Doralice e o homem que virou cachorro - Ozeias Alves Junior

 
(A.Volpi)

Doralice e o homem que virou cachorro


Para Alice Macedo Alves, agora acima dos dilúvios e mistérios do planeta


Toda vez que o céu estava prestes a encenar o dilúvio, eu sempre
ouvia uma porta bater com violência em uma das casas da
vizinhança que eu nunca soube qual era; não tinha erro, toda vez
que as nuvens baixas e carregadas e muito escuras vinham pairar
sobre a cidade, ouvia-se o estrondo repentino daquela porta, bem
como as trovoadas que não tardavam a chegar. Outra coisa era o
inexplicável cheiro de folha de goiabeira que eu sentia. Para mim,
esses eram os dois presságios de temporais; não demorava muito e
logo era dado início à encenação do dilúvio. Morávamos nos fundos
da casa de minha avó, e como o telhado era de zinco e fazia os
grossos pingos de chuva soarem como pedra, corríamos para a
casa da frente, de laje, onde mal se podia ouvir as gotas ou os
granizos: ali era sempre a nossa Arca de Noé.
Sentados na sala, as velas já acesas, algumas para Santa Bárbara,
outras para o caso de a luz faltar, esperávamos pacientes e ás
vezes apreensivos que o temporal passasse. Eu, sentado ao lado
de uma das velas, sempre dava pulos quando uma trovoada fazia
tremer as janelas, interrompendo as palavras de minha avó, ás
vezes uma reza, outras vezes um caso acontecido muito antes
mesmo de minha mãe nascer. Para me distrair, passava o indicador
sobre a chama da vela, ou então admirava as sombras das coisas
que se projetavam enormes na parede. Ás vezes eu e meu irmão
competíamos para ver quem conseguia ficar mais tempo com a
palma da mão próxima à chama da vela por mais tempo. Minha
irmã, a mais nova dos três, cochilava no colo da minha mãe ou
então, assustada com os relâmpagos e trovões, chorava o seu
dilúvio salgado de lágrimas. Ficávamos assim naquela sala por
horas até que o temporal finalmente passasse e pudéssemos ir até
a rua ver os estragos deixados por sua passagem. Lembro-me da
primeira pedra de granizo, ou granito como diziam alguns, reluzindo
sob a luz dos postes ou das lanternas; da notícia de que uma
mulher, não tendo encontrado abrigo em meio ao temporal, fora
atingida mortalmente por uma tampa de caixa d’água carregada
pela ventania de muito longe selar o destino daquela infeliz. Por
mais que a nossa casa ficasse intacta e se demonstrasse tão
resistente e segura quanto a da nossa avó, nós sempre nos
refugiávamos para a sua Arca como bichos ímpares temendo a
extinção.
Num desses dias, reunidos na sala esperando o dilúvio passar
seguros em nossa Arca, como se adivinhasse a nossa ânsia por
mais uma história que nos distraísse, minha avó nos contou o
seguinte:
-Na minha terra, conheci um homem que tinha virado cachorro.
Olhei para o meu irmão, que por sua vez olhava para minha mãe
que, enquanto balançava minha irmãzinha no colo, olhava para
minha avó com uma expressão de incredulidade, talvez pensando
que, embora ela fosse já uma senhora, era jovem demais para sair
por aí dizendo coisa com coisa.
-Mas como assim?- Quis saber minha mãe, passando Bárbara de
um braço para outro.
-Ele não tinha deixado de ser gente e virado cachorro, que nem eles
falam do lobisomem.
Uma trovoada fez com que minha irmã despertasse por um
momento nos braços da minha mãe; eu me recolhi um pouco,
aproximando-me da vela como se esta, com sua chama, pudesse
queimar de uma vez por todos o meu pavor a trovoadas. Meu
irmão, por ser mais velho, já havia dominado a arte de dissimular o
medo e o espanto, assim como os adultos presentes naquela sala.
Tendo cessado os rumores da trovoada, minha avó retomou a
história:
-Eu era muito menina nessa época, mas ainda posso lembrar da
vez em que ele passou pelo nosso quintal perseguindo um gambá.
-Mas como é que um homem vira um cachorro?- Era a vez do meu
