Prosa de Mateus Saraiva

 

(fraquemento de Picasso)


Contra a interpretação ou o relatório da Rosa Cinza

 

 

Um grito ecoa pelas ruas, becos: zunindo como um estalo. Sempre há um estalo entre a superfície e a luz. Não sei se faço disso uma crônica ou um conto. Quero dizer que te amo e não sei escrever crônica ou conto. Um relatório como antiliteratura da coisa. Hoje está frio como ontem. Hoje parece maio, assim como todos os dias desse lado da cidade parecem maio. Passando espiralados um dentro do outro como se fossem uma boneca russa transparente onde vemos tudo: todos os teus segredos, todas as tuas verdades de terça-feira, os rabiscos na parte de trás do banco em que sentas e esperas fumegante e pálida um amanhecer. Os dedos cruzados. Esguios. Já usei essa palavra outras vezes e me sinto culpado por usá-la novamente. Perdendo o estilo, o estilo da coisa, do texto. Enquanto tu continuas sentada e atrás de ti está escrito:

TUDO ISSO É VERDADE E EU SEI

A ROSA CINZA.

Meu estômago vazio coberto de fome e de sonho. Eu me alimento de todos os sonhos do mundo e ainda sinto fome. E ainda sinto. Sentir é. Tu sentada assim é. Impassível. A janela que separa o fora e a intimidade da rosa, também é. A nuvem com forma de cavalo, é. Crina balançando feito poeira, trotando no azul. O azul é. O céu dessa cidade. Dessa cidade que te contém como um ponto, que contém o risco e o traço, que contém o som: o som que sai do teu corpo irradiando relógios, pois feito de tempo e outono. Dentro de ti tem um silêncio que faz liame entre a palavra primitiva na origem da coisa e a sensação de que o sentido é dentro, todo dentro, e não há mais nada que signifique além do grito mudo. O grito deste lado da cidade-dormitório, descoberta pelo ônibus-nuvem.

Mais uma vez estamos aqui não é. Contra a interpretação que fazem da obra, destituindo-a de si mesma. Contra a interpretação que fazem da coisa, destituindo-a de si mesma. E mais uma vez não é: tu sentes o signo e a imagem. E aí lês todas as análises marxistas e freudianas, todos os desdobramentos pós-estruturais: nascendo uma superfície sobre a superfície da coisa onde como um duplo parece uma casca que esconde, oculta o úmido por dentro. Toma a identidade da coisa fazendo-a desaparecer. Ela insiste, digladiando lutas epidérmicas, pois localizadas na pele e na linguagem tatuada em seus recônditos subcutâneos. E tu chegas e diz que deve haver a passagem entre a hermenêutica e a ontologia. Que a coisa é. E ponto. E ponto. A coisa é. E mais uma vez estamos aqui não é? Tu continuas aí sentada me olhando como se eu tivesse cometido todos os crimes do mundo, ou como se tivesse escrito todos os poemas do mundo, não sei se me ama ou se quer suprimir minha existência com esse sentimento vago que pressinto, mas ainda não sei, ainda não concebo bem o quê. Todas as vezes o som como um estalo nascendo da rosa. Todas as vezes eu me afoguei tanto no teu amor que quase não sobrevivi e se estou aqui é porque não resta nada para mim além de ser.

Lembra quando viu o cavalo branco, o cavalo ele mesmo, sem mais qualificações, sem predicações. Turvo, alvo. Na praça. O cavalo existia ele mesmo ali e tu o olhava e não queria nada. Não queria nada que fosse além dele. Entendi que aquilo era amor e que tu o amava. Ele sem cela, livre, feito de liberdade, como uma coisa sem peso, como uma coisa que não tem o peso de interpretações hermenêuticas, pois é. O cavalo é e tu sabias. O cavalo parou por um longo tempo perto do banco, comendo o capim verde. E tu continuava olhando com esse olhar fraterno. Como se ele tivesse cometido todos os crimes do mundo, como se ele tivesse corrido por todos os lugares proibidos, como se ele fosse tudo menos cavalo. Mas era. Ele era. E tu sabias e mesmo assim ainda o amava. As pessoas passavam e te olhavam, como eu, atônitas, perdidas, sem saber como reagir ao cavalo e ao teu olhar que transbordava de origem e amor. Mas é porque as pessoas não entendem o amor. Como eu não entendo o amor. Como o cavalo também, talvez, não entenda, ou entenda completamente e seu saber seja o silêncio, assim como a tua substância é o silêncio. E vocês, tu-ele. Assim: com seus corpos andróginos, sendo feitos de silêncio e nuvem, fazem fronteira com a rosa cinza girando no céu da cidade. O cavalo é.

