UM BRASIL DE MORTES CERTAS NA ESCRITA DE DAU BASTOS – POR PAULO NUNES [1]


 

UM BRASIL DE MORTES CERTAS NA ESCRITA DE DAU BASTOS 


...Esta cova em que estás 
Com palmos medida 
É a conta menor 
Que tiraste em vida
 
É de bom tamanho 
Nem largo nem fundo
 É a parte que te cabe 
Deste latifúndio
 
Não é cova grande
É cova medida 
É a terra que querias 
Ver dividida
...
(João Cabral de Melo Neto)


Quando se vive num país com suas contradições abissais, há que se pensar – ainda e sempre - para que serve a literatura, além de, o melhor que ela deve proporcionar, que é divertir. A literatura, dentre outras funções, pode carregar consigo a “responsabilidade” de ressignificar o país, a partir de sua história, tão destorcida por fontes as mais diversas, tendenciosas e canhestras, que vão da imprensa aos livros didáticos, em geral, subservientes à dicção das elites. Quando percebemos em que o Brasil contemporâneo se transformou, uma bazófia, uma sinfonia desafinada e ultraconservadora, surge nas livrarias um livro (neste caso, um romance) para lembrar – como um coro da tragédia grega -, de modo revigorante, de que é feito o Brasil, lançando luz a o quê somos e de que nos formamos, desde que o europeu invadiu nossas terras num processo colonial violento e que nos rende até hoje dividendos desagradáveis.

Este introito, mais que uma curva na parábola, é para dar notícias de minha leitura de Morte Certa, novo romance de Dau Bastos, que saiu pela Patuá em 2021. O título do livro, todo livro auspicioso começa por um bom título?, já traz uma carga de polissemia determinante, que tanto pode remeter a nossa herança histórica, a partir do Nordeste brasileiro, quanto pode apontar para o drama de Dorinho Braúna, filho do coronel do açúcar, proprietário a fazenda Cacimbinhas. Dorinho é o protagonista da trama. Vale dizer que, ao mergulhar no enredo da narrativa, vi-me obrigado a recuar até os tempos em que Portugal fatiou o Brasil em capitanias hereditárias. O Sistema de capitanias foi a solução colonial de ocupar e explorar o território brasileiro, garantindo a posse lusitana. Do ponto de vista da lucidez histórica, somos tentados a pensar que o modelo do latifúndio das capitanias é algo anacrônico e foi superado nos tempos atuais, não se falamos do Brasil. Tivesse o sistema do latifúndio sido superado, a luta da terra não teria muitos mártires, bem como não teria transformado o MST num dos movimentos socais mais necessários de nossa república. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra  tem, como sabemos, agido para a superação das injustiças na concentração de terra. 

Este romance, a pretexto de conhecer o drama pessoal do “Barauninha”, herdeiro de Cacimbinhas, desnuda parte de nosso sistema político e econômico. Neste sentido Morte Certa, ao expor as vísceras do latifúndio, se junta a outros romances que contestam a concentração de terras nas mãos de poucos brasileiros. O romance de Dau Bastos doravante passa a figurar ao lado de Marajó, de Dalcídio Jurandir (talvez o mais poético e ao mesmo tempo cruel retrato do latifúndio brasileiro), e São Bernardo, de Graciliano Ramos, entre os manifestos romanescos anti-latifúndio.

É notório que, várias vezes, o autor empírico influenciou, em vários momentos do enredo, o narrador do romance em suas formulações e estratégias de narrar. Percebe-se, diversas vezes, o tom didático da narrativa, que deseja instruir seus leitores, e assim ensiná-los sobre a História do Brasil. O capítulo “A fome como objeto de estudo” (p. 166-7), é o mais expressivo exemplo, no qual o texto diz sobre a importância do cientista Josué de Castro nos estudos sociais brasileiros. Assim é que em certa passagem conhecemos a “Pedagogia do Próximo”, que nos remete a Paulo Freire e sua “Pedagogia do Oprimido”.

