dois poemas de Kaio Phelipe

 



Pitbicha

 

Visto minhas melhores maquiagens
para além de quartos de meninos
vou atrás do que me pertence em locais públicos

Edy Star se assumiu publicamente em 75
45 anos depois continuo precisando
correr riscos e curtir
homens em lugares suspeitos

A isto deram um nome quando
a gente não podia se defender

E alimentaram as próprias fobias
em cima de nossas distâncias
acreditaram durante muito tempo que
com suas ofensas obteriam o controle

Gosto dos meus colegas da aula de natação
mas meu sexo também passa
pelo Conselho Nacional de Justiça

Inventaram o pecado e o erro
depositaram na conta de um Cristo
de um sangue de uma culpa

Não calcularam que
no silêncio planejávamos uma vingança
e que de repente
bicha viraria gesto de carinho

O pecado das Colombinas de carnaval
se construiria em verdade o ano inteiro

E que se o problema fosse Deus
o mundo foi concebido por duas mariconas
na cabine de um banheiro público em horário de pico

Meu sexo cruza gozos e roupas de cama estendidas
se registra em punhaladas deferidas contra meu amigo Jonathan
atravessa continentes a voz da Joan Jett poemas de Ocean Vuong

Diz sobre o poder de trânsito de alguns
do que é apedrejável em mim
para só depois descansar no colo de algum cara.

 


Saudade

 

Encurtar a longitude dos corações partidos
se não geograficamente
me aliar à distância em vocábulos
me pega de assalto no meio do dia a saudade
de quando andávamos pelas ruas às 13 horas
como cabras-cegas em meio a chumbo quente
não tem nada de novo nisso
a perspectiva das lajes são as mesmas desde que vim parar aqui
talvez um ou dois arranha-céus construídos remotamente
se já não vimos, um dia há de vermos os métodos de calma do nascimento
relembro o barulho das obras
seu corpo que nunca vi também recordo
arrisco dizer que temos muito mais em comum que a gente pensa
yo estoy aprendiendo un nuevo idioma
extraño es mi palabra favorita
te extraño
quem sabe um dia a gente não se veja cara a cara
minha casa não está no meio do caminho
ela está muito mais perto
aí vamos dizer adeus ao exercício de não piscar os olhos
não nos preocuparemos em perder um segundo
terão outros em seguida
e dessa vez lábios com gosto de amora
enquanto nada acontece somente mosquitinhos de banheiro
crio suposições para uma tarde que você me conta seus sonhos
e invento seu cheiro
os homens ficam mais cheirosos ao fim do dia
roubei encontros de outros que não vi a face
acho que isso ameniza meu crime
vontades aguardando
tesão em banho-maria
não-acontecimentos que queria tanto para mim
posso até descrever as circunstâncias do dia que não existiu
e do tanto que pratiquei
chão de barro, plantas de espécies esquisitas
comigo ninguém pode, para-raio, ora-pró-nobis
outras plantas alimentícias não-convencionais
camélias e margaridas que servem para batizar um monte de gente
dei sua identidade a uma das personagens
o outro chamemos de o ladrão de nomes
vento forte agredindo o rosto
calor de orla da praia massacrando a nuca
cenário de novela
a gente sempre se inspira na vida dos artistas
como vivem as paixões as coisas impossíveis
os platonismos
mas os vizinhos são tão infelizes quanto
todo dia na hora do café vejo a moça que mora em frente se debruçando na janela com um cigarro nas mãos
tenho para mim que ela pensa em se jogar
mas nunca se joga
ainda não sei se isso é salvar a vida de alguém
acredito que é o mesmo medo nosso
a beira a trave a hora h o que quase sai pela boca
e morre afogado em saliva
não ser capaz de ser colocado à prova
como farão filmes e minisséries a partir de agora?
medindo temperaturas
beijos na boca por cima de máscaras
trabalhar somente o que vê
não existe nada mais deprimente que a busca por dignidade
gostaria de te trazer para o físico
enfrentar a estrada de pés de manga
beber uma cerveja em sua companhia
discorrer ideias para salvar o mundo de meia dúzia de pessoas
morrer com nossas eurecas em nossos túmulos
nossos ideais não seriam capazes de salvar seis continentes
sua defesa é geminiana
um carro de mensagens que vejo vindo da esquina
uma homenagem aos amores eternos
luas crescentes e um doze avos de verdade
não se entristeça pelos pés de manga
toda capital é um pouco São Paulo mas também Rio de Janeiro
quando ontem me perguntou o que tenho feito
me dei conta que não lembro a última vez que chorei
eu vejo uma tristeza absurda todos os dias
mas já a vejo faz tanto tempo
pensando sobre a vida póstuma das lagartas e depois escutando uma música da Leci Brandão
veio uma força no peito que eu pensei que dessa vez
que dessa vez eu fosse desabar
a ideia de chorar e nunca mais dar trégua me excitou na hora
só que eu me enganei
as paredes do planeta Terra são feitas de concreto
eu ia chorar por um motivo e depois por outro
e quando desse por mim já nem saberia mais pelo o que eu estaria chorando
as vezes vem uma falta de você que eu quase não percebo
me conta o que anda elaborando no hiato dos nossos encontros de mês em mês
tente me falar da saudade que sente de mim
não me deixe na mão
não deixe para gostar de mim mais para frente
mais para frente pode ser a última hora
quando o mundo acabar aqui não sei se terá acabado aí
estamos na corda bamba
tanto você quanto eu
talvez você não receba notícias minhas
mas tome suas providências
cante mais uma vez aquela música do Djavan para mim.

 





Kaio Phelipe nasceu em 1997, no Rio de Janeiro. Graduando em Ciências Políticas, trabalha no setor
administrativo e é redator no Projeto CRIA. É autor dos livros Como Cuidar de Um Girassol, Para o
Homem Descansando ao Meu Lado e, em breve, lançará Não Existe Pecado No Lugar de Onde Eu
Vim, onde estarão as poesias Pitbicha e Saudade.



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VII Edição - todas as vozes

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2022


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