Tu-ele fazem piruetas no ar. Na ponta dos pés está o salto. Na ponta da palavra está o mundo, mais que o mundo, o ar que me falta. Na ponta da respiração um vacilo. É neste que feneço. O olhar de tu-ele me afoga. Não sei se fiz isto ou aquilo. Não tenho como saber. De mim? A separação entre mim e eu é um espasmo e um sopro. E agora é como se eu visse tudo debaixo d'água. Como está claro hoje, o dia como um visão tida por uma advinha, cigana, diz que a morte está dentro da água e me puxa. É aí que percebo que estou imóvel no igarapé, embaixo d'água sem fundamentos, sem ressentimentos, sem pretensões. Abolindo o que fui. Vejo só o olhar de tu-ele do outro lado, em cima de mim. Nada falta agora porque nada importa. Tu-ele morrerá e eu-mim morrerei na medida em que, agora, no igarapé cercado de árvores e almas, a rosa cinza que está na íris dos meus olhos, secar completamente de glória e de luz. Estou na ponta de tudo sem respiração. Só um oco por fora das coisas. Estou nesse limiar entre a vida que é esse sussurro e a morte que é o momento em que fora de eu-mim a palavra se tornar completamente lembrança. A coisa, por sua vez, será isso que não tem nome.

Estou fora de tudo sem respiração. Meu peito pesa. Peito apertado, suprimido pelo instante. O coração bate mais rápido e mais rápido. É como se tudo fosse explodir enquanto estou na beira do mundo. Na beira do amor. Na beira da família. Fora de mim. Todas as vezes que me sentia inseguro e burro, e pobre, e sem roupas novas ou pipas, eu pegava um livro da prateleira suja corroída pelo tempo dourado, e lia sobre tudo que não conseguia entender. Até o dia em que entendi e houve um clarão, como estrondo. Árvores e almas balançaram. Foi nesse dia que morri.

Então assim, morto, sem respiração, afundo no igarapé até sentir a areia, até sentir a umidez do fundo. A coisa é, e dentro dela, há um som macio, feito de cetim, com gosto de agiru, doce e um pouco amargo, vermelho, úmido. Atinjo o fundo. Morto. Atinjo a coisa. Morto. E percebo que não estamos aqui. Não, dessa vez não. E aí meu corpo vibra como se de dentro dele quisesse sair uma verdade, um grito estilhaçado, um grito mudo no fundo do igarapé encantado. Percebo que é meio dia, e nessa hora, andam as potestades das sombras e as mortandades. Percebo também que, dessa vez, não orei o salmo 91 e, talvez por isso, morri. Mais aí lembro que já há muito não acreditava mais em potestades e em mortandades. E morria porque morria, sem mais. Morria porque não suportava o olhar azul e nem o peso da rosa cinza. Morria porque meu corpo pesava de memórias. Morria porque sentia saudades incontroláveis de pessoas que já foram. Morria porque não conseguia amar. Morria porque o poente se misturava com a alvorada e eu sentia fome de maresia e de extremidades. Morria porque a morte é. Só havia o meu olhar e o olhar de tu-ele, entrelaçada entre a rosa e o som da coisa úmida, dentro de si mesma, totalmente coisa, superfície e casca ao inverso, pra dentro, e sem distinções espaciais ou temporais, só uma certa vibração de cor e de som.