irmão perguntar, não com desconfiança ou suspeita de caduquice
de minha avó, mas por pura curiosidade.
-Bom, a história é que José- se não me engano era esse mesmo o
nome dele-, a história é que José numa noite como qualquer outra,
depois de trabalhar o dia inteiro na fazenda do finado Olegário,
chegou em casa, jantou e foi dormir. Segundo dizem, enquanto
dormia, sonhou que era cachorro. Marieta, coitada, que na época
era esposa dele, no dia seguinte reparou que o marido custava a
acordar, mas não disse nada, porque naquele dia ele estava de
folga e achou melhor deixar o marido descansando; mas o tempo
foi passando, e quando deu lá pros meio dia, ela foi acordar o...
Como é? José, isso. Só que José já não era mais José, era um
bicho. Porque na hora que a mulher foi sacudir os ombros do
marido, o homem rosnou um rosnado de cachorro bravo e avançou
pra cima dela, mordendo pra tudo quanto era lado. Dizem que ele
tinha passado tanto tempo sonhando que era bicho que quando
acordou, achou que ainda sonhava.
Como se soube que o modo de agir do infeliz era consequência do
que ele havia sonhado, isso é um mistério, uma vez que o tal José
havia acordado naquela tarde já na condição de animal, não se
portando como homem, mas sim um cachorro, desses que se deve
meter a focinheira; minha mãe olhava para minha avó com aquele
ar desconfiado, não dando crédito a veracidade dos fatos, mas
apenas entretendo-se. Já eu, a partir do momento em que ela havia
afirmado ter visto certa vez o homem perseguindo um gambá,
passei a acreditar imediatamente na história: a troco de que minha
avó, contadora de tantos casos mais do que comprovados e
testemunhados, naquela altura da vida, viria com uma mentira
daquelas? Tantas vezes minha avó dissera: “Hoje não, que essas
coisas não acontecem mais, porque ninguém acredita, mas naquela
época...” Como se, com o envelhecer do mundo e o avançar das
civilizações, todo o mistério fosse se apagando como a brasa de
uma fogueira. E bem podia ser verdade, porque nunca mais
houveram missas em casas mal assombradas onde as almas
penadas cantavam junto com os devotos a Treze de Maio, ou os
homens passaram por uns bocados como o meu avô que em
Lajedinho, há tantos anos, tantos que minha avó ainda tinha uma
avó, em certa noite de uma lua tão cheia que se podia ver a estrada
quase que como se fosse de dia, depois de horas na casa dos
futuros sogros, viu que já ia ficando muito tarde e decidiu voltar para
casa; apesar das advertências de que aquela era uma noite de
assombrações, que ele corria o risco de se encontrar com coisas
que só Deus pra ter misericórdia, o lobisomem por exemplo, meu
avô tirou das costas uma espingarda de dois canos e disse: “O que
é do lobisomem tá aqui, ó”. E se despediu de todos, que nada
puderam fazer senão desejar que fosse com Deus e que Ele
guiasse o seu caminho. Na estrada, montado em seu cavalo, viu
pular da mata um bode preto com um único olho na testa. Segundo
a história, narrada pelo meu próprio avô, depois contada por minha
avó, ele tirou a espingarda e armou apenas um cano, e ao disparar
contra o bode, os dois canos dispararam, mas já não havia mais
bode nenhum. Pouco adiante, ao tentar atravessar uma pinguela,
surgiu um cordão de São Francisco que serpenteava como uma
cobra, tentando fazer laço nas patas do cavalo; meu avô, que
sempre andava com sua espingarda e um facão, desceu do cavalo
e investiu contra o cordão mal assombrado que avançava em sua
direção tentando laçar as suas pernas. Com muita reza e golpes de
facão sobre o tal cordão, este serpenteou em direção ao mato
deixando passagem livre para que meu avô pudesse seguir seu
caminho.
-Mas e aí, Doralice, que fim deu o homem?- insistiu minha mãe
quando minha avó parou de falar e ficou olhando para a sombra da
vela projetada na penumbra da parede como se a sombra
