MINHAS ORATURAS SÃO DESASSOSSEGOS, ESCRITAS FORA DE LUGAR – Paulo Nunes

 

 



I - MINHAS ORATURAS SÃO DESASSOSSEGOS, ESCRITAS FORA DE LUGAR – Paulo Nunes 

(Para o XVII Seminário do CUMA/ UEPA, nov., 2022)

 

Detentores do saber tradicional, é no momento da iniciação que [os velhos] transmitem oralmente e de maneira ritual sua experiência prática às novas gerações. Daí a razão – como bem expressou o sábio africano Hampate Ba, do Mali – de se costumar dizer na África que ‘cada vez que um velho morre, uma biblioteca se queima’ (Nsang O’Khan Kabwasa).


I – Para começo de conversa 


"A mocidade pode andar mais rápido, mas é a velhice que conhece a estrada; se algo amacia o caminho, sapateiro vira profeta", montado nesse provérbio africano, readaptado à minha vivência, eu me atiro no centro desse auditório de variada audição. O CUMA, creio que não preciso repetir, é uma de minhas casas, colcha, concha de interlocução donde me iludo em auscultar com a concha do mar pespegada ao ouvido o mover do rio, os garranchos do vento, o ciciar das palavras (mesmo as semi mudas). Daí que eu falo. Falo, fala que deseja-se menos falus e mais fenda, fonte femina de transpiração do entra e sai das vidas. E não foi Freud que descerrou que as narrativas se degustam femininas? Se as boas narrativas são femininas isso equivale a dizer que a mulher teceria para esconder a falta do falo (como se a mulher, esse ser forte, “desdobrável” – como diria Adélia Prado – e afetuoso precisasse, para alguma coisa, de um penduricalho cilíndrico que endurece). As feministas, em polvorosa e não sem razão, reclamam, mas não devemos esquecer que Freud, pensou e deu forma a sua obra na segunda metade do século XIX. Dito isto, entenda-se que, na figuração da construção metafórica, a narrativa é fêmea porque a mulheres narram na astúcia de ultrapassar o patriarcado, poder discricionário e interditoso; e elas, "mulheres-rosa", o fazem com habilidosas manipulações de tecedoras; ou seja: gosto que me enrosco nessa desevidência.








 

II – Para o abre-te sésamo


Um mastodonte abduziu a colibrisa que por ali nadava no ar.  Dois dias depois, Bandeira inventou sua Pasárgada, e Cecília cantarolou Giroflê Giroflá (“Dos impossíveis corsários”, no Livro Insagrado das Traquinagens, 2 ed, Amo!).

Eu, de minha parte, me confesso. Escrevo com meu corpo porque meu corpo me inscreve nessa (as)sanha que é o mundo da criação literária. Criar é satisfação sem, no entanto, dispensar sacrifícios, algumas dores e frustrações. Mas gozo: gozo e, por vezes, interrompo o ato sem o ápice (parênteses: nem sempre os velhos – ei, esclareça-se que inda não sou velho, mas a caminho! – se entretecem com a estrada, os canais, embora possam conhecê-los com alguma intimidade); mas eu falava de interrupção de atos, que fariam, se bem comungados, leitoras e leitores, sentirem “prazer fruído”. O verbo no condicional – fazer/'faria' –, pode apontar frustrações, mas também necessidade de reinvenções. Isso acontece quase sempre quando lidamos com movimentos de corpos, coisas de rigores e desfaçatezes, primazia das máscaras de linguagem. Daí porque posso dizer a vocês que MINHAS ORATURAS SÃO DESASSOSSEGOS; ESCRITAS FORA DE LUGAR, atravessadas de experiência de um escritor que grafa a letra a partir das memórias mais fundas da ancestralidade, principalmente a marajoara, mas não só ela. Da oralidade arrisco-me, atiro-me nas letras: mergulho nas ranhuras: outro código num noutro contexto: oratura.

É preciso dizer que parto (oh! @-parição), nesta fala testemunhal, de dois pressupostos nos quais Roland Barthes é espécie de farol de milha: a) a língua espremida pela gramática normativa, aponta o pensador francês, é fascista, e só quem teria o condão de libertá-la seria a escrita literária. E b) o corpo da letra, artificio árabe, devidamente ressignificado e recuperado na escrita, é artimanha fenotextual da expressão-prazer, o que,  penso eu, não abdicaria de suas prosódias.

