A literatura e seus perigos: ENM, as três letras da saga amazônica de Nicodemos Sena - Paulo Nunes


 "Com A Espera do Nunca Mais, pela primeira vez, temos, na ficção, o caboclo como agente da história,  índio que se destribalizou, e que vive entre dois universos, que se opõem e se excluem” (Vicente Salles).


I: Um romance contextual amazônico


I-A: Hibridação cultural, denuncia a epígrafe do mestre Vicente Salles; e eu acrescentaria: uma literatura para destroçar as colonialidades (ver Valter Mignolo), através de uma narrativa de denúncias, afinal, conforme denunciou Aldir Blanc, “O Brazil não conhece o Brasil...”; sim, há também uma máxima reiterativa de que o Brasil não conhece o Brasil, um desinteresse atravessado de indiferença e ignorância. É possível pensar numa metáfora: o Brasil de costas para si próprio. Em tempo: esta resenha não pretende, naturalmente, esgotar as possibilidades de leitura deste romance, que é rico em suas multifaces. Trata-se de um roteiro de leitura pessoal, que outros podem seguir ou descartar; fica o aviso.

I-B: A Espera do Nunca Mais (ENM), escrito pelo santareno Nicodemos Sena, é um mega romance, de 1.073 páginas que se sustenta por uma escrita fluente, corredia, feito o movimento dos igarapés.  Este livro, refiro-me ao sentido amazônico-contextual, é provavelmente a realização narrativa mais ambiciosa após dos ciclos romanescos de Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 1909/ Rio de Janeiro, 1979) e Benedicto Monteiro (Alenquer, 1924/Belém, 2008), dois escritores telúricos que representaram, singular e adequadamente, as entranhas da terra, suas gentes em minúcias, diversidades e tensões.

Salvo engano esta edição de ENM, 2020, assinada pela Kotter, de Curitiba, é a terceira, o que indica o interesse relativo pelo livro de Nicodemos, num país que produz muita literatura e tem menos leitores que deveria. ENM é livro de difícil leitura por dois motivos: a) pede fôlego dos leitores, que acostumado ao breve, rápido e rasteiro, precisam ter alguma persistência porque o tempo das sagas está ultrapassado pela rapidez contemporânea, e b) o volume enciclopédico deste livro faz com que a leitura se dê de modo muito específico, com o objeto assentado sobre uma mesa, fazendo-se desaconselhável a leitura do volume, com seus quase 5 kg, numa cama ou numa rede, por exemplo. Isto, no entanto, não me parece o mais importante.

Detentor do cobiçado prêmio Lima Barreto, da União Brasileira de Escritores, versão especial comemorativa dos 500 anos do Brasil, este romance traz duas epígrafes: uma gráfico-visual (de autor não identificado) e outra, poética, de Thiago de Melo, autor referencial para a literatura produzida na Amazônia brasileira, na qual se lê “Perdido de mim, não sei/ ser mais o que fui e nunca/ poderei deixar de ser...”, a epígrafe, existencialista, que dialoga, intertextualmente, com o poeta modernista português Mário Sá-Carneiro: “Perdi-me dento de mim, /porque era labirinto/ Hoje, quando me sinto/ é com saudades de mim...” Temos aprendido, nas rinhas dos estudos literários, que as informações pré-textuais dos livros são mais do que acessórios, elas preparam o espírito do leitor para adentrar os labirintos do texto, indicando-lhe pistas ou chaves de leitura. Creio que é o que ocorre aqui, embora não possamos classificar ENM como um livro existencialista stricto senso, ele tem, no engajamento político, defendido pela linha de pensamento de Jean Paul Sartre, um de seus trunfos.

O romance de Nicodemos Sena é dividido em três partes que dialogam entre si e são quase interdependentes. O rural e o urbano, o centro e a periferia não configuram uma dicotomia, mas interfaces do mesmo drama geopolítico de que a Amazônia é sujeito e objeto.




II: Saga maleável, uma narrativa caudalosa

A Espera de Nunca Mais, de subtítulo “uma saga amazônica”, configura a representação da Amazônia, em narrativa vasta, que conta desde a chegado do elemento “estranho”, o colonizador, ao Baixo Amazonas paraense, as cercanias de Santarém, até a cidade grande, Belém, sem deixar de lado referências ao Marajó, não como um locus “edênico”, mas como apêndice do latifúndio e dos desmandos de uma elite paraense, econômica e politicamente. É válido lembrar que uma das famílias mais influentes dos anos 60 e 70 do século XX, os Nunes, tem ligações com o arquipélago do Marajó. Destaque maior para o coronel do Exército, Alacid Nunes, que governou o Estado durante o regime militar de 64. Alacid, entretanto, não é citado nominalmente pelo narrador de Nicodemos Sena.

