jorge Trindade)



Muitos esperam a chegada do meteoro.

Eu não.

Eu não espero o grande evento.

Nem a praga zumbi que apodrece a alma.

Eu apenas espero fazer os cálculos certos.

Desviar de Marte e talvez rezar para que o ricochete gravitacional em um asteroide errante não me atire contra o the last mangará de bananas vermelhas cultivado sobre a Terra; ou contra a órbita da própria Lua.

Muitos, ou talvez muito pouco de todos, esperam a chegada de um último meteoro e esses não estão nem aí para o extermínio em massa dos dinossauros ou para a chuva de cinzas que ferve sobre São Paulo ; ao contrário, cultivam os mais selecionados ovos das baratas tropicais capazes de desenvolver ferrões e envenenar seus pequenos cães que ganem sem fôlego dentro de seus despersonalizados  apartamentos de passagem.

Ou de paisagem. 

E muitos esperam a chegada de um último meteoro. 

Mas eu não. 

Eu sou a grande destruição. 

Eu sou a porra do Melancholia que já cobre de estática tudo por onde resvala, sou o Nibiru que nasce no horizonte invisível de todas as manhãs bem ao lado do sol que nos manda levantar e comer uma média com pão feito de um queijo mais do que  amarelo e tartrazina. 

E eu sou o cometa. O último cometa que detonou o Golfo do México, e também sou o vulcão, o último vulcão  que derramou lava sob a placa tectônica  do Pantalassa e roubou todo o oxigênio de dentro das fossas abissais repletas de plástico do OceanoAtlânticoPacíficOPacíficAeGentilAmadaMãeTerra -- que És quem Eu Sou.

PlásticoPlâncton. 

Mas eu também sou o agrotóxico.

( a dor espargida por um deus indústria)

E eu também sou bateia.

Mas ninguém sabe que eu posso ser Batheia.

Ninguém nunca sabe de absolutamente nada.   

E então todos simplesmente esperam.

E esperam mundiados entre suas telas e teias repletas de bons avatares  a chegada de um único e grande meteoro que cause o grande evento, o tufão sobre o Haiti, o Ebola sobre um CongoHardMode , ou o maremoto sobre as costas leste/oeste  e mais a extinção em massa de todas as abelhas polinizadoras  da Amazônia. Mas eu não. Porque eu posso ser o  arco flecha  martelo de um Deus Marvel Caveira Senhores Exus DCCompany Pantera Negras Curupira Thor que talvez nem saque nada de grandes poderes ou de grandes responsabilidades – mas que é a potência de um punho vestido de luvas negras sobre os apartheides desse e de todos os outros tempos.

Tempo.

Tempo.

Tempo.

O metrônomo sem pesos.

O Tempo.

O Moon Walker. 

Alguns esperam a chegada de um grande meteoro. Mas eu não. Eu não espero o grande evento. Nem a praga zumbi que apodrece a alma. Ao contrário, observo o tempo, o templo, os sexos, e todos os X-sexos elevados até a última potência ou até a todos os últimos estados da matéria conhecidos pelo Homem e aguardo. Aguardo todos eles assim como busco o Giro do Tempo – a misericórdia Orixá.

E então caminho até a Basílica.

Essa tarde caminhei até a Basílica.

Portas fechadas para mim, dei três voltas ao seu redor e clamei por oxigênio.

Amazônia em chamas e todos os pulmões contritos.

Clamei por todos e também pelo fim das pedras e cálculos , os biliares inclusive -- isso quando me foi permitido sentar próximo a um dos altares da nave lateral próximo a um santificado papa  João Paulo II .

Fechei os olhos.

A respiração cessou.

E observei uma trincheira. Nela um soldado entre lágrimas. Um único soldado entre lágrimas. Estar ali não é sua vontade. Atacar não é a sua escolha. 

E depois fui a outros espaços.

E quando retornei a essa mesma trincheira já era noite e ali não havia mais presença humana. Apenas a benção do último sepulcro que a entidade que se encontrava ao meu lado realizou. “Agora tudo vai ficar bem”, ouvi a voz dizer. 

– Vais contar em um dos teus textos sobre o que vivenciastes dentro da Basílica ? – Meu companheiro de voos perguntou. Mas essa experiência diz respeito apenas ao sagrado, respondo.   

Alguns esperam a chegada de um grande meteoro. Mas eu não. Eu não espero o grande evento. Talvez eu espere o Giro no Tempo. Talvez a misericórdia Orixá. Mas ainda há Orixá sobre essa Terra devastada? Ainda há a lama sagrada de Nanã senhora de todas as regenerações e tartarugas ? 

“Amada mãe Terra que és quem eu sou”.

“Amada mãe Terra”

Amada mãe.      

Mas eu, infelizmente, também posso ser o eixo do caminhão que esfacela crânios às margens de uma muito bem pavimentada estrada de garimpo recoberta de mercúrio, lábios leporinos, cutias e sepultamentos indígenas; ou eu posso ser o canivete que salpica de artéria o teto desse escritório previamente concebido de dor e secção. 