Preciso, então, esclarecer a vosmicês o que significa para mim o significa “oratura”. Oratura é toda composição da letra atravessada pelas marcas da oralidade, é como se a gente compreendesse: letra mais voz é igual à oratura. Não é forma matemática, mas se faz passo iniciático. E as marcas de oralidade em meu texto se assemelham a um corrupio, fazem-se rasuras no rodopio do vento.  Esta movência, se calhar, se dá ou no horário ou no sentido anti-horário; assim sendo é exercício lúdico que se  caracteriza desassossego, cicatrizes na  tatuagem, mais ou menos assim: antes de florescer, a estampa fere a pele, ganha cascão, depois enfeita a menina dos olhos do mirone. Um dia, quem sabe, infestar nossos olhos. Sim, há que se entender um pouco de alquimia, o mirabolante procedimento de enunciação: se papel ou vento, se grafite ou sopro, miscelânia... tanto fez ou tanto faz.

Mas vamos exemplificar, mergulhar na provocação desta minha fala, visto que não desejo sair daqui com fama de um falastrão cultista, que arremeda barrocos e não diz para que veio, embora o risco seja grande, afinal minhas oraturas são dessassossegantes. Vários de meus textos, por exemplo os da trilogia de poemas para Belém – Banho de chuva, O mosquito qu’engoliu o boi e Baú de bem-querer – estão calçados nos ladrilhos das oralidades e, de um modo ou de outro, metamorfoseiam-se como oraturas.

Eu poderia ler “Uiara” ou “Matinta” (este que é dedicado à querida Bel Fares), do livro Baú de bem... , textos de explícita citação-colagem com/no mito, mas vou optar por um outro, talvez mais disfarçável, “Jornaleiro”, um dos mais requisitados poemas de O mosquito qu1engoliu o boi: “Jornaleiro”

 

O jornaleiro pinta o sete

na quina das esquinas da vida.

Ele anuncia mil manchetes

com sua voz de Sherazade:

– Olha lá olha lá

Caiu gelo no Pará!

– Vamos ver, vamos ver

sal insosso pra comer!

 

O jornaleiro – voz de vento –

anuncia a aurora da cidade

tricotando a notícia como se fosse

novidade a conversa que ele fia.

 

O moleque jornaleiro

borda linotipos nos caminhos

fervilhando grandes furos

e enfeitando de novidades a vida:

– olha lá, vamos ler

cobra comeu jacaré!

– Venha ver... – O que foi?

– O mosquito qu’engoliu o boi!

 

O pregão do molecote alumia a rua todinha.

Eita anúncio barato pra conquistar freguesia:

– Folhêê, Provííín...

Já de rouca e usada

A voz dele desmonta, página a página,

o letreiro daquele jornal.

Jornaleiro que anuncia

a quatro cantos

as manchetes do jornal:

– Diáário, Provííí, Liberaaal!

 

“Juro pela fé da mucura!” que o poema diz por si, o só; explicá-lo, no caso, é afogá-lo em água adoecida: agá dois ópio. Mas, creio, que se trata uma composição andromórfica, letra atravessada de oralidades; flagrantes de pregões das ruas assaltam a página em eco, ressurgem em escritas de talhe híbrido, a fim de evitar as ruinas da desmemória de uma cidade ácida, embora faiscante, de diversificadas nuanças.

Outro livro que escrevi e vale citar é o Gitos, meus minicontos amazônicos, dou-me a sem razão, experimentação que virou experiência em 2014, graças à coragem de meu editor Armando Alves, da Paka-Tatu; Gitos é síntese desafiadora para quem gosta de criar imerso de liberdade (como se isto, no meu caso, um poeta-professor – ou professor-poeta – fosse possível). Os textos de Gitos..., até hoje, confesso, nem tenho certeza se são poemas ou prosa – mas é fato que eles apontam para uma escrita oraturizada, desde a provocação até a construção que deve, e muito, ao mito amazônico, poço onde mato minha sede. Vejamos o poema que reescreve a pororoca de São Domingos do Capim, o “Na crista da onda” diz assim:

 

Onça Pintada, o cacique viu filha

se apaixonar pelo luar.

9 meses depois ela pariu 3 pretinhos,

e o rio brigou com o mar.

Eles, saudosos

da mãe de que foram separados ao nascer,

inventaram, moleques, uma onda gigante –

árvores, flores de encantaria se assanharam

nas margens do rio Capim.

Fizeram tanto alvoroço que

Os indígenas ficaram de boca aberta...

 

E foi assim que surgiu a Pororoca.

 

Não quero me redundar que o repetir-se pode dar nós em trilhas: lenda é fenda com todas as suas possibilidades, que, espero, encontre leitoras e leitores que a descerrem em narrativização.