A narrativa nicodemisiana, espécie de “romanção”, adapta à realidade da Amazônia o sentido originário de “saga”, uma reapropriação do que os portugueses transplantaram, via a língua francesa, das tramas nórdicas mítico-lendário à região Norte do Brasil. Creio que o uso do sentido de saga ali se dá mais pela tentativa de registro ficcional, através de uma narração extensa, do que pela ideia de glorificação dos feitos de uma personagem heroica. Eis, a meu ver, o que justifica uso do sentido de saga na atualidade.

Especulo que ENM foi tramado, mesmo que inconscientemente, antes de ser escrito por Nicodemos Sena. O leitor há de notar que, no estilo de escrita do texto, sobressai-se um forte caráter didatizante, o que para um amazônida relativamente bem informado pode soar como excessivo e desnecessário. Respeitemos, no entanto, esta formatação do autor empírico ao narrador, que foi preparado para, com minúcias e detalhismo (herança provável dos realistas-naturalistas), ensinar ao leitor médio brasileiro e urbano (sobretudo o sudestino) como a Amazônia se caracteriza histórica e geograficamente, uma região que no romance é “vista de dentro”, sem a folclorização comum aos autores exógenos que veem a região como espaço de solidão, locus de estranheza e exotismo. Para grande parte dos brasileiros, a região Norte é uma espécie de “não-lugar”.

A Amazônia, região-insulada, é, portanto, a mais desconhecida do Brasil; embora compreenda quase 60% do território nacional, ela sofre com a indiferença e a ignorância dos brasileiros. Isto certamente motivou Nicodemos Sena a dar vida a um “narrador professoral” que ensina sobre a região e ao fazê-lo, deseja tirar a venda dos olhos dos incautos.




III: Notícias sobre estrutura, movimentos e tipos humanos

Narrativa caudalosa, vasta, que se desenvolve em mais de mil páginas, ENM encerra cerca de 40 anos de tempo da trama de personagens diversos (trata-se mais de narrativa de ações que de personagens), no interior da Amazônia paraense. O destaque do tempo vivido é o contemporâneo, mais precisamente os anos que compreendem a ditadura militar no Brasil.

ENM está estruturado em três capítulos, identificados como “primeira”, “segunda” e “terceira” partes (subdivididos em estâncias menores), estrutura a qual se acrescenta um “glossário” (instância fundamental para reiterar o caráter didatizante do livro, como um recurso de que lançam mão muitos autores da chamada literatura regional brasileira, desde o Romantismo até os dias atuais) e uma “recepção crítica do romance”, na qual consta o que foi publicado sobre o livro. Não esqueçamos que seu autor classificou – desde o título - a narrativa como “saga”, o que dá ao livro uma formatação grandiosa.

A ação externa predomina sobre a reflexão psicológico dos actantes, e isso terá como consequência a concepção de tipos (eles são inúmeros) predominando sobre personagens; tipos e personagens que se moverão nos vários espaços da trama, desde as margens de rios como o Tapajós e o Nambu, na região do Baixo Amazonas, até Belém, cidade que como centro administrativo funciona como uma espécie de teatrum mundi do poder político-econômico durante o violento regime de 1964. Capitão, Tojal, e Anísio são exemplos dos militares torturadores que agiram nos bastidores do regime, o que pode ser lido na estação “última lembrança”, representação das câmaras de tortura do DOI-CODI.

No plano de concepção da obra ressaltam-se as formas de fixar o mundo que são figuradas em dois tipos de narrativas: a histórica e a mítica. No plano da História, percebemos o modo como a região Norte do Brasil se interliga ao projeto de ocidentalização, quando, anexado, o Brasil adere no quando é ocupado por Portugal.  Já no plano das narrativas do mito, percebemos espécie de contra narrativa da ocidentalização, trata-se do modo como o narrador da trama persistem em resistir ao capitalismo sórdido que ocupa a Amazônia.

Os leitores de ENM a um só tempo, conhecerão, no tocante ao projeto de “ensinamento narrativo” sobre a região, Antônio Vieira e Fellipe Bettendorf, religiosos que cumpriram papel fundamental na colonização do leste e do oeste da Amazônia. Do ponto de vista mítico, temos a força expressiva das narrativas do Curupira (intertexto com Couto de Magalhães e Mário de Andrade), da mandioca ou ainda da festa da Tocandira, celebrada como rito de iniciação dos povos da floresta.

A saga amazônica de Nicodemos traz uma estratégia enunciativa das “mise en abyme”, as narrativas em abismo, exploradas com excelência por André Gide na literatura universal; trata-se de narrativa que acolhe em si outras narrativas. Este, creio eu, é o recurso enunciativo, espécie de bricolagem, priorizado por Nicodemos para narrar a saga do extremo Norte do Brasil. Neste procedimento criativo de contar histórias, sobressai-se como o mais marcante o mito indígena de criação do mundo, protagonizado por Rairu e Caru, espécie de versão amazônica para o Gênesis bíblico. Passamos a conhecer tal história a partir do diálogo entre Eduardo e Gideão, quando estes empreendem viagem pelo rio Nambu. Eis aqui o que podemos entender como, na Amazônia, o mundo é explicado pelos mitos.

