Oito poemas de André Luiz Pinto

 


Elza Lima (Araweté. Xingu. 1989).

Os poemas a seguir fazem parte do livro inédito “O guru”

 

DIA

 

 

 

 

Sábado. Dia de Santo Antônio.

Do outro lado da rua, fiéis se aglomeram.

A igreja não está abarrotada, só cheia o suficiente.

São seis horas, e a garoa que corta a cidade é serena.

Faço o café. O segredo para um bom café

está em dar uma fervida prévia no bule

ainda mais com doze graus lá fora

como o hálito escovado de certas bocas

que a gente beija e se dá bem. E a neblina

se adensa, cerca nossa rua, e a igreja desaparece.

 

 

RELIGIOSA

 

 

Sabe essas senhorinhas em que a maquiagem

acaba mais iluminando que cobrindo

as rugas? Pois lá estava uma, sentada a duas cadeirinhas

bebericando não sei

se café ou chá.

Seja chá, mais

apropriado ao simbolismo

que procuro.

Bebericava em meio

às mastigações

da torrada

que equilibrava

com as mãos.

O único aspecto

indelicado, e até diria, demasiado

pois fazia par com o meu

de bisbilhoteiro

era o batom

que esmaltava

só levemente o dente.

O sotaque anasalado

ipanemense também lhe distinguia.

Havia outra diferença

entre nós: o lado para o qual se olha o cardápio.

Eu começava

a me simpatizar com ela

não fosse a hora da gorjeta.

Ela, por mais que disfarçasse, não escondia o gozo

o porquê era contra

direitos óbvios. Impedir-lhe

a caridade jamais!

“Como o populacho foi capaz

de preferir as leis

às minhas provisões?”

 

  

POETA, E ACUMULADOR COMPULSIVO

 

 

Não sou eu, é a casa que acumula

destroços – desafio

a passar pela porta

e não pisar pelo menos

em cinco – desafio

a ir até a cozinha sobre as fatias

de pizza largadas no chão.

Isso que você está sentindo

é o mormaço das palavras.

 

 

Sim, para fazer o que faço

escala-se a garganta

cospe-se alguns versinhos – esses aí, que acabou

de escutar, estavam debaixo da mesa

correndo feito um ratinho

em meio a caixas & sonhos

empacotados.

 

 

 

LIÇÃO

 

 

 

I

 

 

 

Tales

não tenha pressa

em adivinhar as palavras

eu também passei por isso

e agora não me lembro

mais; quando, enfim

as palavras desgrudam

da paisagem, enquadrando

a paisagem então.

 

 

 

 

II

 

 

 

Olhe as letras,

veja como funcionam:

a crase é um acento agudo contrariado.

O mar se movimenta por cima da palavra não.

É preciso de calma para pescar

as palavras, soletrar suas significações.

O dever de casa dessa vez

era escrever bola.

 

 

 

NADA MAIS TEMÍVEL QUE CRIANÇA

 

Nada mais temível que criança.

Recém-nascido nem me fale.

Nada mais aguardado que criança.

Você crê que pode alguma coisa

mas não pode nada. Vê-la dá saudade.

E quando finalmente dorme

anda-se na ponta dos pés, de costas

qual agricultor maia, fazendo de tudo

para não despertar a ira de Deus.

 


 

CARTILHA

 

 

 

p/ Diana Junkes

 

 

 

 

O que há de gigante é a linguagem incontornável

extemporânea, anacrônica, da poesia.

Há quem a chame de poder. Eu a chamo

de força. Há quem prefira a palavra

empoderar, imponderável, empoderadamente.

São novas e outras as instruções de uso:

e não se diz mais todos, mas todes

e não mais homens e mulheres

mas cis e trans. Contra a bíblia

dos recalques, há um dicionário

de amizades, uma cortina de

espelhos em afronta aos imperativos.



TRANS

 

 

 

Só agora SEI o que SOU
e essa combinação me completa
adão sem púbis

     mulher-foguete

                     (rocket-woman)
mistura de toda crença.
Não queiram
a coerência côncava
e convexa.
Não sonhem
com a alegria dos sábios
                           por pretensões.
Nem pensem em cair
                   na graça das hipérboles.
Digo isso porque digo para mim
nada
     nem ninguém
                 vão te diminuir.
Nem o amor cometido
                    – ainda cru
       mas que para outro pareça em desuso.
Só agora celebro a glória
                de minhas maltrapilhas aporias
                                           malbaratadas agonias
em que escondo
                 um verdadeiro motivo.

                       

 

Me dê motivo

e com o timbre

       do Tim


 

CIDADE PEQUENA

 

 

 

p/ Dimas de Abreu Melo

 

 

 

A família era vizinha ao cemitério.

O cemitério se via de casa.

Dele também se via o deserto

o campo onde se jogava bola

o crânio arranjado pelo coveiro

para os garotos brincarem.

Via-se também o destino

de nossa vida pela janela

naquela terra revirada.

Cedo ou tarde eu teria

de ir embora... Mas, se era

para ir embora, que fosse

além daquela quadra assombrada

onde, toda noite, um rojão

de fogos fátuos era solto

e com eles, as comemorações.

 




André Luiz Pinto da Rocha nasceu em 1975, Vila Isabel, Rio. Doutor em Filosofia pela UERJ, leciona na FAETEC e SEEDUC. Casado com Cristina Melo, pai de Tales Melo da Rocha. É autor de: Flor à margem (1999), Um brinco de cetim / Un pediente de satén (Maneco, 2003), Primeiro de Abril (Hedra, 2004), ISTO (Espectro Editorial, 2005), Ao léu (Bem-te-vi, 2007), Terno Novo (7Letras, 2012), Mas valia (Megamíni, 2016), Nós os Dinossauros (Patuá, 2016), Migalha (7Letras, 2019). Seus poemas foram tema para os documentários André Luiz Pinto: Prazer, esse sou eu e Autobiografias poético-politicas, em 2019, ambos de Alberto Pucheu.
Os poemas a seguir fazem parte do livro inédito “O guru”.




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2022

Comentários

  1. Que frescor e força advém destas palavras... Um poeta que se desvela e sempre numa linguagem tão anacrônica e necessária. Há que se de ser: como não cinhecia estes poemas antes?

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