 

O livro que, no entanto, melhor conflui nas marés desta minha fala, neste Encontro do Cuma, é Água de Moringa (Amazônia, 2003).  Água de Moringa é um livro topograficamente dissimulado. Por circunstância previsível, ele virou letra, mas foi sagrado como um enfeixa de pré voz. Nathália Cruz, que provavelmente melhor entende de minha literatura que eu, foi taxativa depois de ler o Água: “larga a prosa de ficção; afinal como ficcionista és um bom poeta”. Isto é ou não a prova flácida de que MINHAS ORATURAS SÃO, por vezes, DESASSOSSEGOS? Na veracidade, a fala da professora, que pra mim tem a força de um oráculo-critico, instaurou ainda mais o desassossego de quem cria na cor do tantra: a corda bamba; sou um oraturador que escreve no entrelugar dos desejos, instigando leitores, leitoras e leitor_X para que pactuem comigo o banquete criativo das palavras – algo que já não é meu, desde que a energia desprendida de meus dedos ganha as páginas impressas: colcha de Penélope que monta no alazão veloz um pouco na linha do que lemos no livro Como Água para Chocolate, de Laura Esquivel, narrativa de sublime beleza que, de nossos olhos afeta nosso todo.

Mas eu falava do Água de Moringa, e é a ele que me remeto para encaminhar nossa conversa para os finalmente. Um passeio com “O Moleque Lua” na periferia de Belém.

O moleque Lua é narrativa de fone/fonte secundária, coisas de ouvir; texto que lida com apegos poéticos e desarranjos conteudísticos, advindos de uma rinha de palavras: um galo sozinho não tece as manhãs, ele precisará de galinhas e pintainhos a seu lado, porque poleiro é casa de desarrumação. Primeiramente há que se constatar um caleidoscópio de citações possíveis em meu texto sobre o Lua, textura que bebe nas fontes da literatura em língua portuguesa – Dalcídio Jurandir, Manuel Bandeira, Cesário Verde, Cecília Meireles... fontes de inspiração que, muitas vezes, ficam ensombradas, ao mesmo tempo em que outras se mostram ao sol.

No conto “O Moleque Lua” as ruas, tagarelas, falam junto com o menino personagem; o cotidiano é flagrado não mais em representações canônicas, do centro da ubre, digo, da urbe, mas advém da “perifa”, o que possibilita a erosão do canônico, e nos leva a pensar num multifacetado fingimento poético, em que provavelmente o professor Paulo soprou no ouvido do ficcionista Paulo, segurando-lhe as mãos, induzindo escritas, coisas de criação e verossimilhança, que dialogam com vozes  diversas: sinfonia em forma de carrossel, vozes, vozes, entrançadas vozes, nem sempre velozes, mas intensas e cromáticas, apelativas aos sentidos de leitor_x.

A opção por uma representação de cenário do mundo, instigado pelo humanismo, talvez acomode provisoriamente os desconcertos de uma sociedade capitalista, doente, esquisofrênica, vítima dos processos de gasligth . Uma sociedade predominantemente egocêntrica e indiferente ao outro: pirâmide em que não há eco nem espelho.

 

 

III – Dos finalmente? Eu engasgo: mas digo-escrevo

 

Quero pés que roçam a paz dos sacis pererês e a sinfonia das folhas que se metamorfoseiam em flores de  jambeiros ou astronautas de miriti (do mesmo Livro Insagrado das Traquinagens) 

Finalmente, hei de dizer. Precisamos buscar algo de iluminação nas escritas. Cada escrita é uma estrada a palmilhar: fome de descobertas, início e fim, redondo cíclico circo. As oraturas são sinais em caminhada; perder-se ou achar-se nas trilhas. É usar, portanto, os miolos de pão, como os da narrativa infantil. Fica a pista. Há fome? Passsarim come? Não faço mais, nem me cabe: deixar pistas, que cada uns façam delas o que desejarem, tod_x.

Passarinheiro que se preze descasca egocentrismos, abre gaiolas: o bater asas é o soluço. De tudo, fique a fome, fomes, famintos de restos, miolos de vão. É como eu dissera antes: a velhice conhece estradas, apesar de; se há sapateiros, o poeta é profeta de seus desassossegos. Muito instigado, brigado!

 


Santa Maria de Belém do Grão-Pará, novembro de 2022.



Variações: revista de literatura contemporânea 

VIII Edição - Vozes que não
 param de gritar  
Edição de Marcos Samuel Costa

2022


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