Crônica de Franciorlys ViannZa
Quando
soube que o meu amigo Googlielmo cometeu suicídio, fiquei pasmo. Tinha minha
idade. Ele sonhava ser técnico em informática. Um futuro promissor foi
interrompido.
No
velório, a mãe dele chorava sem parar. Algo curioso chamou minha atenção: havia
poucas pessoas presentes; não se contavam vinte. Dentre as quais: o pai dele,
três tias paternas, cinco primos, uma avó octogenária, cinco vizinhos
abelhudos, dois transeuntes que compareceram por causa do cafezinho de morto, e
um amigo (diga-se de passagem, eu).
O
cerimonial de despedida foi curto; se é que podemos chamar de cerimonial um
coro de meia dúzia de beatas cantarolando a trilha sonora predileta de onze
entre dez defuntos: “segura na mão de Deus. Segura na mão de Deus...”. Essa
mesma, leitor, que provavelmente soará no seu também. Olhe pelo lado bom da
coisa, ao menos você não estará vivo para assistir ao pastelão.
Ao
término do cortejo, regressei para casa me sentindo um passarinho molhado,
murcho e silente.
Corri
ao computador. Almejava publicar na internet uma homenagem póstuma. Acessei,
como todo jovem inteirado, a página do Instagram. Clica aqui, clica acolá e
putz! Entrei no perfil do Googlielmo, e na sua bio constava a frase “Amo a
vida”; esse foi justamente o primeiro paradoxo que percebi: como alguém que
declara na internet amar a vida pode cometer suicídio? Constatei que Googlielmo
possuía sete mil, duzentos e cinco seguidores; esse foi o segundo paradoxo:
como alguém que tem tantos amigos virtuais no próprio enterro só teve um
presente?
Apurei
que Googlielmo contava com seis mil e quatrocentos seguidores no twitter, três
mil e cem no Facebook, e quinze mil no Tik Tok.
E
tão estranho que ele tenha escrito na mensagem de despedida (disparado para
todos os contatos do WhatsApp) que dava adeus a esta vida por não suportar mais
viver na solidão.
(...)
Percebamos
que, nos sites de relacionamentos, temos a facilidade de criar tantos
personagens para nós mesmos, tantos “eus” distintos de quem realmente somos.
Veja, posso me tornar “Rodolfo, sua alma gêmea”, no Badoo; posso ser “Felipe,
tatuado e marombeiro” no Tinder; ou quem sabe o próximo usuário a surgir no
Omegle. Posso ser tantos indivíduos que não sou, nem serei, tampouco sei de
onde inventei. Como no filme O Substituto, que narra um estágio da humanidade
onde as pessoas nem saem mais de casa, enviam clones para fazer suas tarefas,
enquanto os controlam da sala de estar, a partir de um computador conectado aos
seus cérebros. Isso possibilita que um homem use um avatar feminino, um adulto
use um avatar infantil, os velhos usem avatares jovens, um gordo use um avatar
esguio, o magro de um ainda mais magro, um alguém use o avatar do que não é
para esconder que o controlador se tornou um ninguém. É o que geralmente
digitamos nas teclas frias de notebooks, netbooks, Ipads e smartphones:
substitutos.
Chegamos
a uma conjuntura que se você me encontrar fora da web terá dificuldade para
acreditar que estive online com você no inbox. Ainda mais porque na foto de
perfil coloquei a imagem dum sujeito alto, loiro, corpo atlético e com olhos
azuis; pessoalmente sou pálido, baixo, franzino e vesgo.
Os
sites de relacionamento deveriam servir para um propósito maior que apenas
entretenimento. Talvez, como meios para nos encontrarmos como seres com
necessidades de socialização. No entanto, têm sido usados por alguns como
maquiagem emocional. Atitude que barra a construção de pontes interrelacionais.
Alcançaremos
a perfeição nas amizades, pois ninguém será alguém. Ser alguém é ter defeitos
reais. A ocultação atrás de figuras cibernéticas, de aplicativos, de
inteligências artificiais, obscurece erros e equívocos. Daí o motivo de eu
apostar que teremos amizades perfeitas: excluiremos a coisa que mais cria
problemas nos vínculos fraternos, que é precisamente o amigo, esse sujeito
intrometido, que traz consigo suas irritantes manias, gostos e discordâncias.
Arrisco-me que não muito distante, o programa de maior sucesso da Apple será algo
como um Friendperfect; o amigo que nem em sonhos irá te decepcionar. Mas caso
ocorra alguma falha, vem com garantia de fábrica. Ressalta-se que se deve
manter o antivírus atualizado.
Em
breve, não existirão mais amizades reais, somente um software que gerencia
hologramas de amigos. Software com quinhentos gigas de memória para armazenar
nossos desabafos como se nada fossem além de dados, facilmente deletáveis.
Pobre
Googlielmo! Na internet teve tantas pessoas para trocar gifs; fora do desktop
foi um jovem carente de abraços, cafunés e sorrisos. Gestos simples, mas que
até aquele supercomputador americano, por nome Watson, vencedor de gincanas
televisivas, é incapaz de reproduzir.
Aproveito
para deixar uma mensagem ao Watson, que a esta hora está orgulhoso do seu
feito.
Vencer
a espécie humana não é tarefa tão difícil; aí está a natureza com suas
intempéries como exemplo. Difícil, caro Wat (posso chamá-lo assim?), é um
congênere estender as mãos para um derrotado e o levantar do chão. Por
curiosidade, Wat, se o seu inventor cair com afecção cardíaca, e não houver
ninguém por perto, você consegue ajudá-lo? Sei que pode, em fração de segundos,
listar os remédios à venda nas terras mais remotas, mas o que quero saber é se
você pode encostar as mãos ao peito do seu criador e fazer uma massagem... Erro
crasso meu! Você não tem mãos.
O
Googlielmo
Franciorlys ViannZa - Coordenador das Mídias VIANNZA TV, organizador do Circuito de Lives com Academias de Letras do Pará, escritor com inúmeros prêmios literários a nível estadual e nacional, inclusive, eleito Autor destaque no Pará (2019) pela curadoria do Baile dos Artistas. É Oficial Ministerial do Ministério Público, professor de literatura, mestrando em Estudos Antrópicos na Amazônia (UFPA), Palestrante, e membro da Academia Castanhalense de Letras.
Variações: revista de literatura contempôranea
Olha, tirei o chapéu. Esta crônica está ( usando uma linguagem da minha época) porreta. Aquela parte da música cantada no velório chegou a me fazer rir.EXCELENTE! PARABÉNS!
ResponderExcluirMagnífico! A ruptura do convívio com presença afetiva, por mais tecnológica que seja, sempre deixará lacunas no que é mais essencial à humanidade.
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