CÍRIOS SUSPENSOS - crônica de Carlos H. Moraes

 

(F O T O  P O R: C a rlo s H. M o r a e s)

Círios suspensos

 

Para: Rute Lage.

 

O vento divertia-se com os sabores que perfumavam os prédios velhos e rudes. Na distância de fogões e panelas ardendo de sabores que não permitiam-se ser secretos, apenas sacros. Oatmosféricos.

Exibidos nas praças, ruas e sacadas verdes em cor, pelo musgo doce das mangueiras fêmeas, velhas e difíceis. Quase aposentadas naquele meio fio de cidade encharcada pelo suor aquecido, pelo breu tímido de sombras que não tinham dono, enquanto o dia parecia ser um personagem no teatro de algum clima doce e oloroso. Tomando consciência das ruas decoradas com fita e grafite.

O mesmo dia que convidou D. Rute para ver o rio de corpos e orações que estava a um apartamento de distância.

Seus ritos de círio eram religiosamente programados. Os balões, o banho estressante com a cuidadora, as fitas de papel, as carteiras de cigarro, as visitas de sapatênis, o bacon na maniçoba e o tucupi batizando a carne de pato.

Tudo fabricado com carinho e ansiedade para ver e sentir a santinha abençoar sua família e seu semblante de saudade e remorso.

Mas algo parecia errado. Quando conseguiu ir para a sacada e ficar de pé para contemplar a procissão, percebeu que a berlinda dourada estava escondendo-se de sua visão. Parecia caminhar com pressa para os desfechos, dobrando a esquina e deslizando rumo a basílica branca e lotada de mãos, olhos e choros de espiritualidade frágil. A berlinda nunca correu tão lépida. Fugindo dos olhos de D. Rute.

Porque tanta pressa para a fé?

Sua frustração resumiu-se estourando alguns balões com o cigarro amassado e ereto nos dedos trêmulos e confusos.

Deslizou os olhos para o movimento claustrofóbico dos fieis logo a baixo. Ali do primeiro andar podia perceber o semblante do público religioso que se vestiam de branco e esfolavam os joelhos no asfalto húmido e quente de suspiros, promessas e arrependimentos. Perdeu um pouco de interesse no círio deste ano. Mas logo sentiu uma pequena ansiedade formigar nos joelhos.

Foi quando se viu na multidão.

Jovem e sem rugas fáceis.

Vestida de branco enquanto os cabelos se prendiam em um pequeno laço. E suas mãos seguravam fracamente as mãozinhas finas e suadas de uma menina. Sua única filha. Agora com os olhinhos cheios, devorando no pensamento algum algodão doce pendurado em algum cabo de vassoura. Mesmo com os pezinhos doloridos, sua filha parecia se divertir com a bagunça de gente e o barulho de orações que não tinham fim. Enquanto o colorido dos miritis dançava nas cabeças dos promesseiros molhados de dor.

Do primeiro andar, D. Rute viu a si mesma e sua filha sumir naquele rio humano. Sabia que aquelas águas tinham fluentes que nunca mais voltariam. Embora os arrependimentos ficassem a margem de sua memória. Águas paradas de seus fracassos como filha.

Como mãe.

Se arrepender ajudaria?

Tinha certeza que não. Sabia que as cicatrizes ainda estavam em carne viva e pulsando no remorso de alguma fotografia na estante. Ou em alguma ligação da tarde.

Uma saudade esquisita visitou seu cansaço.

Pensou em dormir.

Mas lembrou que o dia ainda estava jovem demais para chorar.

Praguejou para com a sua cuidadora. E pediu para retorna para a sala.

Lembrou que tinha que fumar alguns cigarros e um círio suspenso e veloz para assistir na TV.




Variações: revista de literatura contemporânea 

V Edição - todas as vozes 
Edição de Marcos Samuel Costa

2021


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