Shoá; um contista em Berlim - W. Figueirôa
Shoá; um contista em Berlim
Quando estava sentado num dos
tradicionais Cafés de Berlim, levei meus pensamentos há um dia como este que
estou aqui agora. Era bem parecido. Realmente muito parecido. Mas com uma
saudosa diferença: Tomava meu delicioso vinho tentando uma forçada distração ao
observar algo muito curioso e que me deixou bastante assustado, perplexo, do
lado de fora desse mesmo estabelecimento, fitando algumas frentes de casas de
famílias semitas.
Era nove de novembro de 1938, 20
horas.
O que eu havia visto?!
Bem, nada tão agradável aos meus
olhos detalhistas de um alemão repleto de ideologias próprias e que detestava o
nazismo levantado por um tal de “furioso”, era como eu o chamava nos meus dias
de conversa descontraída com alguns amigos do bairro.
Eu havia bebido já alguns tragos do
delicioso líquido adocicado e com certo teor de álcool, por ali ser um dos
melhores estabelecimentos da cidade, pelo menos era o que muitas pessoas e eu
achávamos. Alguns Pretzel e goles do vinho foram meu passatempo naquela noite
crepuscular de uma Alemanha em crise tentando banir dos meus olhos a cena
terrível que até me fez lacrimejar por alguns minutos de tensão odienta.
Eu nasci, cresci e me tornei um belo
jovem em Berlim, e sempre fui um puro patriota do meu país. Mas, daquela noite
em diante, meus pensamentos e ideias começaram a mudar de rumo, quanto a minha
cidadania em relação ao suposto governo que tudo indicava dar seus primeiros
passos por toda a sociedade alemã usando uma bandeira criminosa; era o que
narrava as matérias nos melhores jornais de Berlim daqueles anos. Eu já havia
lido ou ouvido coisas em surdina sobre tal ideias e planos nazistas, mas não
levei muito em conta nem a sério aquelas ideologias baratas, como eu mencionava
para os amigos, em risos irônicos, até porque os semitas já faziam parte de
nosso país há muitos anos. Alguns até tornaram-se judeus naturalizados alemães
pela Lei Germânica. “E como poderia isso ocorrer?”, eram meus inocentes
questionamentos diante da terrível cena.
— O rapaz está precisando de mais
alguma coisa? — perguntou em nota baixa e com uma voz bem delicada, disfarçando
o ocorrido do lado de fora, uma moça bem jovial e que eu já a observava há
algumas semanas daqueles meus dias boêmios; ela apresentava ser de uma daquelas
famílias semitas, pelas coisas que costumava usar em seu pescoço e punhos e
pelo seu horrível sotaque alemão, e sempre me olhando de soslaio, como se
enxergasse em mim, algum inimigo dos mais temíveis. Eu apenas lhe sorria
vagamente, para tentar diminuir sua tensão, mas ela permanecia vestida do mesmo
semblante tenso para comigo.
— Não moça, falei eu, já basta de
vinho, por hoje.
Ela jogou a cabeça para baixo
timidamente e voltou ao seu posto. Minha atenção buscou novamente as cenas
impactantes nas calçadas daquelas casas a se estender rua a fora, onde havia
gritos, pancadaria e muita violência gratuita aos meus olhos bem curiosos de
modo que quase fiquei de pé, mas mantive-me sentado para não perder aquele belo
rosto feminino. Voltei meus olhos para ela e percebi sua atenção aumentar de
maneira a ver suas duas mãos apertarem-se fortemente, onde seus dedos quase
penetravam nas palmas de pele delicada. Franzi a testa com seus movimentos, mas
alimentando muito mais preocupação com as cenas brutais do lado de fora.
