Pedral do Inferno ou o “rio Tocantins, o mais bonito do mundo...” – Paulo Nunes[1]

 




Pedral do Inferno ou o “rio Tocantins, o mais bonito do mundo...” – Paulo Nunes[1]

 

“É preciso ficar com um olho no peixe outro na frigideira”, dizia minha avó, quando começamos crescer. Este dito popular que, diferentemente de alguns outros que caíram em desuso, se ressignifica a cada novo momento histórico. O que guardo da fala avoenga é o sentimento que atravessou minha leitura do livro Pedral, canal do Inferno (São Paulo, Empíreo, 2021), último romance de Salomão Larêdo. Larêdo é escritor que conheci nos Encontros de Literatura Paraense que Josse Fares organizava no nosso Mãos Dadas, grupo lítero-musical, surgido no Colégio Estadual Deodoro de Mendonça. Larêdo, primeiro como ouvinte, depois como participante, nos prestigiava e levou seus livros para Josse divulgar entre nós, alunos deodorinos. Pois bem, Salomão Larêdo é um intelectual que, entre os leitores paraenses, dispensa apresentações; é dos nomes contemporâneos mais atuantes na literatura e no jornalismo de Belém, ele destaca-se também como um “agitador cultural” e dos sujeitos mais proativos de nossas letras. Larêdo, junto com Deborah Miranda, Edyr Augusto Proença e Felipe Larêdo, criou a importantíssima Feira Literária do Pará – FliPa, que reúne, em 3 dias, uma infinidade de autores e leitores em torno do livro na cidade de Belém. Se nada mais tivesse feito, só esta ação em prol da leitura já faria de Salomão Larêdo uma referência, mas ele, sabemos, tem feito mais, muito mais, nos arraiais da linguagem.




Larêdo, ao lado de Ruy Barata e outros próceres, fundou a saudosa Associação Paraense de Escritores, na década de 80 do século passado, de lá para cá, não parou mais de produzir; ele vem construindo obstinadamente, tijolo a tijolo, uma obra literária de significativo volume e pródiga em retratar o seu lugar (“queres cantar o mundo? comeces por tua aldeia”, anunciou um certo poeta-profeta) os rincões amazônicos, que a maioria do “leitor médio” brasileiro, infelizmente, desconhece. A maioria dos nossos nacionais, sabemos disto, insiste em cristalizar a Amazônia como espeço da não inteligência, um sertão de bichos e gente exóticas. Salomão Larêdo, a cada livro lançado, quebra a castanha na boca dos desavisados de plantão e, assim, ajuda a ampliar o mapa da geopoética romanesca brasileira. 

O Pedral... é livro bem editado, com capa e projeto gráfico de Renata Milan, traz papel pólen soft, que facilita, e muito, a leitura de pessoas que, como eu, têm problemas de visão. Mas não e o cuidado editorial que mais importa, embora ele também seja fundamental, pois Pedral... caracteriza-se por uma linguagem peculiar. Se eu pudesse aqui resumir minha impressão, diria que ele é um romance que se faz de e pelo "apuro de linguagens", experimental exercício advindo de um experiente escritor que fez das redações dos jornais sua maior escola; Pedral... traz enunciação inquieta, sempre em busca de novos caminhos, em conformidade com a prosa hoje produzida no Brasil. Desde Senhora das Águas (1981), é bom que se diga, Salomão Larêdo permite-se experimentar, e tem dado certo, visto o volume de leitores de sua obra, leitores que só fazem multiplicar-se. 

 


A mobilização em torno da trama do referido romance é predominantemente geopolítica, investe na desocultação do "Canal do Inferno" e o desmascaramento de interesses na exploração e na reapropriação da natureza amazônica por grupos e pessoas alimentadas pelo capitalismo, da pior espécie, que aqui se pratica... Assim é que as verossímeis criaturas da narrativa, seres de papel, intencionalmente, creio eu, estão mais para tipos que personagens, e, no meu entendimento, elas, fosse possível medir com metro rigoroso, não exercem a mesma importância do espaço e dos fatos narrados no enredo do romance (é preciso mesmo pensar que esta nomenclatura, romance, está adequada a esta narrativa híbrida). Através do pacto estabelecido com seus leitores, o autor diegético, manipulado pelo “autor real”, visa a um registro da vida cotidiana das populações ribeirinhas afetadas pela hidrovia Araguaia/Tocantins. As denúncias, por vezes desabusadas, remetem ao sarcasmo, denúncia que, mais que necessária, faz-se fundamental, neste momento em que o Brasil não se cansa de alcançar índices desastrosos em relação à destruição da natureza. Assim a literatura de Salomão Larêdo é também um manifesto político.

