PARA O ALTO - Élcio Lima

 

Para o alto 



A porta bateu com mais força do que pretendia. Estava cansado do trabalho no banco, daquelas pessoas antipáticas, do chefe insuportável. Cansado de fazer as mesmas coisas todos os dias e também pelo fato de que essas coisas não eram o que ele realmente gostaria de estar fazendo.

Aos trinta e dois anos lidando com ansiedade, TOC e a miopia que só piorava; Celso morava nos limites da cidade, em uma casa que fora da avó, morta pela cirrose há dois anos. Dividia o teto com um gato siamês chamado Ácaro e mais uma montanha de dvd’s de filmes e séries; pilhas de livros de Stephen King, Lovecraft, Kafka, Joe Hill e, ainda, milhares de grafic novels. Um típico exemplar de nerd.

Naquela manhã, o chefe da sessão de informática tinha acabado de ter outro de seus ataques de grosseria na frente de todos.

O motivo: um toner vazio.

Perdigotos escapavam por entre os lábios tortos que deixavam ver dentes muito amarelados devido à nicotina. A chuva de saliva respingava diretamente no rosto de Celso, principalmente nas lentes de seus óculos. Quando um gota muito grande acertou seu lábio inferior, quis vomitar. Escutou calado e só então saiu para buscar outro toner no depósito. No corredor, retirou os óculos para limpar as lentes e esbarrou em alguém, que derramou café em sua camisa branca; para piorar, cortou a mão na maçaneta da porta do banheiro, que estava quebrada.

Molhou o rosto e lavou o corte. Vendo o sangue pingar na louça branca, rodopiar e sumir no ralo da pia, pensou em comprar uma arma ilegalmente e descarrega-la na cara do chefe, mas isso o faria ir direto para a cadeia, coisa que não pretendia. Cogitou, então, derrubar uns grãos de chumbinho na xícara de café do velho. Sem sabor nem cheiro, até que se dessem conta do que houve era mais fácil achar que foi alguma artéria entupida pelo colesterol ou o uso desmedido de Viagra no intervalo do almoço. Fechou a torneira em quatro voltas, como fizera ao abri-la, e usou quatro folhas de papel absorvente para secar as mãos. Desabotoou a camisa para lavar na pia. Quatro voltas na torneira. Esfregadinhas em série de quatro até a mancha ficar levemente amarelada.

Quando começou a torcer a parte molhada da camisa, tomando cuidado para não mancha-la com sangue, viu, pelo balancim que dava para os fundos de um prédio muito antigo, um grupo de pombos que saltavam sobre as antenas do terraço baixo e começou a conta-los, dividindo-os em grupos de quatro e torcendo para dar um número par. Haviam dezesseis aves. Arrulhavam e bicavam a hera que se espalhava pela parte sombria dos fundo de um edifício do final do século XIX, hoje em precárias condições, entalado entre o banco e um hotel de arquitetura moderna. “Se isso fosse possível, talvez esse prédio lindo se sentisse sufocado por ser diferente, preso entre dois gigantes sem personalidade”, pensou. Então, um pombo bicou o vidro do balancim trazendo-o de volta de seus devaneios. Quando se deu conta, a camisa estava suja com sangue também. Quis chorar. Mordeu o tecido abafando um grito e olhou para o pombo, que o encarava com seus olhos em tons de vermelho e marrom, virando a cabeçada de um lado para o outro como se estivesse tentando entender a criatura estranha por trás do vidro.

Uma forte batida na porta e o chefe estava gritando pelo toner.

***

Não foi almoçar com os demais. Decidiu dar uma volta na praça do centro.

O céu encoberto por nuvens cinzentas indicava chuva a qualquer momento. No retorno, passos acelerados. Olhou em volta e decidiu comprar um jornal. Foi quando uma garotinha, que passava correndo, deu de encontro com ele. A menina sorriu e, muito educada, se desculpou. Ele retribuiu o sorriso e a viu correr até uma mulher que lia sentada em um banco adiante. A menina se debruçou, curiosa, sobre um chafariz.

__ É uma fonte dos desejos, mamãe?

__ Isso depende do quanto você acredita. __ sorriu para a filha.

__ Acho que não acredito.

A mãe assentiu e as duas saíram após o estrondo de uma trovoada.

Celso caminhou até o chafariz. Nunca o havia notado. Olhou para os lados. Tocou a borda do mármore antigo e olhou para a estátua de uma mulher com jarro no alto. Estava desligado, coberto por limo em algumas partes. Dentro havia uma água escura com folhas mortas apodrecendo no fundo. Viu seu rosto redondo e rosado olhando de volta.

E se...

Meteu a mão no bolso, rindo da própria estupidez.

Seus lábios se moveram silenciosamente enquanto duas moedas, uma seguida da

outra, afundaram (blup! blup!) na água escura. Quando a primeira gota de chuva caiu em sua bochecha, ele correu de volta para o banco, rindo feito criança.

***

Com a sala de casa mergulhada em penumbra, a tela do celular se iluminou e Celso deu uma pausa em “A bolha assassina”, bem na hora em que um cara estava sendo tragado para dentro de uma pia. O identificador mostrava que era Renato, colega de trabalho. Olhou o relógio na parede, eram onze e quarenta.

__ Oi, Renato! __ atendeu sem ânimo. Houve silêncio por um tempo, então ele saltou do sofá acordando o gato que miou em protesto e sumiu pelo corredor. __ Isso é sério?__  colocou a chamada em viva voz para poder procurar o controle da TV que caíra.

__ Se é sério? Claro que é sério. A esposa dele disse que foi um mal súbito ou algo do tipo. O velho morreu mesmo. __ ele riu. __ Seja qual for a praga que você rogou sobre ele, funcionou.

