Poemas de Lindevania Martins

 




Djanira da Motta e Silva - James Lisboa Leiloeiro Oficial | Arte ... 

(DJANIRA DA MOTTA E SILVA - Navegando, 13 x 8 cm - 1949)


Oração

 


 

livra-me, senhor, da fragmentação
de tudo que não for desejo de inteireza
 
livra-me das minhas cascas
e leva a mão até meus meios
sente meu corpo vivo
todo consumido por umas chamas altas
 
vê o sagrado em mim
naquilo que é feio,  naquilo que fede
lava a minha boca das asperezas
que me fazem te insultar
 
afasta-me de qualquer linguagem
rouba-a de mim
deixa-me muda
se falo de fim
 
dá-me continuidade
dá-me permanência
e livre da deterioração
que  não dissolverá meus ossos
a morte não me alcançará

 

 

 

 

 

 

 

Tempestade

 

 

 

 

forçada a ser como você me desespero
não me alojo no conforto da cegueira
não me abrigo no descanso do mutismo
nem rebato rudeza com crueza
afoga teu ouvido no meu hálito
escuta o pulsar desse momento
nunca fomos esses que nos querem
língua viva quer dizer o impossível
corpo em chamas não plana impassível
 
mas ainda quero esse silêncio sem medida
que é da compreensão prenhe de sentido
que é da grande paz a ser fundada
no dia em que coincidirei comigo







Construção


 

minha avó quis edificar uma casa
sem portas para o racismo
minha avó  quis concretar um futuro
de casamentos oficializados pelo estado
minha avó quis que a pele de suas descendentes
fossem claras como nos contos de fadas
que elas leriam às suas crias
no meio da cidade
era assim que minha avó
negra e mãe solteira
analfabeta e isolada
rural e mal falada
quis proteger as  suas
 
cada uma luta com armas que conhece
suas janelas não se abriram
para outras possibilidades
suas janelas não mostraram
que era possível um futuro diferente
tantos  anos sem contar com seus abraços
quando meus olhos
se avermelham de saudade
é pelo mundo que ela não viu
é pelo tanto que ela não se amou
que choro

 

 

 

 

 

 

 

Infância


 

nas horas mais escuras
as paredes do meu quarto
se tornam ninhos, aberturas
onde os fantasmas
que ao meu redor circulam
encontram a própria morada
talvez as paredes do quarto
assim multiplicadas
guardem outra menina
me espiando espantada
no meio da madrugada

 

 

 

Círculo Vicioso


 

 

devorar o outro
mastigar sua alma
até que nada mais reste
desenterrar os ossos
recriar o corpo
soprar a alma
começar tudo de novo



Rapunzel Contemporânea

 

Um homem de longe veio
salvar a moça  na torre:
- Rapunzel, atira-me as tranças!
O príncipe que veio te salvar sou eu.
Não tenho medo, criança.
Já matei vampiro, bruxa e dragão
com a lança que tenho na mão.
 
Uma voz de mulher ouviu,
bem atrás de suas costas:
- Obrigada, há tempos desci!
Matei vampiro, bruxa e dragão.
E com minha mordida até um escorpião.
Cortei os cabelos de cima.
Não combina com esse clima.
Mas se faz questão de tranças,
vê o que dá para fazer com os cabelos daqui!
 
E sem mostrar vergonha, cerimônia ou insegurança,
ela deitou na relva macia
e mostrou-lhe  a buceta mais linda
e a mais peluda que havia.





Lindevania Martins é maranhense, graduada em Direito, Mestre em Cultura e Sociedade e Mestranda em Direito Constitucional. Ex-delegada de polícia, atua como defensora pública de Defesa da Mulher e População LGBT. Palestrante. Contista, poeta e ministrante de oficinas literárias. Vencedora do 6o. Prêmio CEPE Nacional de Literatura, contos. É autora dos livros “Anônimos” (Prefeitura de São Luís, 2003), “Zona de Desconforto” (Editora Benfazeja, 2018), “Longe de Mim” (Sangre Editorial, 2019) ,“Fora dos Trilhos” (Ed. Venas Abiertas, 2019), “A Moça da Limpeza” (Poesia Primata, 2021) e “Teresa Decide Falar” (CEPE, 2022). Acredita nos poderes mágicos da poesia e da ficção.




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