tremeluzente lhe trouxesse os pormenores do causo, movendo os
lábios como quem conta para si mesmo para ter certeza de que é
exatamente aquilo que deve ser dito para o outro sem risco de
equívocos. Minha avó cruzou as pernas, balançando-as e
esfregando as mãos secas- ainda ouço o ruído áspero do atrito das
palmas ressecadas- Então ela retomou a história.
-Então, Menina- minha avó sempre chamava minha mãe assim-
Então, Menina, naquele tempo não é que nem hoje que tem médico
a rodo e pra tudo quanto é doença, e naquela época eles pensaram
que José tinha endoidado porque o povo dizia que ele tinha um
caso com uma mocinha da vila que era muito bonita e que naquele
dia tinha mandado um bilhete pra ele dizendo que não queria mais
saber dele porque tinha conhecido um outro rapaz- e isso eu não
sei, o povo falava muito, então isso eu não posso te falar se é
verdade, se eu disser vou tá mentindo- Mas aí, Menina, como
naquela época médico era só na cidade que ficava longe da vila e a
mulher não tinha condição, mandaram chamar uma benzedeira, a
dona Zenaide- benzedeira que só vendo-, e a mulher ficou fazendo
reza uns dois dias sem parar e o homem nada de voltar ao normal,
latindo, rosnando, ameaçando avançar na benzedeira até que ele
foi pra cima dela, vuup!, mordeu a canela da coitada de arrancar
pedaço; daí a Zenaide olhou pra esposa e falou: “só Jesus na
causa, minha filha, vai rezando porque a mandinga é brava”, um
negócio assim, aí ela foi embora. Procês ver, se nem dona Zenaide
conseguiu... Aí resolveram chamar o Padre Afonso. Vai ele mais
aquela ruma de gente, terço, crucifixo, água benta, a bíblia, mas
assim que o Padre Afonso botou os pés no quintal, haha!, e levou a
cruz na direção do José, hahaahahaha!, o homem virou uma fera e
foi pra cima do padre, que saiu no carreirão e não ficou um pra
contar história!
Mais uma vez minha avó fez silêncio, as pernas cruzadas, as mãos
ressecadas esfregando, os lábios se movendo inaudíveis como num
ensaio mudo. Ainda chovia forte. Ficamos em silêncio em meio
aquele suspense inconsciente que minha avó fazia em suas
pausas; novo clarão, logo depois uma trovoada que fez minha
irmãzinha se remexer no colo da minha mãe. Não sei se pra
encurtar o assunto, minha avó disse:
-Só sei, Menina, que não teve jeito. A mulher com aquele barrigão
de grávida não podia trabalhar, o marido daquele jeito também não,
o povo foi ajudando como podia, um dava uma coisa, outro dava
outra, até que um dia apareceu um pessoal querendo levar o
homem pro mato.
-Pro mato?-
-É, Menina, pro mato. Ficaram sabendo que o homem era bravo
que nem cachorro caçador, e andava de quatro e dormia no quintal
e se coçava que nem um, então pensaram: deve ser bom pra
entocar bicho. E não é que a mulher aceitou? Acho que pela
necessidade ou porque ela viu que não tinha mais jeito mesmo. O
acordo é que eles dividiriam por igual a caça que conseguissem, um
troço assim que eu já não me lembro muito bem como foi acordo,
isso foi papai que chegou em casa falando. Disse até que viu o
coitado do homem com uma coleira em volta do pescoço junto dos
outros cachorros indo pra mata.
-E aí, Doralice?- Quis saber minha mãe após outra pausa de minha
avó.
-Bom, o negócio deu certo. O coitado do José parece que tinha
virado cachorro mesmo, caçador e dos bons, porque sempre que os
homens iam pra mata com ele voltavam com alguma coisa. Mas aí,
Menina, você sabe, naquele tempo as coisas eram difíceis que só
vendo, e não demorou muito pro homem ficar amuado no quintal,
não comia, não latia nem rosnava nem corria atrás de gato ou
gambá, quanto mais de caça. Então os homens desistiram de levar
José pra mata e a coitada ficou mesmo é por conta do pessoal que
ajudava como podia.
-E o José, melhorou ou o quê?
-Que melhorou o quê. Foi minguando até morrer ali mesmo no
quintal, babando e espumando pela boca, pele e osso, a
