poemas de Cesar Garcia Lima

 



A PRIMEIRA LIRA DE DIRCEU


No dia em que pôs os olhos na primeira lira de Dirceu
Marília quebrou todos os espelhos
do vasto sobrado em que morava.
Deu um jeito de pôr a culpa nas negras
mais por criancice que por maldade
senão titia a matava.
Marília, vaidosa, espatifou os espelhos
para não se ver crescer, as rugas chegarem
ciosa de que os homens de sua vida saíssem das Geraes -
afinal, apenas uma passagem para outros lugares,
onde nem o mar chegava.
Na primeira lira de Dirceu
Marília percebeu que apenas ali resistiria bela
e vislumbrou seu futuro
gorda e cheia de filhos
como se tivesse o dom da profecia.
Desde a primeira linha
a lira feriu-lhe o orgulho
e ela perdeu o direito
de ver a si mesma, sem subterfúgios.
Conformou-se em surgir refletida
nos versos educados de Dirceu
um homem bem-intencionado
mas que jamais foi capaz
de tocar-lhe os cabelos.


IRREMEDIÁVEL


as preces não atendidas
os amores não correspondidos
as doenças incuráveis
a saudade dos mortos
o silêncio dos vivos


Poemas de “ÁGUAS DESNECESSÁRIAS”. Disponível em e-book em: https://play.google.com/store/books/details/Cesar_Garcia_Lima_%C3%81guas_desnecess%C3%A1rias?id=mjSZDwAAQBAJ






Corpo de delito


O primeiro amor casou,
engordou, teve filho.
O último amor deixou 
de dar notícias.
A única lembrança é
o moreno da pele
esfregando a demência
em mim.


Insônia 


 

São Jorge cultiva gerânios
no lado escuro da Lua.
Depois de tantos anos
domesticou o dragão
e aprendeu a regar
canteiros na noite.
Acordado pelo tédio,
propôs à fera 
continuarem a querela
para exercitar os músculos
e a compreensão.
Deus
sem mostrar sua face
abençoou a cena.


Poemas de “Este livro não é um objeto”, disponível  no blog: https://cesargarcialima.blogspot.com/



ENREDADO


Nesta hora imprópria
em que você lê
Não existem mais poetas
A convocar ninfas e sátiros
para um verso medido
E branco.
A poesia está tranquila
No baixo volume do degredo.
A prosa esparge suas frases
Envolventes e impregna
De enredo o que era apenas
Um  poema livre.
Só existem versões. 
 

a palavra acre


a palavra acre
ergue-se como substantivo
proporciona minha existência
agrega trabalhadores incessantes


a palavra acre
insiste
interrogação verde-amazônica
no deslumbre cenográfico do progresso
convertida em asfalto e promessas


a palavra acre
é curta
ininterrupta
tem consigo a vocação
dos que não se calam



Poemas de “Trópico de papel” (2019). Disponível em edição impressa e e-book em: https://7letras.com.br/livro/tropico-de-papel/


FEZ QUE NIUS


Se você ler
sobre política 
verde e amarela 
e der vontade de gritar
entrar no texto
fazer justiça
com as próprias mãos
lembre-se:
é tudo fez
fez que nius
elas estão em todo lugar
há vários investidores
interessados
devedores patriotas do fisco
atrizes cientes de seu patrimônio em gado
e botox
excelências prontas para defender
a própria mediocridade
em dinheiro vivo
cartórios carimbando sua vida
em looping
maridos infiéis piscando
para meninas distraídas porque
é Brasil galera
terra da felicidade
mame-o ou deixe-o



BALSEIRO



um iceberg
feito de floresta
desce o rio
em busca do infinito




Poemas de “Bastante aos gritos”. Mais informações em: https://7letras.com.br/livro/bastante-aos-gritos/



SOBRE O AUTOR:

Cesar Garcia Lima (Rio Branco, AC, 1964) é poeta, professor de literatura brasileira e jornalista. É doutor em Literatura Comparada pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Como poeta, publicou Águas desnecessárias (Nankin Editorial, 1997, reeditado em 2019 pela e-galáxia), Este livro não é um objeto (edição do autor, 2006), Trópico de papel, (7Letras, 2019) e Bastante aos gritos (7Letras, 2021), além de participações em antologias. Como diretor, realizou os documentários Soldados da Borracha (2010) e Onde minh’alma quer estar (2015). Vive no Rio de Janeiro.



Variações: revista de literatura contemporânea 

VII Edição - todas as vozes

vozes que rompem  
Edição de Marcos Samuel Costa

2022









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