Ainda assim, é mais provável que assim  eu espere a chegada dos cem gramas de ouro escondidos dentro de uma embalagem de Vitamina C pelos quais os jovens aculturados, cobertos de hepatites e outras malárias, são diariamente arregimentados pelas misérias e pelos super luxos para os quais  tanto lutam e tanto matam.

Ou se matam.

E se matam enquanto a garota feliz recebe suas cem gramas de compromisso namoro aliança ouro baixo antes de ouvir seu último “você é minha e só minha” ante o voraz estampido de uma semiautomática ponto quarenta.

“Amada mãe Terra que és quem eu sou”.

“Amada mãe Terra”

“Amada Mãe”.

E então eu posso ser o devaneio. 

O último devaneio.

O surto psicótico de um garoto de vinte anos que abatido por um Sniper de elite que mora na mesma invasão que a dele  também sabe que lá a irmã que sonha em ser bailarina jamais o será antes de ser mãe aos quatorze e ver seus filhos assassinados a caminho do treino de bola aos 27 e que sabe que lá também jamais chegarão  as iniciativas SociaisCulturaisedeSaúde tantas vezes prometidas e tantas vezes negligenciadas pelos incultos que insistem em nos cobrir de silêncios ou de outras omissões. “Chega de sábios e doutores” – eles gritam .  Afinal de contas, Filosofia para o que se eu também  sou a queimada? 

“Bibliotecas para o que?” 

“They Don’t Care About Us” responde um single Michael Jackson   que ouço em meio a esse canto tão dolorido e tão eivado de revolta e pop. 

E nesse dia de cantos pops e queimadas de Humboldt  eu também sou a invasão.

A fossa séptica e o esgoto que corre a céu aberto na rua.

E eu sou a palafita e a mãe que em puerpério tenta afogar o sétimo filho dentro dessa mesma fossa repleta de mãos, de chamas e de templos concebidos de pólvora prata e dourado. 

Mas essa  criança afogada  chora. 

E os vizinhos a salvam.

E quando a salvam ela vai parar em um abrigo.

E dentro do abrigo divide o seu berço miserável com sete outros recém-nascidos. E todos, contaminados pela hepatite daquela fossa de dejetos do poder morrem todos, absolutamente todos, de suas respectivas dores e misérias. E então a jovem estagiária do Tribunal do Júri se revolta – ela quer condenar a mãe pelo homicídio de todos os bebês. “Não tem nexo causal” diz a ela o promotor que oferece a Denúncia apenas pela morte de seu único e próprio filho. Nada tem nexo algum, ela pensa inconformada. 20 anos essa estagiária tem de vida, apenas. E então a gravidade se torna não a força e sim uma hipótese sobre o entrelaçamento de todas as leis quânticas que regem o Universo. Universo em cordas e sem o absolutismo das maçãs que caem inexorável e diárias de todas as árvores, a estagiária pensa. E com uma maçã presa à boca e também pintada como alvo  sobre a sua cabeça a estagiária finalmente percebe o que acontece. E então  a criança que chora , a vizinhança que a ajuda, o giro no tempo dos Orixás, o caos,  o entrelaçamento quântico espaço temporal, o sagrado,  e também o  nunca ninguém sabe de nada também podem ser essa estagiária. Ou também pode ser eu. Ou também pode ser o “They Don’t Care About Us” que meu Michael toca sem parar dentro da minha cabeça pumpkinHead e dos meus ouvidos que zumbem sem parar dentro de uma colmeia repleta de insetos domesticados apesar de todos os seus ferrões, perfídias e venenos.

Ar

Ar 

O ar.

Há osgas em meu sangue.

Há osgas e o mel das baratas em meu sangue.

E nesses dias de osgas, último canto das abelhas pops e queimadas de livros às portas de uma perplexa Universidade de Humboldt em 1933 eu também sou a invasão.

Ou também sou a inversão.

Ou também e então o devaneio 

O tardígrado

a dor

a bala

esse país  

o nunca

Esse nunca. 

Esse nunca onde eu escrevo e ainda o luto para que exista o respeito pelas instituições democráticas.

O Voto.

A Justiça.

Os Direitos Humanos.

A Oposição.

A Liberdade.

O Diálogo.

E a Luta.

E  então os muitos esperam a chegada de um último meteoro. 

Mas eu não.  

Porque hoje tenho duas filhas e quatro gatas, e talvez por isso mesmo a esperança de um último e correto amor nessa vida. Então, espero apenas fazer os cálculos certos, e, sentada na minha mesa da sala de jantar, comer um último pedaço de pizza velha com café requentado enquanto recolho os destroços deixados na caixa de areia dos gatos e torço para não ser a gravidade zumbi que apodrece a alma e me faz o  pino gelado de uma granada puxada dentro da segurança desse ultimo banker iluminado e que  recoberto de jambus, sakuras e ingás se derrama  em cogumelos e em flor sobre as pessoas de dentro dessa e de todas as outras salas de jantar onde pumpkinsheads brincam de roleta russa enquanto degustam deliciosas reduções de  purês gourmertizados feitos a base de abóboras, maçãs e mel.