E tu-ele continuam sentados com aquelas palavras escritas atrás do banco. Tu-ele é andrógino. Repetição. Tu-ele nada sabe da morte, além do amor, estamos nós? Tu-ele indaga as flores e os seres celestiais sobre a verdade do verso que escreve com uma faca no próprio braço duplo. Tu-ele não é homem nem mulher, não está na região da humanidade, nem da animalidade. Tu-ele é, e isto basta. O poema diz:

Breton enlouquecido
Tece um poema nas pedras brutas
Descalço sonha com neve e bíblias
Deitado na cama.
 

Tu-ele chora porque nada pode fazer pelo mundo. Tu-ele ama o mundo. Sentado é. Tu-ele se torna resiliente na turbulência dos pássaros amarelos. Tu-ele recobre sua pele riscada com um pouco de andiroba e diz algumas palavras incompreensíveis, logo depois acende uma vela. Tu-ele invoca espíritos. Tu-ele não tem religião. A cidade precisa de uma religião e por isso tu ele tenta criar uma religião sem conteúdo algum. Oca. Uma coisa gritada sem voz. Tu-ele pretende criar uma religião que é pura forma. Por isso é tudo, e nada. Tu-ele então usa meu corpo morto no fundo do igarapé. Tira-o lentamente do fundo úmido feito coisa. Enxuga as dobras do meu corpo e coloca nele uma roupa branca: alva, fatídica. Meu corpo é o centro ausente da religião da cidade, sem vida, um sopro, mudez. A pura forma. Meu corpo morto é a religiosidade da cidade que dorme e enquanto dorme, tu-ele estrutura sua religião sem conteúdo. Tu-ele quer a ausência para que nada mais morra, para que tudo seja eterno. Ele ama tanto o mundo. Oh, como ama. E é por esse amor que ele procura a religião de tudo aquilo que não tem alma.

Meu corpo é sem alma. Só as coisas têm alma. Meu corpo já não é uma coisa. É a pura forma. Meu corpo é um sopro e um assovio no meio da mata.

A religião seria feita sem agonia e momentos, sem tempo. Não haveria tempo nessa religião, pois tangenciaria o eterno e o amor. Meu corpo morto a sustentaria. No entanto, tu-ele amava tanto, tanto o mundo, que escolheu ele mesmo também morrer. Era como se toda tentativa fosse falha. Era como se agora, para que fosse, para que continuasse sendo, precisasse morrer. Tu-ele então se levantou e andou pela cidade, procurando a coisa, e na coisa, a morte. Andou. Sabia que precisava amar os dias e as pessoas na sua totalidade, e tu-ele também sentia saudades de quando éramos parte um do outro; e agora sentia fome de sonho. Tu-ele era a flor cinza. E o tempo, o tempo estava dentro e o destruiu. O tempo o levou de dentro porque o tempo é a coisa úmida. A coisa é tempo. E Tu-ele, que amava tanto o mundo, e queria trazer para a superfície da realidade, o eterno, era perecível, como tudo. E só restava um instante para tu-ele.

Andando pois, procurando o instante (já que a forma degradada pelo finito pululava no não-acontecimento), andou lento pela Almirante Barroso. Lento como um gato. Um desses gatos do telhado que se assustam quando percebem que estão sendo olhados e num átimo escapolem para não sei onde. Tu-ele andava como gato pela calçada, querendo-não-querendo escapulir pr'algum lugar onde vivesse fora do tempo. Tinha medo, sabia. Tinha saudades, sabia. E correlato à sua tristeza, o vento abanava seus cabelos cortados na altura do ombro. Tu-ele queria. Tu-ele procurava isso, e não entendia mais, só estava. Como rosa cinza pretendeu no próximo passo, segurar o mundo e transformar o chão em um tapete persa onde todos dormiriam um sono calmo. Fazer da superfície do mundo: conforto. Pois quando andava, tudo era irregularidade, tudo era ruptura. Tu-ele amava. Andou, andou. Até que perto de uma parada de ônibus viu uma mulher.