mosquitada tudo em volta do corpo. Eu não vi, porque era muito
moça e papai não deixou, mas quem viu diz que a cena era de
cortar o coração. Mandaram chamar o padre Afonso, mas o padre
disse que de jeito nenhum, não sei se porque ficou ressentido pela
mordida, só sei que mandou dizer que não ia ter reza, missa nem
coisa nenhuma, minha filha, porque o homem já não era homem,
era bicho, era cão, e bicho não tinha alma pra ser encomendada.
Nem enterrar no cemitério deixaram, e a mulher também não podia
enterrar no quintal de casa, o jeito foi fazer que nem a gente fazia
com as criações que morriam: jogava no meio do mato mesmo pra
carcaça ficar ali apodrecendo ou pros bichos comerem. Eu, hein,
nunca tinha visto um troço daquele.
-E a mulher, coitada?
-A mulher já tava pra ganhar neném, mas a gente foi embora antes
disso e não sei dizer se é verdade, mas dizem, olha bem, dizem,
isso não sou eu que tô falando, é conforme a gente foi informado na
época, mas dizem que quando a mulher foi parir ao invés de sair
um menino ou uma menina, saiu 3 filhotinho de cachorro, haha,
pode, Menina? Aí já foi demais, né? Procê vê como é que é esse
povo, minha filha.
-Hahahahaahaha, Doralice!
-Pois é, hoje em dia a gente não vê nem ouve falar mais dessas
coisas. O mundo mudou muito, não sei, o povo já não acredita em
mais nada. Mas naquele tempo era cada coisa...
Nessa altura meu irmão já cochilava, e a chuva e o relâmpago e
as trovoadas já tinham cessado. As velas estavam quase no fim e
minha irmã dormia tranquila nos braços de minha mãe, que
ensaiava uma narrativa sobre uma bandeira do Vasco que ela jurou
de pé junto ter visto flutuando sobre uma casa onde viveu há muitos
anos e que segundo ela seria mal assombrada. Mas o assunto não
rendeu, porque as luzes voltaram tão logo as velas tremeluziram
suas chamas pela última vez.
Muitos outros temporais vieram, mas já não nos assustavam os
relâmpagos e as trovoadas, tampouco interessavam as fantásticas
histórias de Doralice. Santa Bárbara passou a ser apenas uma
imagem de barro e as velas apenas uma coisa que se acende
quando falta luz. A casa de minha avó ia diminuindo na medida em
que crescíamos, então já não era uma Arca, um forte onde
pudéssemos nos proteger naquelas noites diluviosas. Sem que nos
déssemos conta, a luz que havia em Doralice foi se apagando, os
olhos já não viam com precisão e a memória se desfazia com o
pavio do tempo, derretendo como parafina. Ainda há uma trêmula
luz, ainda há uma trêmula voz dizendo qualquer coisa sem sentido.
O mundo hoje é outro e tudo me parece tão absurdo como uma
grávida parir três filhotinhos de cachorro. Ou um homem virar
cachorro. Um dia para Doralice o derradeiro temporal- mas aí não
haverá relâmpagos nem trovões, apenas escuridão e silêncio.
Fecho os olhos agora e posso ver a dança das sombras na parede,
a voz de minha avó, o cheiro de vela queimando. Ouço o som
áspero de suas mãos se esfregando, o modo como ela cruzava as
pernas, o vestido, sempre um vestido florido, um pente preso entre
os cabelos, a boca já sem dentes. Quando a gente cresce, não é
mais história sobre assombrações ou trovoadas que nos assustam,
mas a vida, a vida que que é tremula sua chama e um dia apaga.




Ozeias Alves Junior nasceu na cidade de Baixo Guandu em 22 de novembro de 1993, sob o signo de Sagitário. Iniciou seu caminho sem volta com a literatura na infância, quando encontrou um livro de poesia num lixão do bairro em que vivia. Já na adolescência, começou a escrever seus primeiros versos e histórias. Fã de Janis Joplin e Edith Piaf, semifinalista da OLP de 2010, atualmente é vice presidente da Associação Cultural Cadoz, fundada em 2019.


Variações: revista de literatura contemporânea 

VII Edição - todas as vozes
vozes que rompem  
Edição de Marcos Samuel Costa

2022


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