Esse mel.

O mel. 

O 33.

O diga 33

O ar

E então eu sou a criança que chora; E então sou a criança que chora e posso ser essa criança exatamente porque a criança chora -- E há nessa e em todas as outras mãos o plásticoplânctonâmbar das baleias que também choram e também são a cobiçosa  caça desse cruel horizonte de eventos ; e há bateias, Batheias e osgas em meu sangue. E também há pedras e alguns outros objetos astronômicos em meu corpo deslocado entre as trincheiras de um tempo resgatado pela nave lateral de uma Basílica repleta de anjos e por tantos papas iluminada. “Vai ficar tudo bem”, afirma a voz que me acompanha nesses voos. Vai ficar tudo bem: nós, o experimento final desses e de tantos outros papas. 

E todos, absolutamente todos esperam a chegada do meteoro.

Todos, absolutamente quase todos, esperam a chegada de um último, absurdo e grande meteoro. Mas eu não, porque eu no máximo, me defendo da chegada de uma praga de piolhos ou do eclodir dos ovos rebentados de baratas com  ferrões e que talvez já sejam, eles mesmos,  a chegada  do último  grande evento.

Eu sou a prece. 


(Joyce Luz)

Isadora Salazar

Escritora. 

Autora do Romance Água de Mortas – Editora Patuá / 2017 (Premiado com a Bolsa de Criação Literária Ministério da Cultura 2015); Em 20 de novembro foi mediadora do Bate-Papo A POESIA E SUAS TRAVESSIAS com os autores Marcelo Labes e Milton Rosendo; 28 de setembro integrou o elenco local do espetáculo “Femi Clow Caberé Show” com Cabaré das Rachas DF onde fez a leitura de seu texto Tardígrados na Lua , apresentado no Sesc Ver-o-Peso; Em 27 de  abril participou da roda de Conversas ESCRITA FEMININA DA CONTEMPORANEIDADE , Casa das Artes / Fundação Cultural do Estado do Pará; Foi Sub Comissão Prêmio SESC de Literatura 2019;  Em 25 de março de 2019 foi convidada pela Fundação Cultural do Pará – junto com a Autora Luciana Brandão Carreira --  para  evento O AUTOR E SUA OBRA , em homenagem aos 148 anos da Biblioteca Arthur Vianna; Em 2018, junto com autores convidados que realizaram leituras de seus textos, participou do evento Círculo Onanístico de Literatura, organizado por Ney Ferraz Paiva , no Núcleo de Conexões Ná Figueiredo e Relançou o seu romance Água de Mortas no SESC BOULEVARD;  publicou o conto DIÁLOGO nos Cadernos de Oficina POÉTICAS DO DESASTRE, organizado por Nilson Oliveira , Fundação Cultural do Pará; Publicou o conto CAIXA DE VIRA-LATAS no WORKSHOP DE CRIAÇÃO LITERÁRIA com Simone Brantes, Fundação Cultural do Pará; Entre 2017 e 2018 publicou seus contos nas seguintes  Revistas Digital MARINATAMBALO(http://marinatambalorevis.wixsite.com/marinatambalo); Publicou o conto BATHEIA na Edição 90 da revista física Ô CATARINA(https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1880949255530365&set=a.1382240398734589&type=3&theater) ; Publicou na Edição n° 7 do Caixa de Pont[o} Jornal Brasileiro de Teatro a cena teatral MEL DE BARATAS(http://docs.wixstatic.com/ugd/23361d_3ff3829c2ec6430fabf92ba78bb58a82.pdf ), escrita em parceria com Luis Eduardo de Sousa;  Seu texto IMPERMANENTE BELLE  abriu o espetáculo teatral  CANÇÕES DO TEMPO, sarau musical realizado pelo Grupo Vocal Cantores Contemporâneos, Dirigido por Ana Maria Souza; Autora das cenas teatrais ARAPUCA , dirigida por Lorenna Mesquita e Fabio Brandi Torres para leitura dramatizada dessas cenas pelo projeto DRAMA SESSION 2014, na data de 16 / 6 , São Paulo / SP; Em 2009 foi premiada com a  Bolsa Funarte de Criação Literária, com o projeto de  romance INVASÃO PRÊT-À-PORTER (inédito ); Em 2007 publicou e lançou dentro do evento São Paulo Fashion Week O PARÁ FAZ MODA – DE DENNER ÀS PASSARELAS DO SÉCULO XXI , em co-autoria com FELÍCIA ASSMAR MAIA – Editora Ideias e Letras, São Paulo; Em 1997, seu poema CANÇÃO DO PERDÃO foi musicado por ALTINO PIMENTA e prensado pela SECULT / PARÁ;  Assinou contrato para a circulação literária Sesc Arte da Palavra  por 11 cidades do Brasil , em parceria com a autora paulista  Aline Bei , no ano de 2020. Atualmente finaliza a coletânea de contos  INSETOS e inicia a escrita do romance Panthalassa.


Variações: revista de literatura contempôranea 

V Edição
Edição de Marcos Samuel Costa

2021


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