Resenha do livro Conta de Mentiroso de Paulo Nunes por Gutemberg Armando Diniz Guerra

 







NUNES, Paulo. Conta de Mentiroso. 2ed. Belém: Amo Editora, 2022.

Gutemberg Armando Diniz Guerra

 

Comecei a ler Conta de Mentiroso para o menino que mora em mim e tentando entreter um outrozinho que mora aqui em casa. E na primeira conta, quem encontrei?

“Mãe mortinha?”

 

Não se deixa nunquinha

a chinela assim,

revirada.

 

Desvira a chinela

menina

pois ela de cosstas

capaz de matar

a mãe do dono

que calça ela no pé

 

E fomos para a segunda conta

“Na mango city”

 

Mundica trombeteia:
_ Ô, moleca,
manga com leite
é mistura que faz mal,
não sabias?
 
_ hum hum hummm...
 
 
Assim mesmo
a menina continuou descosendo
os fiapos das frutas
nos cobertores do vento.

 

Terceira conta de mentiroso:

“Banana? Nada”

 

Arroouut!
E engoliu, num gut, gut,
pedaços da fruta:
pra todos rostos e gostos:
bananas
branca, prata, nanica,
d´água, são tomé...
Comeu voraz (até os fios
mergulharam pra dentro
(da barriga).
 
Fome prá lá de tantos anos...
E a raiz cresce que cresce
no bucho do menino
_ E se nasce bananeira lá dentro?
 
Indaga ao Língua dos perguntadores,
Putz! Será que
vou virar pranta ou fror?

 

Aquelezinho que mora aqui em casa, mal chegou na metade andou rebarbando o Conta utilizando meus próprios argumentos de quando ando a tentar lhe tolher as belicosidades: _Pai, esse livro tem muita morte! Conferindo, vi que mesmo com os eufemismos e artimanhas de contador, o autor não conseguiu esconder aquelazinha maldita do pequeno astuto. De fato, muitas das estórias que nos contavam e contamos ainda tem ameaças tenebrosas como o sumiço da mãe ou do próprio infrator de qualquer tabu estabelecido. São lições de moral prenhes de ameaças e sanções que só se afastam com o cumprimento estrito da ordem ou reza braba, e olhem lá! Servem, sim, e muito para o diálogo com as crianças, mas há que se dourar mesmo as ameaças como sendo necessárias, contextualizando-as para que não sejam traumatizadoras de mentes muito imaginosas. Mesmo assim, continuei a ler, agora mais para o meninozinho que habita em mim do que para o outro.

Nas ilustrações encontrei olhos e pupilas dilatadas em todas elas, coloridas e movimentadas como toda conta dessas narrativas/disciplinadores pescadas no corolário da educação doméstica que desfilam na obra. Talvez alguém me conteste nessa visão das pupilas onde outros dirão que são flores, ou pratos bem apetitosos, ou paisagens bucólicas, ou outra figuração mais bonita. Eu fico com as pupilas que, como as minhas, se deleitaram nessas visões de letras e imagens. Meu pequeno filho, indagado sobre o que tinha ali naquelas gravuras, viu olhos em tudo. Achei bom que estivéssemos no mesmo diapasão.

Contrapõe-se a cada página escrita uma em negro onde se plantam a numeração romana de 20 contações. Estariam as pupilas dilatadas por essas noites de entremeio? Ou de espanto? Ou de medo? Ou de atenção pelas coisas que lhe estavam ali sendo ditas pela escrita? Como perdi a fala da ilustradora no dia do lançamento, à véspera do dia da mentira, aproveito para pedir-lhe venia e quem sabe alcance uma explicação mais qualificada sobre o assunto.

Conheço Paulo Nunes de longa data e ele está sempre a nos surpreender com sua laboriosa produção que é rica, muito criativa e diversificada. Anda, vira mexe, recai na literatura infantil que me parece ter dele a preferencia, embora seja dos bons nas escritas de outros estilos e para outros públicos, incluindo-se aí sua produção acadêmica, de muito boa e recomendável cepa. Mas esse Conta de mentiroso é infantil? Não sei a que faixa etária se destina e nem sei se, quando o escreveu reunindo reações e reflexões aos tabus populares e lições de moral baseadas em crendices, mirava um público específico. Existe mesmo isso de especificidade ou todos temos todas essas idades inatas e latentes? Vai saber!!!

O fato é que o livro é instigante, em todos os aspectos e merece ser lido, refletido, curtido, contempladas as ilustrações e interrogando-se sobre verdades e mentiras que nos rodeiam e permeiam o cotidiano.






Gutemberg Armando Diniz Guerra 
Doutor em Socioeconomia do Desenvolvimento pela Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França.  Professor do Instituto Amazônico de Agriculturas Amazônicas e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Pará.



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