Confesso que até alimentei, por algum tempo, em minha cabeça de jovem sonhador,
que aquele austríaco, já famoso dos noticiários, e que já vinha no governo
alemão desde 1933, seria realmente, depois de tantos governos fracassados na
Alemanha, a melhor coisa para nosso país, desde a fracassada derrota da
Primeira Guerra Mundial; isso até eu ficar a par e entender dos seus futuros
planos patriotas e doentis, ou por mero idealismo ditatorial e fanático, onde
ouvia de meus pais, desde então, que eu deveria me alistasse no exército alemão
e servir ao nosso mais novo governo militar nazista.
Se meus pais eram anti-semitas?
Isso não sei. Mas naqueles anos,
muitas famílias alemãs foram envenenadas das ideias nazistas, como uma cartilha
que deveria ser lida e obedecida a fio por todo cidadão alemão, coisa que eu
não concordava e nunca aceitei, incitando uma das ideias bem ridículas, a
conhecida Raça Ariana, ser implantada no país, isso quer dizer: semitas,
ciganos, negros, pessoas de ideologia de gênero, homosexuais e alguns
indivíduos sem proveito algum ou inútil a sociedade, ao ver dos nazistas, tendo
que ser banidas do país e do mundo de uma vez por todas, se caso o infame líder
nazista vencesse a suposta guerra que ele vinha tramando há muito.
A jovem garçonete não tirava os olhos
das cenas do lado de fora e eu não arredava os olhos dela. Acredito que estava
fascinado por aquela judia; aqueles traços fisionômicos femininos e por toda a
sua delicadeza. Seu sorriso, confesso que não conheci. Desejei muito vê-lo
abrir os dentes para mim em algum momento mágico, desses que só os românticos
sabem fantasiar.
Estava agora no último gole do vinho
e pedindo para que ele não terminasse.
Por que?!
Ora, ora, leitores, essa é realmente
uma pergunta bem idiota a se fazer, não? Ou vocês não prestaram bem atenção na
minha narrativa anterior?
Bom, eu, naqueles dias de perseguição
semita, não tinha muita escolha em relação aquela jovem, a não ser guardá-la na
lembrança dos meus dias de cobiça romantizada — e foi o que eu fiz por todos os
futuros dias de minha vida.
— Quem é o dono desse
estabelecimento?! — fez um dos guardas ao adentrar o recinto com o rosto
vestido de injúria, tirando-me da divagação sentimental. Desviei meus olhos
para o balcão e não vi mais a linda moça. Não havia ninguém. E não houve resposta
de mim para o policial imponente. Ele retomou a fala, agora bem injuriado,
sentando o braço vigoroso numa das mesas de modo que os utensílios
despencaram-se no chão de cerâmica se esfarelando em cacos: — Você aí rapaz,
sabe de quem é o estabelecimento?
Nada respondi. Mas meu corpo tremia
dos pés à cabeça. Até então ouvir um barulho vindo do balcão acreditando que
ela estaria ali escondida por ser, decerto, uma semita, e receberia o maior dos
castigos daquele imponente e ridículo soldado nazista, um militar fanático
disfarçado de policial.
— Não senhor! — falei ficando de pé a
tremer as pernas e já mostrando-lhe continência. — Eu resolvi, após ver suas
atuações naquelas casas e com aquelas famílias, que desejo ser um soldado e
obedecer ao Fuhrer. Eu quero me alistar no exército alemão!
— Ora, ora, fez ele ironicamente, mas
bem convencido, então temos aqui um candidato ao nazismo? Faz muito bem, meu
caro rapaz, e venha comigo, que já tenho uma missão para você!
— Sim, senhor?! — Fiz com mais uma
continência nervosa e tentando idealizar os planos dele.
— Venha até a Base Militar, que lhe
entregarei o fardamento e você vai ficar por conta desse estabelecimento! Irá
voltar para cá e ficar de guarda, quero esse Café para diversão dos demais
oficiais e alguns soldados que se instalarão nesse bairro semana que vem.