 A mulher vestia bermuda jeans e uma blusa verde. Dentro dela: um mistério. Tu-ele sentia o mistério. O rosto dela era alegre como a tarde. Seu sorriso movimentava as estrelas que caiam pelo céu e brilhavam, vez em quando, na noite veloz. Ela era. Na sua boca: as linhas simétricas desenhavam um ardor de primavera. Sentia. Tu-ele a amou. Ela parecia dessas coisas que passam rápido mas nunca passam. Impregnando na pele, agarrando no gogó e na lembrança dilatada de instante e mar. Ela assoprava e fazia bolinhas de sabão. Segurava aquele tubo e girava enquanto centenas de bolhas voavam pelo ar. Ela girava e girava. Tu-ele estava paralizado diante dela, ante seu corpo girando e rodopiando, quase deslizando entre as pessoas. Ela continuava girando e assoprando o tubo e fazendo bolhas. Algumas estouravam, outras lentamente caiam no chão, as que ficavam acima dos prédios eram estáticas, não se moviam senão quando o vento batia forte. Então tu-ele percebeu que todos estavam cobertos de bolhas de sabão. A bolha: redonda, perfeita, úmida, gelada, livre. Feita de mundo e de ar. Feita de amor e de respiração. A bolha também era coisa. Como tu-ele era a rosa cinza. De súbito tudo era coisa, porque tudo era bolha de sabão. Tu-ele olhava a Almirante Barroso cheia de bolhas, quase voando pelos ares, quase flutuando. A mulher continuava soprando. Todos a observavam. Em suas peles, uma coisa úmida tocava e estourava: o instante de ser.

Epílogo:

Tu-ele desapareceu entre as nuvens e bolhas de sabão e, em alguns momentos do dia, ouço um som plácido, próximo ao da rosa cinza, se arriscando em amar o mundo. A coisa é tempo.

 

 

 

 

Sobre um velho que dorme enquanto fuma e as implicações psicanalíticas e sociológicas disso

 


Quase no final da avenida Nazaré, em frente à uma Drogasil, um senhorzinho sentado dorme. São sete horas da manhã, ele dorme e quem sabe, sonha. O caderno de anotações sobre a banca, três carteiras de cigarro rothmans, duas de marlboro, e uma de lucky strike. Do ônibus onde estou ninguém o vê, olham em direção a ele, mas não o vêem, enxergam outra coisa que não o velho de boca aberta com o cigarro soltando uma fumaça fina por entre seus dedos esguios de veias saltadas. Veem lírios e hortênsias, veem cimitarras voadoras e um perfume de peônia inconcebível como o amor. O homem dorme à revelia de tudo e todos como uma afronta aos estados normais de rarefação das condutas. Tem um rápido espasmo e acorda. Espanta alguns mosquitos, carapanãs, guerreiros metafísicos sedentos de sangue e fúria, e tomando de súbito consciência do cigarro em sua mão, o traga, firme, existente.

O ônibus continua e ainda penso no velho dormindo e no cigarro sendo consumido pelo vento; por um momento desconfiei da sua morte repentina, do arrebatamento do seu espírito que já tanto fumou e trabalhou e fez apostas no jogo jogo do bicho, já tanto amou e tanto desejou. Sonhei com rio. Joga em qual? Jacaré. Nem sei. O senhorzinho faz as apostas. Sentado vê a avenida Nazaré de um ângulo tímido, os carros estacionados bloqueavam sua visão, sobrava a copa das árvores, os prédios no horizonte, e o céu azul que entrevia-se pelo balançar de folhas das mangueiras. Seu sono me traz uma segurança confusa. Acho graça disso. Todos os dias em que passo ali, ele está, vez ou outra ainda dorme com o cigarro livre, queimando-fora-do-homem, aliviando os pulmões já gastos do velho senhor. Escrevo sobre cigarros e isso me lembra que parei de fumar. Parei já de tantas coisas. É preciso parar às vezes. Parar o movimento infernal de demandas que incidem sobre a subjetividade, e não digo apenas de cigarros e vícios, mas disso que é, antes de tudo, a composição singular da contradição: o círculo infernal da demanda do desejo e o ponto de basta do significante; é preciso parar para que o desejo seja desejo. A outra coisa, esse contínuo da pulsão de morte, da demanda, é a indiferença e a supressão do sujeito no Outro. Porque ser sujeito é ser desejante. Desejar é parar em algum ponto.

