Sumo do Chão - Paloma Franca Amorim

 


Foto da exposição "Espelho dágua", de Luiz Braga Foto: Luiz Braga / Divulgação

Quando criança acostumara-se a ser chamada por toda gente de dentucinha, tudo por causa do pequeno acidente à Praça de República. Aquele acidente da bicicleta vermelha no qual pela falta de equilíbrio dos sete anos e pelas forças gravitacionais do planeta foi parar de cara no chão perdendo uma lasca do dente da frente, dente definitivo, lastimavelmente insubstituível.  

Chamavam-lhe dentucinha nas alcovas, à voz baixa, pelos cantos, sem desconfiar que a menina, munida de ouvidos de tuberculoso, podia tudo saber a mil distâncias, também lendo a beira dos lábios das pessoas ou deitando-se no regaço das intuições, por onde flanava sem covardias e descobria o mundo pé ante pé grávida de expectativas.

Sei que me chamam dentucinha, mas meu nome é Angélica.

Não era loira, nem alta, nem magra. Vivia no contrário disso.

Morava com a avó, dona Lorena, uma senhora muito velha e muito amorosa que lhe preparava umas tapioquinhas deliciosas pela manhã acompanhadas de uma boa xícara de leite com nescau bem misturado porque Angélica não suportava aquelas bolotas formadas pelo chocolate mal dissolvido, pareciam terra doce. Terra, terra mesmo, era salgada. Sabia porque uma vez os meninos da rua a obrigaram a engolir uma beberagem dizendo ser o achocolatado da avó. Era nada. Era puro solo misturado com água, sumo do chão, não matava a sede só dava vontade de chorar.

A língua áspera de poeira e pedrinha só aquietou algumas horas depois, no tempo que as crianças levam para se perdoarem umas às outras de suas perversidades impostas sobre as costas lanhadas da infância. Daí pra frente Angélica provou outros sabores, gostava de bala de tutti-frutti e de comer cabelo. Chupava manga com destreza desvencilhando-se hábil dos fiapos entrelaçados nos dentes. Afinal, na frente quase não os tinha.  

Pelo menos não me chamam de banguela que é pior que dentucinha.

Angélica gostava de olhar a tarde caindo como se fosse um desabamento em câmera lenta, perguntava-se por que era impossível escutar os rangidos do sol se deslocando no espaço. Era mesmo que o astro-rei realizava aquele percurso de maneira tão educada e silenciosa? Nem mesmo o crepitar de suas asas fazia barulho?

Abria com cuidado a atenção como fizesse com um pacote de balas no cinema e punha-se a auscultar o sol, a tarde, os tíbios deslocamentos da luz ao longo da cidade.

A cidade para ela era até onde chegava a última casa da rua ao lado da última árvore da rua.

Naquele tempo era assim, as coisas muito grandes cabiam nas pequeninas e por isso tudo cabia em Angélica, ela que só era criança não sabia ser mais do que uma meninazinha, dessas inazinhas que sombras e monstros às vezes desejam.    

Angélica não tinha mãe. Pai também não havia. Não precisava deles, tinha a avó Lorena e estava tudo bem.

Naquela tarde o calor inundava todos os buracos do corpo, o mundo tremelicava sob a distância vaporosa. Angélica pensava nos mosquitos que lhe abocanhavam a alma, espantava-os. Estava com fome. A avó lá dentro do quarto já tinha dado dez e meia e nada de levantar. Bonita a borboleta amarela que desabotoa a mesmice do céu. A avó lá dentro com os olhos cerrados feito um anjo. A brisa que se amolece no rio e beija as faces sem pudores medievais. A avó lá dentro. E a chuva de mil agulhinhas sobre a pele. Completamente gelada.  




Paloma Franca Amorim nasceu no ano de 1987 em Belém do Pará, é formada em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo. Em 2017, lançou seu primeiro livro de contos "Eu Preferia Ter Perdido Um Olho", publicado pela Alameda Casa Editorial. Além de escritora  é pesquisadora e crítica de artes da cena, educadora e artista visual.  Em 2021, lançou seu primeiro romance "O Oito", mais uma vez editado pela Alameda Casa Editorial.


Variações: revista de literatura contemporânea 

V Edição - todas as vozes 
Edição de Marcos Samuel Costa

2021

 

 

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