BRUNO DE MENEZES: JD, 26 – Paulo Nunes

 



BRUNO DE MENEZES: JD, 26 – Paulo Nunes 


Comecei esta crônica com a ideia de falar da teoria dos escritores-paradigma da literatura produzida no Pará, a partir dos anos 20 do século XX, escritores e escritoras que invadiram o século XXI. Percebi, no entanto, que havia algo mais urgente para tratar; uma certa fisionomia do Modernismo brasileiro que tem Belém do Pará como referência. Não só de literatura sobrevém meus argumentos, mas também de uma ação acadêmica fraterna que iniciou no curso de Letras da Unama, no início dos anos dois mil e hoje é partilhada fraternalmente, ou melhor, correalizada com Vânia Torres, da FACOM/UFPA: refiro-me ao Trilhas do Literário, através do qual saímos às ruas semestralmente (ainda não havia a pandemia) para ler os textos literários que autores locais e/ou nacionais que escreveram sobre Belém como “tendo a cidade como personagem ou pano de fundo”. 

Quando o Brasil completou 500 anos de ocupação europeia, eu disse em alto e bom som, em seminário realizado na Universidade de Brasília: “Belém é uma das capitais referenciais do Modernismo brasileiro”. Burburinhos na plateia. Algo cheirava, aos narizes não amazônidas, como bairrismo piro e simples. “É elementar, meu caro Watson”, para a maioria dos não nascidos aqui, somos a região circunscrita ao exótico, “locus” da solidão e da não inteligência. No dia 02 de julho passado no ano de 2021 da “graça de Nosso Senhor”, reafirmo o que eu disse naquele momento, e, mais convicto ainda, na medida em que agora compreendo o que significou a modernização de Belém, graças a ação de Bruno de Menezes Costa (1893/1965), que “partiu para fora do combinado” numa data julina, na amada cidade de Manaus, no vizinho Amazonas. Não adianta nos apegarmos ao bairrismo bobo ou à disputa provinciana; Manaus e Belém, como diz oportunamente Milton Hatoum, são irmãs gêmeas, paridas de um híbrido ventre. Assim prefiro alimentar o afeto que nos liga, abandonando o resto.

Este escrito foi, então, repensado e agora se faz para celebrar os mais de cinquenta anos do falecimento do “babalaô de nossa literatura”, como ao autor de “Candunga” se referia Dalcídio Jurandir, o imenso romancista latino-americano, nascido em Ponta de Pedras, Marajó, Pará, em 1909.

Não vou tratar do fato em si, que envolve uma desavença entre o autor de “Bailado Lunar” e um confrade amazonense de Bruno, o jornalista Mário Ypiranga Monteiro. Quero dizer que Bruno e os “Vândalos do Apocalipse”, depois integrantes da “Academia do Peixe Frito”, abalaram o provincianismo da capital do Pará, a partir dos anos 20 do século passado, ação etílico-irreverente, lúdica, e propositiva que perdurou até os fins dos anos 50 do século passado. 




Bruno de Menezes e sua “troupe”, como aponta a pesquisa iniciada em 2016 por mim e pela doutora Vânia Torres, da UFPA, redesenhou a republicanidade no extremo Norte do Brasil, agrilhoado pelo cânone literário europeu. É quando, salvo engano, a Amazônia experimenta um sistema literário, na linha do que pensa o crítico Antonio Candido.  Hoje talvez disséssemos, referindo-nos a Bruno como um “lacrador”. Senão vejamos, Bruno, sob a proteção de Verequete ou São Benedito, pitou o sete. Primeiramente, em 1923, temos um Bruno baudelairiano em “Bailado Lunar” (nada me tira da cabeça, alô, Salomão Habib!, que Tó e dona Francisquinha, cada um em um contexto, têm responsabilidade direta no acesso que Bruno teve aos “franceses simbolistas”). 