O velhinho dorme de boca aberta enquanto o cigarro acaba, e quem sabe o calor do fogo que chega aos dedos não seja o motivo do despertar do homem. Desculpem as paragens psicanalíticas acima, faz parte disso que se chama talvez inconsciente. Esses desvios, esses deslizes. E a questão da parada me faz lembrar que o ponto de basta do significante, este que desliza na cadeia simbólica, também para. A sua parada produz o sentido, sempre metafórico; é antes de tudo, um estofo que permite a repetição deste mesmo sentido, cristalizado na metáfora. O ponto de basta sustenta a significação. O parar é, dessa forma, criação. Criação incessante de algo que, da máquina pulsional, resta como desejo: da equação entre o ser e o sentido, isto é, entre o real e a linguagem, o sujeito é isso que para. Então aquilo que para, é subjetivação, pois, ligada à formação de um elemento que segura o movimento de repetição significante. Este elemento é o traço, a letra, o significante que inscreve isso que, além de mim, para.

Nisso, me vem a fala de um personagem do filme do Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol, que diz "O destino é mais do que a morte". O destino do homem, antes de sua dissolução total no nada, antes de sua mortificação na superfície impermeável de flores e fel da realidade (vel, de fantasia), é a linguagem. E na linguagem ocorre o acontecimento da palavra, onde ela segundo Barthes, "realiza então um estado que só é possível no dicionário ou na poesia, onde o nome pode viver privado de seu artigo, reduzido a uma espécie de estado zero, mas prenhe de todas as especificações privadas e futuras." A palavra, é o ponto de verdade, como ponto de basta, o parar que é a reconciliação da letra com o sentido. A letra, escrita, e o sentido que para, como metáfora, se reconciliam na criação de uma singularidade pura. Quanto a palavra, Mallarmé enuncia: "não é com ideias que se faz poesia, é com palavras." Na linguagem irrompe o acontecimento.  E nesse sentido, morrer é também um ponto de basta, e a linguagem é aquilo que fica à esse fato; fato inabalável. "Não temos nada para levar a não ser nosso destino", a não ser a linguagem e sua possibilidade intrínseca: o erro. O erro. Diz Lacan que o inconsciente está naquilo que manca, ou seja, aquilo que manca é, por consequência, o inconsciente, a falha é precisamente isto que somos.

Somos a falha. E o que isso tem haver, portanto, com o velhinho que dorme e talvez sonha e tem nas mãos um cigarro que se acaba sem boca? O velho acontece como a linguagem acontece, como num sono, como esse estado original de catástrofe que contém todas as possibilidades do mundo, o sono é a inércia do velhinho como possibilidade de ser-precisamente-assim, o cigarro que quase-queima seu dedo, este é o ponto de parada do sono, já que desperta-o, e o momento em que a palavra, aquilo que ele escreve no caderno, se faz sentido. O movimento do seu corpo rumo ao caderno é letra que suporta o significante (isto é, a inscrição do jogo do bicho no papel). Sonhei com rio. Talvez deva apostar. Erraria porque no sonho há a verdade, mas na vigília, despertado no real, erro, pois toda realidade é erro.

Paul de Man ou Thomas Mann, algum deles vai anunciar: "este erro perpétuo que se chama, precisamente, a vida". É neste erro que devo insistir, é neste erro que devemos insistir.

Todo este texto foi um chiste.

