04 poemas de Clarissa Macedo

 

(beetlejuice)

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Minha casa é uma ilha
Um mar que secou há tanto
Onde os pássaros bebem a bile dos meus sonhos.

 

Cenáculo

 

para Lílian Almeida

 

Ao pé das Oliveiras,
um alaúde queimava
e ele via as cordas.
 
Sob a árvore do deserto,
uma lágrima de pudor
e a fuga ao coração do incerto.
 
Judas, o mais amado,
sem prata, um sopro,
um engano à mercê
do medo – 
do Senhor, um olho.

 

 

Surpresa

 

Se fores boa menina

dou-te um periquito azul

eu fui boa menina

e sem querer abri a gaiola

se tivesses sido boa menina

o periquito azul não tinha fugido

mas eu fui boa menina

Adília Lopes

 

Não fui a garota que todos esperavam
[porque a mim nada foi creditado]
“Será igual ao pai”, diziam
[aquele que me foi(-se) tirado].
Não fui a boa menina,
mas uma paisagem caricaturada:
por fora, o avesso, a penúria, uma linguagem muda
por dentro, um cacto de selênio e violência.
 
(Uma poesia autoafirmativa como esta não pode valer a pena).
 
Uma menina, inesperada;
uma mulher, horizonte irrecuperável.

 

Anatomia

 

A vida inteira
e é como se acabasse de começar.
 
A tragédia da criação e sua luz de amor profundo,
algas que dançam no corpo da tempestade.
 
Muitas noites são como dedos de sal e fragilidade
um peixe cujo retiro não se sabe.
 
Amei um vegetal de ternura e os fantasmas de infância.
Fui um búfalo nos olhos da floresta
e guardei numa urna o pólen da esfinge.
 
Não sou profeta, mas um pastor de estrelas,
que não morrem, posto que atrasadas no espaço.
 
Teu sol foi uma pátria em mão amiga.
E os anos, uma corda de inocência no espelho do Atlântico,
um traço de mácula, uma farsa na terra mais antiga.

 

 



Clarissa Macedo (Salvador – BA), doutora em Literatura e Cultura, é escritora, revisora, agente cultural, pesquisadora e professora. Apresenta-se em eventos pelo Brasil e exterior. Integra coletâneas, revistas, blogs e sites. Publicou O trem vermelho que partiu das cinzas, Na pata do cavalo há sete abismos (Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia, traduzido ao espanhol), O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição e A casa mais alta do teu coração (Prêmio Biblioteca Digital do Paraná). Integrou o Circuito de Autores, do SESC. É a idealizadora do Encontro de Autoras Baianas e do Sarau Cartografias.



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2022


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