Sumo do Chão - Paloma Franca Amorim
Quando criança
acostumara-se a ser chamada por toda gente de dentucinha, tudo por causa do
pequeno acidente à Praça de República. Aquele acidente da bicicleta vermelha no
qual pela falta de equilíbrio dos sete anos e pelas forças gravitacionais do
planeta foi parar de cara no chão perdendo uma lasca do dente da frente, dente
definitivo, lastimavelmente insubstituível.
Chamavam-lhe dentucinha
nas alcovas, à voz baixa, pelos cantos, sem desconfiar que a menina, munida de
ouvidos de tuberculoso, podia tudo saber a mil distâncias, também lendo a beira
dos lábios das pessoas ou deitando-se no regaço das intuições, por onde flanava
sem covardias e descobria o mundo pé ante pé grávida de expectativas.
Sei que me chamam
dentucinha, mas meu nome é Angélica.
Não era loira, nem alta,
nem magra. Vivia no contrário disso.
Morava com a avó, dona
Lorena, uma senhora muito velha e muito amorosa que lhe preparava umas tapioquinhas
deliciosas pela manhã acompanhadas de uma boa xícara de leite com nescau bem
misturado porque Angélica não suportava aquelas bolotas formadas pelo chocolate
mal dissolvido, pareciam terra doce. Terra, terra mesmo, era salgada. Sabia
porque uma vez os meninos da rua a obrigaram a engolir uma beberagem dizendo
ser o achocolatado da avó. Era nada. Era puro solo misturado com água, sumo do
chão, não matava a sede só dava vontade de chorar.
A língua áspera de poeira
e pedrinha só aquietou algumas horas depois, no tempo que as crianças levam
para se perdoarem umas às outras de suas perversidades impostas sobre as costas
lanhadas da infância. Daí pra frente Angélica provou outros sabores, gostava de
bala de tutti-frutti e de comer cabelo. Chupava manga com destreza
desvencilhando-se hábil dos fiapos entrelaçados nos dentes. Afinal, na frente
quase não os tinha.
Pelo menos não me chamam de
banguela que é pior que dentucinha.
Angélica gostava de olhar
a tarde caindo como se fosse um desabamento em câmera lenta, perguntava-se por
que era impossível escutar os rangidos do sol se deslocando no espaço. Era
mesmo que o astro-rei realizava aquele percurso de maneira tão educada e
silenciosa? Nem mesmo o crepitar de suas asas fazia barulho?
Abria com cuidado a
atenção como fizesse com um pacote de balas no cinema e punha-se a auscultar o
sol, a tarde, os tíbios deslocamentos da luz ao longo da cidade.
A cidade para ela era até
onde chegava a última casa da rua ao lado da última árvore da rua.
Naquele tempo era assim,
as coisas muito grandes cabiam nas pequeninas e por isso tudo cabia em Angélica,
ela que só era criança não sabia ser mais do que uma meninazinha, dessas
inazinhas que sombras e monstros às vezes desejam.
Angélica não tinha mãe.
Pai também não havia. Não precisava deles, tinha a avó Lorena e estava tudo
bem.
Naquela tarde o calor
inundava todos os buracos do corpo, o mundo tremelicava sob a distância
vaporosa. Angélica pensava nos mosquitos que lhe abocanhavam a alma,
espantava-os. Estava com fome. A avó lá dentro do quarto já tinha dado dez e
meia e nada de levantar. Bonita a borboleta amarela que desabotoa a mesmice do
céu. A avó lá dentro com os olhos cerrados feito um anjo. A brisa que se
amolece no rio e beija as faces sem pudores medievais. A avó lá dentro. E a
chuva de mil agulhinhas sobre a pele. Completamente gelada.
Paloma Franca Amorim nasceu no
ano de 1987 em Belém do Pará, é formada em Artes Cênicas pela Universidade de
São Paulo. Em 2017, lançou seu primeiro livro de contos "Eu Preferia Ter
Perdido Um Olho", publicado pela Alameda Casa Editorial. Além de
escritora é pesquisadora e crítica de artes da cena, educadora e artista
visual. Em 2021, lançou seu primeiro romance "O Oito", mais uma
vez editado pela Alameda Casa Editorial.
Variações: revista de literatura contemporânea
belo e sutil ... adorei seu conto!!
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