“Bailado...” é um livro em que a modernidade, mesmo ainda marcada pelo Romantismo,  é um fato: cinema, luz elétrica, a mulher inserida no explorador mercado capitalista de trabalho, o flanerismo no “Mont Parnase Paraense”, como gostava Benedito Nunes. Depois, Bruno escreve um livro que é uma hecatombe contra o racismo; refiro-me ao “Batuque”, inserido no volume de “Poesias”, de 1931. Deveria, mas não vou, até mesmo por respeito ao tema, desculpem Vânia e demais colegas da Comunicação, tratar da “Belém Nova” a revista que virou uma espécie de porta voz das inovações modernizantes na Amazônia. Quero mesmo, por dever de ofício, falar da fisionomia de Belém, a cidade modernista que Bruno e os peixefritanos deixaram, pressionando para uma inversão de valores e prioridades etnicoculturais na Belém dos anos 30, 40 e 50 do século XX.




Penitencio-me porque demorei a perceber que, por trás de projetos estéticos individuais de Bruno e seus camaradas, tínhamos uma ação coletivista, afinal o preto anarco-sindicalista, conforme apontam Aldrin Moura de Figueredo (UFPA) e Maíra Maia (Unama/SEDUC), não veio à vida para ser sombra de ninguém, muito menos para passar ileso em seu tempo. Nossos estudos – o projeto “Academia do Peixe Frito: negritude e rebeldia no Norte do Brasil”, parceria Unama/UFPa, apontam para uma ação política e estética em que a Academia do Peixe Frito proporcionou o protagonismo a pretos, cabocos, indígenas e migrantes, os deserdados da era da Borracha, momento enfeixado pela Belle Époque que “faz a festa” das elites amazônicas como fantasmagoria do fausto (não é mesmo, Fábio Castro?), o esplendor, o auge, etc, etc, etc.

Assim é que os das "perifas", mulheres e homens, passam a figurar, ressignificados em poemas, contos, crônicas, romances e reportagens, ocupando o centro da cena que representava aquela Belém, que já vai distante. Bruno, quase sempre assenhorado de Tó Teixeira, De Campos, Jaques Flores, Rodrigues Pinagé (e mais tarde, Dalcídio Jurandir, moço recém-chegado de Cachoeira do Arari, no Marajó), fizeram das baixadas, subúrbios, trapiches, feiras, mercados e botequins, seus pontos de saída e chegada. Belém francesa? Eles não dispensavam, como aliás mostram os estudos de Alonso Rocha e Salomão Larêdo, os cafés parisienses da cidade (Bruno, Jaques e De Campos eram, inicialmente, moços conciliadores, talvez porque soubessem da ferocidade das elites que os poderia boicotar), mas a rapaziada gostava mesmo era de aprender no meio dos canoeiros, feirantes e embarcadiços do Ver-O-Peso, conforme constatam a literatura de Marília Menezes, e o estudo de Lenora Menezes Brito (dissertação de mestrado defendida na USP), duas das que detêm o DNA de dona Francisquinha e Bruno de Menezes. As famílias, como sabemos, podem ajudar ou atrapalhar na difusão da obra de seus ancestrais. Os Menezes têm sido exemplares na difusão do que fez o patriarca da família.

O que se pode dizer como novidade trazida à cena de nossa literatura é que ao perambular, observar e registrar o que viam nas ruas (os peixefritanos adaptaram à Amazônia o método peripatético de aprendizado dos gregos?), os “novos” inventaram uma ótica decisiva para a diversidade em terras do que havia sido o Grão-Pará, que precisava perder a empáfia. E mais ainda, ao esquadrinhar as baixadas de Belém, eles inventaram uma nova fisionomia da cidade que priorizava o Jurunas, o Umarizal, o Guamá, o bairro de São João (atual Telégrafo), a Vila da Barca, a Campina e a Cidade Velha... Seus passos de intelectuais pobres, quase tectônicos, e de periferia estão marcados como pegadas lúdicas, trilhas do literário, no mercado do Ver-O-Peso, no bar Águia de Ouro, na garagem náutica do Club do Remo, no bar Barbinha, no mercado de Santa Luzia, no bar Santa Quitéria, no Paladino, e, sobretudo, na Casa portuguesa da João Diogo, 26, Cidade Velha: talvez o mais importante endereço do primeiro Modernismo paraense. 