É evidente o diálogo intertextual com os realistas e neorrealistas do romance brasileiro, o que aproxima Morte Certa,  clássicos de nossa literatura. Graças às denúncias dos dramas socioeconômicos e humanos do Brasil profundo, através da fixação da linguagem descritiva, teremos o desfile de tipos humanos e o esmiuçar dos cenários, com minúcias e detalhes, ante ao leitor. Há passagens em que o romance de Bastos lembra roteiros quase cinematográficos, aliás como ensinaram mestres como Inglês de Sousa, Aluísio Azevedo e Graciliano Ramos, antecessores do autor contemporâneo. Neste sentido, o capítulo “assédio do meganha” apresenta um diálogo instigante com “O Soldado Amarelo”, episódio de Vidas Secas. A intertextualidade com Ramos não para por aí. Na página 93, temos uma quase reapropriação de Insônia, Graciliano, página que remete a Luís Silva, personagem do mestre alagoano.

O personagem narrador, aqui identificado por Barauninha, é emocionalmente instável e criou uma dependência de Paula, sua esposa, que o trai com vários homens. Sabedor, Barauninha não tem coragem de reagir, separando-se ou desmascarando a esposa; ele, um covarde contumaz, chega a pensar em suicídio, e enquanto vê passivamente a decadência de tudo que está no seu entorno, ele conta sua história, ele narra como forma de compensar seus infortúnios. 

O nosso romance atesta a existência de personagens e tipos se revezam na trama, em conformidade com a maior ou menor densidade do enredo. Destaque é dado a Zero, o tipo idealista defensor dos direitos da coletividade, o que nos lembra novamente os personagens neorrealistas. Zero é agricultor e violeiro (inspiração no Ramiro, personagem de Marajó, do Dalcídio?), que fugiu das desgraças do latifúndio pernambucano e chegou até o interior das Alagoas, onde está Cacimbinhas. Zero (um “zero à esquerda” para o sistema do latifúndio?) é líder rural e, quando tenta organizar os trabalhadores da fazenda, é assassinado por Jacinto, o capataz da fazenda Vitória (veja a ironia na denominação da decadente propriedade dos Baraúna, à moda de Dalcídio Jurandir).

Ao lermos Morte Certa sobrevêm aquela máxima de Haiden White de que os grandes escritores modernistas ajudaram a problematizar a História recente das sociedades. Embora este não seja um romance modernista, o pensamento de White não deve ser desprezado de nossa leitura. 

Este romance de Dau Bastos torna-se uma referência para os que querem entender melhor a recente história do Brasil, especialmente os tempos da eleição e deposição de Fernando Collor de Melo. A trama explicita o modo como as elites sociais e políticas, corruptas e interesseiras, se movem à luz do dia ou na penumbra dos submundos, para garantir seus privilégios, indiferentes às necessidades da grande maioria da sociedade. 

Diante da tensão da trama, o narrador propõe momentos de poesia reinventada, como na página 47 do romance: “Como cadenciado pelo jegue, o alazão agora me transporta como passeasse. O rompimento do vento causa tamanho prazer que penso na morte não como asfixia, e sim flutuação.  A ideia de me apagar e levar comigo o nome dos Baraúna é digna, e com a ajuda do analgésico que moringa tem em fartura, pode ser tão agradável quanto cochilo de diluição no cosmo”. Diante deste excerto me veio a máxima machadiana, retirada de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “(...) Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria. (...)”. Ora, para um latifundiário a inexistência de descentes é o primeiro degrau de degeneração: decadência na na vida privada e ruina na vida social, espécie de “fim de linha”.

É válido destacar também o modo como são criados os títulos dos capítulos; concebidos entre o poético, o criativo e o indicial, cada título funciona como uma espécie de bússola que orientará os leitores e os conduz nos caminhos da leitura. Creio que uma análise especifica dos títulos deste romance já possibilitaria um ensaio instigante, apontando algumas minúcias de linguagem. 

Enfim, o Nordeste que emerge da literatura de Dau Bastos é uma espécie de painel substancial de socialidades e das formas de resistência que não maquiam os conflitos de classe e figuração de uma sociedade como a brasileira, marcada pela escravidão e pelas “leis” estrábicas do latifúndio; representação de uma processo colonial que não cansa de ser reatualizado pelas elites políticas e econômicas deste país, canhestro e malsinado, que traz vícios de subserviência ao capitalismo internacional de uma classe dirigente corrupta e nada patriótica.





[1] Professor titular da Universidade da Amazônia; Paulo é curador do acervo Dalcídio Jurandir, sob a guarda do Fórum Landi e projeto Moronguetá, através de convênio FAU/UFPA e Unama. Paulo também é consultor da Casa de Cultura Dalcídio Jurandir; autor de Traço-Oco (Penalux, 2018), entre outros.



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