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Na mesma tarde em que vi o velhinho com seu cigarro, sai com a Helen, fomos almoçar, palavra forte quando o que se faz é não almoçar e comer bib'sfiha. Gosto de andar pela cidade à tarde. Belém é linda de tarde. Principalmente os lugares históricos. Estávamos na Nazaré, andamos bastante. Calor. Depois a chuva. Mormaço. Tinha assistido um filme do Godard semanas atrás, e em um determinado momento do filme se ouve "a imagem está se transformando no assassinato do presente". Walter Benjamin vê isso já quando fala sobre a fragmentação da forma, sobre a ruína e a montagem como via possível de reagrupar os resíduos da experiência, a experiência perdida, característica da modernidade. A imagem que é, antes de tudo, espetáculo, como "o Capital em tal grau de acumulação que se torna imagem." E penso no quanto não se sabe nada do presente, ou o quanto ele se perde ou não o se sente na sua totalidade. Longe de mim querer cagar um sentimento universal, mas quanto ao que sinto, isso surge como o momento de perda de si mesmo neste ciclo imagético de apreensão dos processos de produção desejante. Penso rápido sobre essas coisas. A Helen fala alguma coisa que deixo passar e só dou uma risada porque não entendi o que ela disse. Olho pros lados. Tantos anúncios e lojas. Mas não são só anúncios e lojas. É memória e Capital. Passamos em frente a um prédio histórico, bem desgastado, com as marcas do tempo sedimentadas, signo da ruína e de temporalidades-outras, vestígios. Bem na frente há outdoors, um com anúncio tecnológico e o outro com um casal feliz, parece ser anúncio de colchão. Isto é a exterioridade. A tela do meu celular também é exterioridade. Pululam anúncios e imagens. Pululam corpos perfeitos e vidas capitalizadas. Pululam discursos e ideologias. Pululam, acima de tudo, dispositivos de poder, bem diante dos meus olhos. A imagem é a captura do desejo e da subjetividade em função do Capital. Em A sociedade do Espetáculo, Debord diz, "O espetáculo não é um conjunto de imagens, é uma relação entre pessoas mediadas por imagens". A imagem é máquina. A imagem é máquina anexa, conectada à máquina-capital. A memória é apropriada, tudo é apropriado, porque tudo é leve, é insustentável. Tudo é matéria de consumo. E esse pensamento me toma enquanto passamos frente a esse prédio. É bom caminhar pelo centro da cidade. As árvores enfileiradas, o risco iminente de uma manga cair sobre a cabeça, mas sobretudo, a beleza das coisas comuns. Helen não sabe, mas a cidade pensa e eu penso junto com a cidade. A certa altura, a cidade sofre e eu sofro junto com a cidade. Na basílica, inúmeras fitinhas, todas tem uma promessa, todas são o suporte material de um desejo. Tenho vontade de também amarrar minha fitinha lá. Helen tira uma foto das fitinhas. O presente está indo, segure-o. Helen e eu corremos, corremos como que tentando salvar da morte esse presente que já, distante, dilui-se no tempo. Sonhei com rio. Vou apostar em algum número do jacaré. A morte do presente, seu assassinato, é a morte disso que grita seu próprio mutismo. Me despeço de Helen que pega algum Pedreira. Ela sobe no ônibus com uma certa pompa de jovem que sentiu essa coisa perigosa, essa coisa flamejante, viscosa e azul, que se chama presente. O agora corre risco de morte, ou quem sabe já não morreu à tempos.

 

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Em todo texto cabe um poema de Adélia Prado.

 

A FACE DE DEUS É VESPAS
 
Queremos ser felizes.
Felizes como os flagelados da cheia,
que perderam tudo
e dizem-se uns aos outros nos alojamentos:
‘Graças a Deus, podia ser pior!’
Ó Deus, podemos gemer sem culpa?
Desde toda a vida a tristeza me acena,
o pecado contra Vosso Espírito
que é espírito de alegria e coragem.
Acho bela a vida e choro
porque a vida é triste,
incruenta paixão servida de seringas,
comprimidos minúsculos e dietas.
Eu não sei quem sou.
Sem me sentir banida experimento degredo.
Mas não recuso os marimbondos armando suas caixas
porque são alegres como posso ser,
são dádivas,
mistérios cuja resposta agora é só uma luz,
a pacífica luz das coisas instintivas.

 

 


Mateus Saraiva é estudante de direito, mora em Ananindeua, aos 8 anos escreveu sua primeira história, aos 13 desistiu de escrever, aos 16 disse que nunca mais iria escrever poemas de amor, aos 19 escreve pra existir, escreve sempre por impulso, acredita que há um exílio que nos move.

 


Variações: revista de literatura contemporânea 

I X Edição - Mais Brasil que nunca
Edição de Marcos Samuel Costa

2023

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