João Carlos Pereira, de saudosa memória, cronista ilustre de O Liberal, afirmava algo que tem um quê de exagero, mas diz muito do que defendo aqui. “Bastava chegar uma carta com o nome de Bruno de Menezes como destinatário, o envelope, correndo saía sozinho e se dirigia para a João Diogo, 26, morada de Bruno e dona  Francisquinha. Muitos de nós, que estudamos literatura, sabemos disto, mas o registro de parte significativa da movimentação modernista deste endereço mítico, está registrado no livro “Memorial de Bem-querências: um canto para a Cidade Velha de Bruno de Menezes” (Unama/Cria, 2020), de Marília Menezes, poeta e jornalista, hoje residente em Manaus. Ali Marilia fixou suas memórias e a de seus pais e seus irmãos. Outro livro fundamental nesta direção é o “Epístolas Poéticas: Maria de Belém Menezes e Dalcídio Jurandir”, organizado por mim e Josebel Akel Fares, da UEPA (Paka-Tatu, 2021). 

Deixo aqui, a leitores e leitoras, estas duas pistas que podem acrescentar aos interessados alguns elementos novos para os que estudam nosso Modernismo. A pretexto de falar da morte Bruno, desejo mesmo é celebrar o intelectual nascido na Jaqueira jurunense e formado nos batuques e currais de bois-bumbás, pássaros juninos e festas de mastros devotos, como o de São Benedito, no Ver-O-Peso, que virou estudo etnográfico. Quero, que não, eu preciso fazer loas ao filho de dona Balbina, a “lavadeira-preta-linda”, ereta, orgulhosa de sua africanidade. Balbina ensinou a Bruno a resistência advinda das diásporas africanas. Disto estou certo. Belém sem Bruno e seus Vândalos e peixefritanos, seria outra, e mais sem graça, mens o diversa, menos sonora e colorida.

Por isto, leitores e leitoras, resolvi escrever este texto. Toda cidade importante, como é a capital do Pará (embora a maioria de nós desconheça), tem seus endereços literários. Belém tem alguns, mas a João Diogo, 26 é um dos mais significativos espaços da fisionomia da Metrópole Equatorial, como à nossa cidade refere-se Willi Bolle. JD, 26 é um emblema, endereço onde pisaram modernistas de boa cepa, e ainda outras figuras públicas de destaque como Lindanor Celina, Vicente Salles, Edson Carneiro, Raymundo Vianna, Betina Ferro... Por aquelas paredes míticas transitaram os escritos de Câmara Cascudo, Dalcídio Jurandir, Giovanni Gallo, e tantos outros e outras maiorais. Dona Francisquinha os recebia bem, embora às vezes, com alguma tensão: “... Mas meu preto, será que o que temos será suficiente para reeber bem?”, era a anfritriã zelosa dirigindo-se ao marido Bruno. 



Nunca fui muito adepto de celebrar a morte de uma figura pública. Mas meus cabelos brancos começam a me fazer repensar certos valores. Por isto resolvi celebrar, com entrevista no jornal e com esta crônica, a morte de um autor importante, pois o Brasil atual que está formatado no poder misógino, racista, eivado de todos os tipos de intolerâncias e preconceitos, provoca-me. Bruno de Menezes, sua Academia do Peixe Frito e parte expressiva de nosso primeiro Modernismo, se percebermos a obra que eles nos deixaram como herança, ainda hoje, faz frente a este Brasil minúsculo, filho de falcatruas dos bastidores do poder. A melhor vacina para tudo isto? Peixe Frito com cachaça.


Belém, 02 a 06 de julho de 2021.


[1] É professor e pesquisador da Universidade da Amazônia, Belém-PA; atualmente estuda a Academia do Peixe Frito e as narrativas amazônicas e afro-brasileiras.



Variações: revista de literatura contempôranea 

V Edição - todas as vozes 
Edição de Marcos Samuel Costa

2021

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