Mas nem só de lenda vive o romance. Há também as narrativas da deslenda: escravização, grilagem de terra, violência, estupro, e o mais dramático e atual, a construção de hidrelétricas, um ataque frontal à natureza e seus ecossistemas, processo que destrói a vida e impacta os povos que vivem às margens dos rios amazônicos, povos que resistem e ali estão simbolizadas pela personagem Dina, espécie de heroína da trama. Apesar de toda resistência nativa, o capitalismo vence e a hidrelétrica destruidora é inaugurada no rio Maró, com pompas e circunstâncias, pelos capitalistas, nacionais e internacionais, e pelas autoridades locais, que celebram a chegada, “mesmo que um tanto tardia do progresso” àquela remota região. Esta passagem, quase no final do romance, é profética do que aconteceria em Belo Monte, no Xingu, anos mais tarde.


IV: Sarcasmo e ironia como formas de enunciação

Sob a capa do progresso e do combate ao atraso, o chamado desenvolvimentismo tem sido, há mais de trezentos anos, um argumento falacioso que se contrapõe à defesa das florestas e de seus povos, Na Amazônia o capitalismo impõe-nos destruições cotidianas, caras à vida e aos ecossistemas. Devastação e assassinatos tem sido a tônica de nossas vidas. Enquanto faltou ar secaram os rios das grandes cidades amazônicas, Belém, Manaus, Santarém, Marabá, Porto Velho, Boa Vista, Rio Branco... os sudestinos fizeram vista grossa: isso é lá problema deles. Mas quando as queimadas, neste 2021 chegaram a são Paulo, aí o sinal vermelho acendeu: opa, as queimadas chegaram aos céus de Sampa... Cadê o IBAMA, que não faz nada?... Perguntaram os cidadãos brasileiros indignados.

A saga amazônica, escrita por Nicodemos Sena, revira as vísceras do capitalismo periférico através das autoridades, empresários, latifundiários  tratam os biomas amazônicos. Na sessão “O Balé e a Procissão”, vemos o modo como o narrador expõe ironicamente o diálogo entre os exploradores da floresta: Mr. Kolle (o investidor estadunidense), Cândido Ambrósio e Estefano, estes os brasileiros que defendem ações destrutivas, discursos e práticas colonialistas que, desde a ocupação de Belém, no ano de 1616, pelo invasor português, faz a mentalidade de nossas elites, regionais e nacionais, até os dias de hoje.

ENM é, portanto, rascante e “parte para a briga”, quando expõe os males da Amazônia. Se eu tivesse de escolher um capítulo para sintetizar a crítica sociopolítica empreendida pelo narrador, ele seria, sem dúvida, o “Balé e a Procissão”. Trata-se da passagem em que a ironia de Nicodemos Sena se aproxima daquela desenvolvida por mestres como Machado de Assis e Dalcídio Jurandir. Esta estratégia, a linguagem irônica, configura um investimento enunciativo ousado e necessário, que objetiva mostrar que a região Norte enfrenta dilemas e é feita de deslendas e dramas humanos incomparáveis em todo o planeta Terra.


V: A literatura no século XXI, afinal, continua a ser um acessório social?

Já houve tempo em que a literatura foi considerada um acessório, espécie de fru-fru-falácia que se contrapunha às ciências sociais e suas verdades. Hoje, felizmente, as ciências veem a literatura como uma parceira nas trilhas humanizadoras, ou ainda: a literatura como uma “interatora” destas mesmas áreas de conhecimento científico. Se a História não é devedora do da ficção, ela fez-se uma parceira que divide com a literatura o protagonismo em muitos saberes. Antonio Candido, sociólogo e crítico, mestre de muitos de nós, ressalta a ideia de que a literatura configura sistema sociocultural que se enriquece na medida em que leitores e leitoras fazem uso de poemas e narrativas, disponíveis, publicados. O esforço, hercúleo esforço, de Nicodemos Sena, se depender de mim, será recompensado com a referenciação de um livro que não é fácil de absorver, deglutir, mas como um bom prato – sarapatel, feijoada ou maniçoba - necessita de dedicação e calma para ser digerido com sabor, um livro de narrativa extensa também demanda parcimônia e calma para se fazer saber. Sabor e saber, não preciso dizer a ninguém, que são significantes que têm no latim o mesmo radical e base etimológica, pretexto e chave para leitura. Desta feita que mais leitores e leitoras possam saborear a saga amazônica do escritor santareno radicado no Estado de São Paulo. A Espera do Nunca Mais, e suas três edições o comprovam; o jeito é mergulhar neste rio amazônico.

 

 

 

 


 

 



[1] Paulo é pesquisador da Universidade da Amazônia, Belém-PA; atua como professor da graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Unama; é consultor da Casa de Cultura Dalcídio Jurandir, um dos responsáveis pelo acervo Dalcídio Jurandir do Fórum Landi/Projeto Moronguetá  (FAU-UFPA).



Variações: revista de literatura contemporânea 

V Edição - todas as vozes 
Edição de Marcos Samuel Costa

2021



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