Eu, naquele momento, não sabia mesmo
o que estava fazendo, mas tinha a plena certeza de que salvaria, nem que seja,
por alguns minutos, a moça desejada e quem sabe pelo resto de sua vida, indo de
encontro aos meus princípios e ideais. Agora, se aquele meu ato foi por amor,
considerei, desde então, o amor, um mero ato suicida. E o mais interessante:
eu, um alemão vestido naquele uniforme acinzentado e com uma estrela tatuada no
ombro e no quepe de mesma cor, não precisei perseguir, prender, condenar nem
matar semitas nem tão pouco odiá-los — foi realmente muito irônico.
Então o estabelecimento foi-me
entregue sem a ordem do real proprietário semita, tendo eu que visitá-lo três
vezes por semana, com mais dois altos e robustos soldados vigilantes na entrada
todos os dias e a toda hora. Mas eu tive a ideia de encurtar as horas daquele
mando oficial, indo ao Café por quase cinco dias da semana, pela desconhecida
moça que, junto com seu patrão e mais dois funcionários da cozinha, fazer parte
do trato do líder nazista em mantê-los no estabelecimento para não serem
presos, ou enxotados de Berlim e levados para os Campos Concentrados. E aceitei
tudo pelo ato idiota do amor que eu comecei a alimentar por ela; desejava de
alguma forma salvar-lhe a vida por mais tempo, até onde eu pudesse.
E foi ali, naquele Café e com
bastante cautela e esperteza, que eu, esse simples alemão, que detestava os
nazistas e sua Doutrina Ariana, iniciei uma série de Jüdischer Retter, onde pude
ver várias famílias semitas serem salvas do encontro do maior terror alemão, o
holocausto.
Quem me ajudou no ato perigoso?
Bom, eu não deveria falar nada para
vocês, para que a vida dessa semita continue tranquila e não venha a correr
risco algum! Mas não vou deixar vocês leitores curiosos e muito menos a pensar
coisas errôneas de minha pessoa.
Sim, a moça do Café, a linda e desconhecida
garçonete, fora o principal pivô naquele meu projeto anti-nazismo.
Se ela se salvou do triste e infame
holocausto?
Ora, eu fiz de tudo para que isso não
ocorresse. Dei tudo de mim. Talvez não deveria ter me dado tanto assim, porque
meus dias não foram tão felizes, durante minha trama em conjunto com ela e com
o proprietário do estabelecimento, que sempre me alertou sobre a tal
funcionária, de ela ter fetiche por militares alemães nazistas, foi o que eu
fiquei sabendo e demorei a acreditar, encoberto da máscara sem olhos desse
sentimento perigoso que nos toma de assalto nos deixando como meros cegos do
amor.
O que ela fez?
Ora, ora, meus caros leitores, pensei
que vocês poderiam já estar a par, usando o mínimo de bom senso neste meu curto
e dramático relato!
Olhem para mim! Vejam meu semblante
sentado no mesmo Café, na mesma hora e lamentoso numa noite fria de Berlim!
Conseguiram perceber alguma coisa? Não? Pois bem, a única certeza que tenho a
lhes revelar, é que larguei a farda infame e criminosa sem vítimas, fiquei de
bico calado em meus dias tensos e continuei a frequentar o mesmo Café até os
dias de hoje e a lamentar por amar demasiadamente aquela garçonete semita sem
nem ter o prazer de tocá-la e acreditar que o amor foi meu pior suicídio na vida.
É só o que tenho a dizer para vocês
hoje neste Café…
W. Figueirôa, natural de Recife-PE. Sempre teve a inclinação pela escrita, desde o colegial, quando escrevia suas redações escolares e alguns poemas. Autor do livro Café Criminal; romance policial que se passa após a Segunda Guerra Mundial na velha Paris; publicação independente nas plataformas digitais.
Variações: revista de literatura contemporânea
Obrigado aos organizadores do projeto literário pela oportunidade de ter um de meus contos expostos na revista, para supostas leituras... Abraço e sucesso a todos!
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