__ Eu? Claro que não fiz nada!

__ Calma, cara! Estou brincando. Qualquer novidade te aviso.

__ Obrigado.

Desligou a chamada e ficou de joelhos, sentado sobre os pés, encarando a própria sombra projetada na parede. O gato voltou e sentou sobre o controle, do outro lado da mesinha de centro. Sem saber se o que sentia era certo ou errado, uma discreta curva surgiu em seus lábios até mostrar os dentes inteiramente. Deu uma soco na palma da mão esquerda e saiu pulando alto em volta do sofá. __ Alexa, tocar Tarzan boy! __ ordenou à assistente virtual. Pegou o animal e começou a rodopiar como numa dança maluca pela sala, cantarolando “nigth to nigth, gimme the other, gimme the other chance tonigth!”. Bebeu a reserva de vinho e dormiu um sono profundo, leve... Sonhou com pássaros voando ao seu lado. Pombos de olhos vermelhos subindo em espiral à sua volta. Estava leve e subia saboreando toda a liberdade entre as mornas nuvens rosadas.

***

Acordou com a língua áspera de Ácaro arranhando o canto de sua boca.

Olhou o celular. Passava das onze da manhã.

Perdera a hora do trabalho, mas isso sequer lhe gerou preocupação, afinal era bem provável que a equipe fosse liberada para o velório do chefe. Desceu da cama e procurou o chinelo com os pés. Não achou. Olhou para baixo e lá estavam eles. Tentou puxar com os dedos, mas não os alcançava. Cenho franzido, notou que estava uns dez centímetros acima do piso de parquet. De imediato ficou muito assustado e puxou os pés para cima da cama.

Quando serviu a gororoba enlatada que o gato comia,  já estava a vinte centímetros do piso.

A coisa não era como se estivesse em gravidade zero. Era mais como um segundo chão invisível, que subia lentamente e que estava sempre sob seus pés onde quer que fosse. Não conseguia descer, mas podia esticar os braços para alcançar as coisas. Estava num misto de pavor e encantamento com seu novo “dom”. Quando terminou de comer, Ácaro olhou para cima, a cabeça virada de lado. Celso estava na altura da estante de livros tentando pegar o celular com uma vara de pesca nunca usada, “sabia que um dia ia me servir”, pensou.

Luís e Renato chegaram meia hora depois.

Celso arrancara partes do forro de angelim para abrir espaço.

Luís sorria nervoso. __ Esse troço meio místico é irado!

Ele afastou as telhas e se espremeu entre as vigas. O curativo da mão estava com uma mancha rosada. Quando passou da altura da casa começou a pular com força na intenção de romper a massa invisível, mas nada adiantava. Renato usou uma escada para alcançar o amigo, mas apenas as pontas de seus dedos se tocaram. Ele correu de um lado para o outro, como um inseto muito grande sob a tensão superficial da água. Outros três amigos chegaram e a reação de levar as mão à boca era unânime. Um vizinho arremessou uma corda preta, que ele pegou e amarrou no tornozelo porque era só o que dava para fazer. Um puxão e ele sentiu o estalo seguido de dor instantânea. Gritou.

Com os olhos transbordantes, não conseguia mais olhar para baixo. Estava acima da copa das árvores e logo o quintal estava abarrotado de curiosos. Bombeiros não conseguiam faze-lo descer. Uma jornalista falava diante da câmera que subia e descia registrando o fenômeno. No Instagram e no Facebook não se falava em outra coisa. No Twitter a tag n°1 no mundo era #RAPAZFLUTUANTE. Um helicóptero tentou resgate, inutilmente, o rapaz simplesmente não ultrapassava a linha invisível sob seus pés, apenas subia. E subia. E subia...

Ácaro miava andando em círculos.

As pessoas ficaram minúsculas, como formigas, indistinguíveis em meio ao verde.

Ele sentou. Lábios ressecados, o medo dando lugar à resignação.

O ar rarefeito estava comprimindo seus pulmões.

Deitou de lado.

Chorou.

Desejou nunca ter atirado duas moedas no chafariz, se é que aquilo tinha algo a ver com o que estava passando agora. Mas não. Não havia como ser coincidência. Seria castigo divino pelo primeiro pedido? Se era este o caso então por que Deus haveria de colocar uma fonte que realiza desejos no meio da cidade? Talvez, e está lhe pareceu a resposta mais coerente, ele só não soubera usar as palavras certas ao pedir o que queria, como a maioria das pessoas também não sabe e gastam suas palavras a esmo, atiram-nas ao vento ou aleatoriamente, como numa sopa de letrinhas. O ser humano não consegue mensurar o poder de suas palavras até sentir o peso das consequências.

E Celso subiu, tão alto até se misturar a uma revoada de pássaros migrantes e sumir no infinito da noite diante dos olhos atônitos de uma multidão horrorizada.

 



Élcio Lima escreve contos e dramaturgias; é ator, diretor, figurinista e fundador do grupo Presságio, atualmente estuda Licenciatura em Teatro pela ETDUPFA e é membro do grupo de pesquisa em palhaçaria O Clown Nosso de Cada Dia (UFPA). Amante de filmes e romances de terror, horror e suspense, tem alguns contos publicados, dentre eles Viagem noturna, A outra face, Algo na estrada, Desaparecimento involuntário e Tarde chuvosa. Recentemente escreveu e dirigiu o premiado espetáculo Estrada Noturna, na IV Mostra Cênica do Teatro Universitário Cláudio Barradas. Reside em Ananindeua, no Pará.


Variações: revista de literatura contemporânea 

I X Edição - Mais Brasil que nunca
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2023

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