O texto de Larêdo, acredito eu, bebe em duas fontes fertilizantes: a história e o jornalismo, no que o livro ajuda a desvelar a Amazônia profunda, que está para além das referências turísticas e superficiais. O autor diegético não deixa de avisar sobre o uso de diversidade de gêneros de escrita no texto que ele vai narrar. Pedral... integra um projeto político e poético que visa a ensinar, até mesmo para os cidadãos belemenses desinformados, sobre a realidade que está mais distante das vivências da capital. Deste feita este romance figura-se engajado e tem a pretensão de pedagogicamente apontar caminhos, mesmo sem dizer claramente quais são eles. 

A minha leitura do Pedral, canal do Inferno me remeteu a uma máxima de Eugene Horn, citado por Eidorfe Moreira: a Amazônia não é terra de farturas e excessos; ela é na verdade, um espaço de contradições e misérias contrastantes. É exatamente o que sinto com esta narrativa engendrada pela diegese salominiana. Muita miséria e pouca saúde, os males da Amazônia são?

 


As estâncias (capítulos curtos que dão organicidade ao texto) 189/190 talvez sejam os momentos de maior dramaticidade narrativa, maior tensão; é quando o narrador dá destaque aos trabalhadores subjugados pela exploração humana, o “trabalho análogo à escravidão”, como eufemisticamente explica grande mídia; escravização tão recorrente neste verdevagomundo brasileiro, na maioria das vezes, promovido por grandes figurões da sociedade.

Salomão Laredo, embora tenha desenvolvido um estilo singular, é autor fortemente influenciado pela tradição de Jorge Amado, João Antônio e de Ignácio Loyola Brandão. Sua forma múltipla de escrita, no entanto, foi aprimorada no oficio de jornalista, talvez a melhor e mais potente escola. O repórter investigativo e o pesquisador que virou mestre em Letras pela UFPa com um estudo sobre Raymundo de Moraes, põe toda sua energia a serviço de da narrativa literária amazônica, e não me nego de lembrar seu antológico romance Sibele Mendes de amor e luta, editado em fins do século passado. 

Larêdo, no entanto, quando pratica a literatura afasta-se do rigor do texto jornalístico quando faz seu texto ser atravessado por adjetivos e advérbios, o que não deixa de constituir uma estratégia de linguagem que tende a provocar uma aproximação mais imediata do leitor diante dos fatos narrados. É, mal comparando, como se estivéssemos diante do jogo malino que entre a aranha e o inseto, no qual a teia é o texto-linguagem, e nós, leitores-insetos atraídos a ela.

Se quisermos perceber a aplicação de alguns princípios bakthinianos, o da polifonia, por exemplo, no texto do autor cametaense, podemos tranquilamente fazê-lo. Pedral é um dos textos mais “tagarelas” que se escreveu por aqui ultimamente. O Pedral, canal do Inferno, é efetivamente uma sinfonia de vozes num coro polifônico, político. A algaravia de vozes dos deserdados pelo capitalismo nas fronteiras do Brasil, encontra no romance de Salomão Larêdo um grande exemplar. Curioso é o fato de que o romance traz anexos como a Carta de Cametá, assinada por diversas entidades de defesa dos direitos humanos que se opõem à construção da hidrovia Araguaia/Tocantins. Por sinal, os textos de abertura e descerramento do romance merecem um olhar atento dos leitores. Eis um lançamento intenso, que está disponível nas melhores casa do ramo. Avante!

 

 


 



[1] É poeta; pesquisador da Universidade da Amazônia, Belém-PA.



Variações: revista de literatura contemporânea 

V Edição - todas as vozes 
Edição de Marcos Samuel Costa

2021

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