Oito poemas de André Luiz Pinto
Os
poemas a seguir fazem parte do livro inédito “O guru”
DIA
Sábado. Dia
de Santo Antônio.
Do outro
lado da rua, fiéis se aglomeram.
A igreja não
está abarrotada, só cheia o suficiente.
São seis
horas, e a garoa que corta a cidade é serena.
Faço o café.
O segredo para um bom café
está em dar
uma fervida prévia no bule
ainda mais
com doze graus lá fora
como o
hálito escovado de certas bocas
que a gente
beija e se dá bem. E a neblina
se adensa,
cerca nossa rua, e a igreja desaparece.
RELIGIOSA
Sabe
essas senhorinhas em que a maquiagem
acaba
mais iluminando que cobrindo
as
rugas? Pois lá estava uma, sentada a duas cadeirinhas
bebericando
não sei
se
café ou chá.
Seja
chá, mais
apropriado
ao simbolismo
que
procuro.
Bebericava
em meio
às
mastigações
da
torrada
que
equilibrava
com
as mãos.
O
único aspecto
indelicado,
e até diria, demasiado
pois
fazia par com o meu
de
bisbilhoteiro
era
o batom
que
esmaltava
só
levemente o dente.
O
sotaque anasalado
ipanemense
também lhe distinguia.
Havia
outra diferença
entre
nós: o lado para o qual se olha o cardápio.
Eu
começava
a
me simpatizar com ela
não
fosse a hora da gorjeta.
Ela,
por mais que disfarçasse, não escondia o gozo
o
porquê era contra
direitos
óbvios. Impedir-lhe
a
caridade jamais!
“Como
o populacho foi capaz
de
preferir as leis
às
minhas provisões?”
POETA, E ACUMULADOR COMPULSIVO
Não sou eu, é a
casa que acumula
destroços – desafio
a passar pela porta
e não pisar pelo
menos
em cinco – desafio
a ir até a cozinha
sobre as fatias
de pizza largadas
no chão.
Isso que você está
sentindo
é o mormaço das
palavras.
Sim, para fazer o
que faço
escala-se a
garganta
cospe-se alguns
versinhos – esses aí, que acabou
de escutar, estavam
debaixo da mesa
correndo feito um
ratinho
em meio a caixas
& sonhos
empacotados.
LIÇÃO
I
Tales
não tenha pressa
em adivinhar
as palavras
eu também
passei por isso
e agora não
me lembro
mais;
quando, enfim
as palavras
desgrudam
da paisagem,
enquadrando
a paisagem então.
II
Olhe as letras,
veja como funcionam:
a crase é um acento agudo
contrariado.
O mar se movimenta por cima da
palavra não.
É preciso de calma para pescar
as palavras, soletrar suas
significações.
O dever de casa dessa vez
era escrever bola.
NADA MAIS
TEMÍVEL QUE CRIANÇA
Nada mais
temível que criança.
Recém-nascido
nem me fale.
Nada mais
aguardado que criança.
Você crê que
pode alguma coisa
mas não pode
nada. Vê-la dá saudade.
E quando
finalmente dorme
anda-se na
ponta dos pés, de costas
qual
agricultor maia, fazendo de tudo
para não
despertar a ira de Deus.
CARTILHA
p/ Diana Junkes
O que há de gigante é a linguagem incontornável
extemporânea, anacrônica, da poesia.
Há quem a chame de poder. Eu a chamo
de força. Há quem prefira a palavra
empoderar, imponderável, empoderadamente.
São novas e outras as instruções de uso:
e não se diz mais todos, mas todes
e não mais homens e mulheres
mas cis e trans. Contra a bíblia
dos recalques, há um dicionário
de amizades, uma cortina de
espelhos em afronta aos imperativos.
TRANS
Só agora SEI o que SOU
e essa combinação me completa
adão sem púbis
mulher-foguete
(rocket-woman)
mistura de toda crença.
Não queiram
a coerência côncava
e convexa.
Não sonhem
com a alegria dos sábios
por pretensões.
Nem pensem em cair
na graça das hipérboles.
Digo isso porque digo para mim
nada
nem
ninguém
vão te diminuir.
Nem o amor cometido
– ainda cru
mas
que para outro pareça em desuso.
Só agora celebro a glória
de minhas maltrapilhas aporias
malbaratadas agonias
em que escondo
um verdadeiro motivo.
Me dê motivo
e com o timbre
do Tim
CIDADE PEQUENA
p/ Dimas de Abreu Melo
A
família era vizinha ao cemitério.
O
cemitério se via de casa.
Dele
também se via o deserto
o
campo onde se jogava bola
o
crânio arranjado pelo coveiro
para
os garotos brincarem.
Via-se
também o destino
de
nossa vida pela janela
naquela
terra revirada.
Cedo
ou tarde eu teria
de
ir embora... Mas, se era
para
ir embora, que fosse
além
daquela quadra assombrada
onde,
toda noite, um rojão
de
fogos fátuos era solto
e com eles, as comemorações.
Variações: revista de literatura contemporânea
Que frescor e força advém destas palavras... Um poeta que se desvela e sempre numa linguagem tão anacrônica e necessária. Há que se de ser: como não cinhecia estes poemas antes?
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